UM RECORTE SOBRE A PRODUÇÃO CEARENSE RECENTE
Por Marcelo Ikeda
1. Introdução: um panorama da produção cinematográfica cearense contemporânea e o papel dos cursos de formação
A recente produção cinematográfica cearense vem ganhando destaque a partir de uma forte repercussão em mostras e festivais brasileiros. “Nunca antes na história deste estado” se produziram tantos longas-metragens. Só nos últimos anos, podemos citar filmes tanto de realizadores estreantes, como Estrada para Ythaca e Os monstros (Guto Parente, Luiz e Ricardo Pretti e Pedro Diógenes), O grão e Mãe e filha (Petrus Cariry), Rânia (Roberta Marques), Homens com cheiro de flor (Joe Pimentel), quanto de cineastas mais experientes, como Os últimos cangaceiros (Wolney Oliveira) ou Patativa do Assaré – Ave Poesia (Rosemberg Cariry). Além desses, dois filmes cearenses com forte vocação comercial tiveram lançamento nos cinemas de todo o país: Bezerra de Menezes: diário de um espírito (Glauber Filho e Joe Pimentel) e As mães de Chico (Glauber Filho e Halder Gomes).
No terreno específico do curta-metragem, a produção do Alumbramento se destaca como uma das pontas-de-lança do chamado “novíssimo cinema brasileiro”, em curtas como Longa vida ao cinema cearense (Luiz e Ricardo Pretti), Passos no silêncio e Flash Happy Society (Guto Parente), A amiga americana (Ivo Lopes Araújo e Ricardo Pretti), Supermemórias (Danilo Carvalho), O mundo é belo (Luiz Pretti), Raimundo dos Queijos (Victor Furtado), entre outros. Mas a produção cearense do formato evidentemente não se limita ao Alumbramento, também ganhando destaque com outros realizadores, especialmente Petrus Cariry (A montanha mágica, O som do tempo) e Salomão Santana (Matryoshka, Roberto Cabeção). Outros curtas também podem ser citados, como Alto astral (Hugo Pierot e Gláucia Barbosa), Mato alto – pedra por pedra (Arthur Leite), Doce de coco (Allan Deberton), Céu limpo (Duarte Dias e Marcley de Aquino). Para além de suas diferentes visões de mundo e de cinema, esta é uma pequena amostra de como a produção cearense vive um momento fértil, com produções de diferentes estilos e realizadores.
Vários são os fatores que podem contribuir para tentar entender esse fenômeno. Um fator relevante é a continuidade das políticas de fomento. De um lado, a nível federal, com editais que primam pela regionalização, seja com editais específicos de âmbito regional (como o DOCTV, Revelando os Brasis, etc.), seja com editais nacionais que prevêem que um percentual de contemplados precise atender a uma distribuição regional. De outro lado, com o edital estadual promovido pela Secult, que, apesar de precisar de diversos aprimoramentos, permanece como o principal instrumento regional de aporte de recursos para a área cinematográfica local, ou ainda, com editais locais, como os do Banco do Nordeste, ou ainda da Prefeitura de Fortaleza, através da Secultfor.
No entanto, acredito que, para além da importância dos editais e das ações diretas de fomento, existe um outro fator ainda mais relevante que pode nos ajudar a entender a profusão dessa nova cena: as grandes ações de formação. A partir de escolas e cursos de audiovisual tem surgido uma geração que realiza obras audiovisuais instigantes, que propõem uma abordagem criativa com a linguagem audiovisual, dialogando com um cinema contemporâneo que vem sendo realizado não só no Brasil como no mundo.
Depois do fechamento do Curso de Realização do Instituto Dragão do Mar no início deste século, cuja repercussão no cenário audiovisual cearense é um marco referencial, é preciso ressaltar, mesmo que de passagem, duas importantes experiências formativas em Fortaleza. De um lado, o Alpendre, um espaço de produção, difusão e reflexão da produção artística contemporânea. Sua grande característica agregadora é a de promover propostas oriundas de diferentes áreas artísticas, fazendo conviver artistas do campo do vídeo, das artes visuais, da literatura, da dança, e mesmo de outros campos de saber, como os debates sobre filosofia ou comunicação.
