EM DEFESA DO CURTA

Uma carta de Giba Assis Brasil

 

Em agosto deste ano, os editores de Cinecachoeira entraram em contato com a Casa de Cinema de Porto Alegre, afinal, como abordar o curta-metragem no Brasil sem ao menos algumas palavras sobre esta produtora de antologias como “Ilha das flores”, “Barbosa”, “O dia em que Dorival encarou o guarda”, dentre outros clássicos do formato? Fomos atendidos com muita presteza e simpatia pela secretária, que encaminhou para a trinca de fundadores – Carlos Gerbase, Giba Assis Brasil e Jorge Furtado – um e-mail onde solicitávamos algum artigo iluminador do tema, escrito por quem realizou com maestria pequenas narrativas na década de oitenta. Alguns dias depois, Giba Assis Brasil respondeu ao nosso apelo:

Desculpe, estou realmente no meio de dois trabalhos acumulados e sem tempo de procurar uma nova abordagem para um tema que me interessa, mas sobre o qual eu já escrevi várias vezes. No entanto, encontrei um texto inédito desde 1992 que talvez te interesse.

Aconteceu assim: a revista Veja, em sua edição 1222, de 19/02/1992, página 85 (disponível na internet em http://veja.abril.com.br/acervodigital/), publicou um artigo com o título “O filme que ninguém viu”, sobre a premiação, no Festival Internacional de Clermont-Ferrand, do curta “Esta não é a sua vida”, com roteiro e direção do Jorge Furtado, que eu montei e que foi produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre.

Ao elogiar o filme e o trabalho do Jorge, a Veja concluía que a qualidade alcançada era, de alguma forma, resultado da política cultural do governo Collor, justamente o contrário de qualquer interpretação razoável da realidade daquele momento. Alguns dias depois, eu escrevi uma carta para Veja defendendo um ponto de vista diferente. Claro que a carta não foi publicada. Hoje, quase 20 anos depois, acho que ela ainda pode ser vista como uma defesa da “geração do curta” dos anos 1980.

Antes de colocar no ar a carta do cineasta gaúcho, é preciso lembrar que existe até hoje no Brasil um artigo de lei ( artigo 13 da Lei Federal 6281) que obriga os cinemas a, junto com um longa estrangeiro, exibir um curta-metragem em sua programação diária. Desde 9 de dezembro de 1975, quando foi promulgada, ele vinha sendo regulamentado pelo Concine, órgão extinto na ápoca do governo Collor, em 1991. No texto publicado pela revista Veja, o colunista comemorava com ironia cortante o fim da obrigatoriedade, responsabilizando-a por “as ideias dos curtas-metragens brasileiros” terem se tornado “tão curtas quanto a duração dos filmes”. Segundo ele, “eram uma verdadeira tortura para os fãs de cinema, que iam assistir a um Spilberg e acabavam vendo, por exemplo, a célebre operação de catarata apesentada por Primo Carbonari”.

Abaixo a resposta de Giba Assis Brasil, engasgada durante vinte anos, agora publicada pela Cinecachoeira:

 

A matéria O FILME QUE NINGUÉM VIU (Veja Nº 1222, página 85), além de constatar a qualidade do curta-metragem brasileiro e, em particular, do trabalho de Jorge Furtado, é um típico caso de “jornalismo premonitório”, em que primeiro se estabelece a tese editorial sobre um determinado assunto e depois se vai em busca dos fatos para comprová-la.

A tese, na verdade, é bastante sedutora: as reservas de mercado e os cartórios são culpados por tudo de ruim que acontece no país; a chamada Lei do Curta criava uma reserva de mercado – e portanto um cartório; a Lei do Curta acabou junto com a Embrafilme; um curta-metragem brasileiro foi premiado no exterior. Logo, isso prova que, sem reservas e sem cartórios, o cinema brasileiro está renascendo na “era Collor”. Seria ótimo se os fatos não estivessem no caminho para atrapalhar tão brilhante raciocínio. Acontece que, ao contrário do que faz supor o redator de Veja:

(1) o estranho fenômeno de curtas brasileiros serem premiados em festivais internacionais – na França, na Itália, em Cuba, na Alemanha, nos Estados Unidos, etc – já ocorre há vários anos;

(2) isso é certamente conseqüência do estrangulamento de mercado para os longas nacionais, o que transferiu para a área do curta os novos talentos, as novas propostas e os novos núcleos de produção;

(3) estas premiações começaram a crescer em número e importância não quando a Lei do Curta acabou, mas quando ela foi aperfeiçoada (com as resoluções do Concine No 103, de 1984, e No 137, de 1987), passando a exigir um certificado de qualidade para os filmes a serem exibidos nos
cinemas;

(4) praticamente todos os curtas brasileiros de qualidade foram feitos em função da Lei do Curta, que lhes oferecia uma expectativa de mercado hoje inexistente;

(5) muitos destes filmes foram exibidos, mas não de forma tão ampla quanto seria desejável, porque a Lei do Curta, ao contrariar interesses de cartórios (os verdadeiros cartórios), sempre foi alvo de boicote – de parte dos distribuidores de filmes estrangeiros, dos donos de cinemas e mesmo de alguns setores da imprensa;

(6) a Lei do Curta (na verdade o artigo 13 da Lei 6281, de 1975) ainda está em vigor, já que não foi revogada pelo Congresso; o que aconteceu em março de 1990 foi que o governo Collor impediu na prática o seu cumprimento ao extinguir o Concine (órgão fiscalizador) e a Fundação do Cinema Brasileiro (órgão que controlava o sistema);

(7) a partir de então, como era de se esperar, a quantidade de curtas produzidos no país caiu quase a zero, arrastando para baixo também a qualidade dos filmes;

(8) o filme ESTA NÃO É A SUA VIDA, de Jorge Furtado, premiado por mérito próprio em Clermont-Ferrand, é, de certa forma, um filme inglês, produzido por/para a televisão estatal CHANNEL 4, num país onde a relação entre cultura e mercado é pensada em níveis mais profundos que as lamentáveis simplificações dos “neo-liberais” tupiniquins.

Porto Alegre, 20 de março de 1992.

 

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