De outro lado, uma experiência mais recente é a Escola do Audiovisual, situada na Vila das Artes, um equipamento cultural da Prefeitura de Fortaleza. A Escola do Audiovisual destacou-se por seu projeto pedagógico inovador, dividindo o curso em seis ateliês de realização, distribuídos ao longo de dois anos. Cada ateliê é dividido em módulos semanais, sempre com uma proposta interdisciplinar, transitando entre o cinema contemporâneo e as artes visuais, trazendo importantes profissionais de fora do Estado para ministrar cada módulo. A primeira turma da Escola do Audiovisual proporcionou uma contribuição imediata para o cenário audiovisual da cidade, formando diversos realizadores e artistas de destaque, como, por exemplo, vários membros do Alumbramento.
Essas experiências anteriores acabaram, direta ou indiretamente, contribuindo na formação do curso de graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC). Trata-se, portanto, não de uma ação isolada, mas de uma continuidade na política de formação existente no Ceará há alguns anos. É preciso também ressaltar que Fortaleza conta com outro curso superior em audiovisual, o da Universidade de Fortaleza (Unifor). No entanto, me parece que os dois cursos possuem projetos pedagógicos distintos, apostando em diferentes perfis dos egressos: enquanto o curso da Unifor possui uma ênfase mais profissionalizante, com um forte braço na TV, o curso da UFC dialoga mais com um cinema contemporâneo, ou ainda, com a relação entre o cinema e as artes visuais contemporâneas.
Apesar de bastante recente – foi criado em 2010, ou seja, sua primeira turma sequer chegou à metade de seu período de conclusão – já é possível destacar alguns curtas realizados a partir de disciplinas do curso. Alguns desses curtas vêm sendo exibidos em mostras e festivais no Brasil, tanto em mostras universitárias, como o NOIA ou o FBCU (Festival Brasileiro de Cinema Universitário), quanto em mostras nacionais de destaque, como o Festival de Curtas de Belo Horizonte ou o Janela do Cinema. Para além da mera seleção nesses festivais, esses curtas, ainda que com significativas diferenças estéticas entre si, marcam uma nova semente de inventividade no cenário do curta-metragem em Fortaleza, especialmente com a recente “diáspora” de diversos membros do Alumbramento, reduzindo o ritmo de suas produções.
Dessa forma, neste texto pretendo examinar alguns desses curtas-metragens realizados no curso de graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), exibidos na Mostra Percursos, em junho de 2011, na Casa Amarela, em Fortaleza.
2. Os curtas do curso de Cinema e Audiovisual da UFC: uma primeira abordagem
Uma característica marcante desses curtas, além da sua afinidade com um cinema contemporâneo, é a recusa ao pertencimento explícito a uma filmografia regional, afastando-se de um olhar estereotipado do lugar de um filme nordestino, que aborda temas como o cangaço, o sertão ou a miséria. Ao contrário, são filmes urbanos, ou, mesmo quando visitam as periferias da cidade, o fazem com um olhar outro. Um exemplo é como diversos desses filmes abordam o espaço urbano, ou ainda, a própria cidade de Fortaleza.
Em Próxima parada, de Samuel Brasileiro, a cidade assume claramente a dimensão de protagonista. No entanto, ela nunca é vista como uma totalidade, um todo orgânico, mas apenas através de fragmentos que apontam para uma incompletude. Para isso, o curta trabalha uma ideia de uma restrição de ponto-de-vista: todo o curta é apresentado pelo olhar de um passageiro de um ônibus que, através de uma narração (realizada pelo próprio diretor), descreve situações vividas e percebidas no interior do veículo. Essa abordagem da cidade como um corpo, ao qual só nos é possível um acesso parcial, é oferecida não apenas na restrição de um ponto-de-vista, mas essencialmente em como as imagens são dispostas para o espectador: através de uma sucessão de fotografias estáticas, mas dispostas de uma determinada forma (um corte levando a outra imagem próxima da anterior) que simula certa impressão de movimento. Com isso, o curta desenvolve uma experiência sensorial próxima à do próprio passageiro do ônibus, que, no ritmo da viagem, acaba deixando-se perder em pequenas observações sobre os passageiros que sobem e descem do veículo. A cada passageiro, mais do que uma descrição de fatos, é como se o curta, a partir dele, fabulasse pequenas narrativas, engendradas pelo narrador, que não necessariamente acontecem como são descritas. Nesse encontro improvável entre o realismo da imagem crua sobre a cidade e a fabulação de micronarrativas, Próxima parada é um olhar criativo sobre a cidade de Fortaleza por um ponto de vista íntimo, mas que rompe o mero dispositivo de um filme-diário pela articulação coerente de seus elementos de linguagem, tornando-o acima de tudo um curta de ficção, exercício de linguagem audiovisual, aventura que se equilibra entre o possível e o inventado.
Monja, de Breno Baptista, acompanha um dia na rotina de uma jovem: ela acorda sozinha em seu quarto, arruma-se para sair, vai ao shopping, encontra um possível amante. Apresentado dessa forma, o roteiro de Monja parece fadado ao lugar-comum. No entanto, sua originalidade está nos arranjos de encenação oferecidos pelo filme. Tomado pela presença de sua protagonista, interpretada com intensidade por Andréia Pires, somos apenas testemunhas de seus gestos físicos, mas que não oferecem uma motivação de base psicológica para seus atos. Mas se essa personagem nos permanece opaca mesmo ao final do curta, podemos sentir sua solidão. De fato, Monja transita entre dois pontos: de um lado, um esvaziamento da rotina dessa protagonista, através de tempos largos e de pequenas ações rotineiras (arrumar a cama, tomar um banho, ligar um ventilador), que nos inserem num espaço íntimo de solidão, e de outro lado, um olhar delicado para essa protagonista cheia de desejo. Sim, pois mesmo diante de sua solidão, essa personagem tenta “abrir uma janela para o mundo”: ela sai de casa e, mesmo que seja no shopping, ela se abre para o possível. Seu desejo se expressa através da vibração de seu corpo – até mesmo porque o curta não possui diálogos. Seja num brinquedo eletrônico no shopping, seja fazendo amor com um desconhecido (numa cena marcante, de grande intensidade física entre os dois atores), a personagem de Andréia Pires tenta reagir à sua solidão. Essa tensão entre a solidão e o desejo é desdobrada no curta em diversos elementos de encenação. Já no primeiro plano, ela é expressa visualmente, através de uma colcha rubra que cobre a extensa cama vazia de lençóis brancos. Todo passado em interiores, Monja – com esse título enigmático que abre possibilidades para várias interpretações – apresenta um cinema feminino, íntimo, que desenvolve sua dramaturgia através do tempo e do corpo de sua personagem, muito mais do que um roteiro com ligações causais e ações psicologicamente motivadas.
Fui à guerra e não te chamei é um dos curtas mais radicais dessa safra. Surgiu como um projeto coletivo realizado no ateliê de Poéticas Contemporâneas, realizado por Leonardo Mouramateus, Luana Lacerda e Roseane Morais, utilizando-se como base o espetáculo de dança Cavalos, desenvolvido pelos bailarinos Andréia Pires e Daniel Pizamiglio, com a participação de Mouramateus. No curta, Pires e Pizamiglio dão continuidade a esse trabalho anterior, que se baseia em modulações entre o afeto e a violência, entre a poesia lúdica e o sarcasmo masoquista, entre o prazer e a dor. No entanto, essa tensão não é criada a partir de momentos estanques que meramente se sucedem, mas integrados no interior de cada movimento e na forma específica como um bailarino responde ao movimento do parceiro. Para tanto, baseiam-se num intenso trabalho de expressão corporal, em que a extenuação física ocupa o papel dos desafios dos limites da relação entre esse casal.
Fui à guerra coloca todas essas questões em primeiro plano, simplificando seu mote inicial: uma briga de casal. Após separarem suas roupas (veremos mais tarde que na verdade tratam-se das armas de um duelo), o casal se enfrenta (isto é, frente a frente) atirando suas próprias roupas no parceiro. Se por um lado existe uma energia raivosa, por outro há certa ingenuidade, uma poesia que emana desses corpos, como se estivessem fazendo amor. Trata-se de um ritual, um duelo ético, não muito distante daquele da época da cavalaria, em que um atira no outro partes de si, parte do que carregaram consigo dentro de suas malas, até que elas fiquem vazias, e sua fúria tenha se acalmado. Um ritual metafórico, metafísico, projeção do desejo, mas ao mesmo tempo um ritual realista, mediado pelos movimentos do corpo e pelos objetos físicos, que desferem golpes, punhaladas de amor inofensivas (às vezes nem tão inofensivas assim…).
Mas se de um lado há todo o trabalho corporal e de expressão pessoal dos bailarinos, por outro, há um desafio adicional: o de pensar essa “performance” para uma câmera, o de retratar esse universo através dos recursos da encenação cinematográfica. E é aqui que as opções do vídeo se destacam pela sua inventividade. Após um início em que o processo de arrumar as malas é filmado em jump cuts necessariamente fragmentados, com momentos em que os atores falam e olham para a câmera, quebrando o ilusionismo clássico, o filme então vai para sua derradeira cena, em que o casal finalmente se enfrenta. Esse casal é filmado como se estivesse num palco do teatro, num grande plano geral que cobre o corpo inteiro dos dois atores, posicionados lateralmente à câmera. E mais: num único plano-sequência, sem movimento da câmera. Dessa forma, a princípio poderíamos ter a impressão de que se trata de um mero registro de uma performance. Mas existe uma diferença crucial: a cena se passa na área verde de um parque em Fortaleza (o Parque do Cocó). Essa simples escolha adiciona uma série de questões que se integram à proposta dos bailarinos: uma briga íntima que se passa num espaço público, o sol que ilumina e castiga o corpo dos atores, o espaço lúdico do verde do parque que insere camadas entre a ingenuidade, a poesia e a ironia (seria uma brincadeira de crianças?), e que, em última instância, provoca esse cruzamento de olhares entre a dança, a performance, o teatro e o cinema. Cruzamento simples, mas, por outro, lado ambíguo, misterioso. Vivo, porque vem da vida (quem não teve uma briga de casal? quem nunca se atirou na grama de um parque?). Como se não bastasse, nesse simples recurso, o vídeo dialoga com certo cinema contemporâneo: o tom de humor naive e a floresta como espaço de libertação e de entrega aos sentidos do corpo, caros ao cinema de Apichatpong, ou mesmo o diálogo ambíguo com o teatral na composição do cinematográfico, próprio de Manoel de Oliveira. Com isso, Fui à guerra e não te chamei consegue um equilíbrio muito raro, muito singular: sem deixar de ser extremamente respeitoso e integrado ao trabalho prévio dos bailarinos, transpõe esse conceito para o campo do cinematográfico.
Em seguida, Leonardo Mouramateus realizou dois trabalhos bastante intensos em como reavaliam a própria cidade de Fortaleza. Curiosamente possuem dois títulos com referências a lugares estrangeiros: Dias em Cuba e Europa. Ao mesmo tempo, sinto que esses títulos fazem esses curtas escaparem de uma vocação realista, ao mesmo tempo que se voltam para o papel dos espaços.
Dias em Cuba, num título muito apropriado, volta o filme para o extracampo. Explico: esse curta foi feito quando o grupo de atores-amigos habitam um apartamento no bairro de Fátima em Fortaleza, quando sua proprietária está viajando em Cuba. Enquanto a proprietária passa “dias em Cuba”, o grupo passa a morar nessa casa, tentando fazer desse espaço estranho um lar. Dias em Cuba é todo composto por cenas independentes, que poderiam inclusive ter sido montadas numa ordem diferente. Nessas cenas, reina uma oscilação muito curiosa entre um despojamento, fruto de improvisação, e um rigor, produto de cálculo e ensaio. Síntese desses movimentos de tensão entre a ficção e o documental, entre o improviso e o ensaiado, ou ainda, entre a criação e a vida, está uma falsa entrevista, em que Daniel Pizamiglio narra para a câmera um acontecimento de sua infância. Mais do que aquilo que ele narra em si, importa essencialmente a forma como ele narra esse acontecimento, ou ainda, em que medida essa tensão entre espontaneidade e contenção ocorre na própria tessitura do plano, em como ele se transforma quando exposto para uma câmera. Por trás de um humor improvável, surge uma enorme afetividade, que escorre entre os corredores do grande casarão. Ainda, trata-se sempre de um filme.
Se grande parte de Dias em Cuba se passa no interior de um apartamento, já Europa mergulha na cidade de Fortaleza, através de um olhar muito singular para um lugar pobre, na periferia da cidade: o bairro da Maraponga. O próprio título examina esses paradoxos: num mapa desenhado à mão, mostra-se que boa parte das ruas desse bairro humilde tem nomes de países europeus: Rua Itália, Rua Holanda, etc. Esse mapa oferece um contraponto à possibilidade de o filme ser basicamente uma descrição desse espaço físico: ao contrário, através de uma fragmentação, com cenas de planos longos, mas que se relacionam entre si de uma forma aberta, livre, e nunca causal, Mouramateus propõe uma geografia mais íntima do que física, um passeio pelas relações das pessoas com esses espaços, mais do que uma análise do que possa ser esse bairro. De outro lado, Europa desconstrói um suposto olhar sobre as periferias, baseado em estereótipos, recusando a representação dos excluídos seja do ponto de vista da exploração da miséria, seja evitando o mero exotismo do outro. Como morador da Maraponga, Leonardo Mouramateus olha seu bairro por dentro, mas sem evitar, quando necessário, um distanciamento. O que torna Europa curioso é a posição do realizador: se de um lado existe um fascínio em como essas pessoas simples vivem, transformando um lugar precário em um lar, de outro, há certamente momentos de inconformismo, de insatisfação com o que se vive. Ao mesmo tempo em que um casal se acaricia num bar e pessoas se divertem mergulhando num lago, uma criança discursa contra a prefeita, outra joga pedras na janela de uma casa abandonada. As imagens de Europa emanam uma potência do precário, mas que não se confunde simplesmente com um elogio ao atraso, ou com uma visão subserviente do abandono. Se é preciso resgatar a autenticidade da Maraponga, Mouramateus está longe de querer promover a periferia como mero retiro bucólico, preservado das “perversões” dos grandes centros urbanos. Ao contrário, Europa se interessa por essas fissuras, entre a realidade e o sonho, entre a representação e a vida. Essas potências atingem um clímax no plano final, em que surge o próprio realizador, num movimento pulsante, sem respostas, como seu próprio filme.
Jaime, de Luciana Vieira, é um documentário bastante íntimo: uma filha (a própria realizadora) acompanha seu pai que visita seu pai (isto é, o avô da realizadora) no leito de um hospital. O pai tenta se comunicar com seu pai, mas este, desacordado, aparentemente não o responde. A palavra-chave aqui é o “aparentemente”. Luciana, de forma bastante simples, mas muito delicada, desenvolve uma série de questões. Trata-se, acima de tudo, de um diálogo: diálogo de um pai com um pai, de uma filha com um pai, de uma câmera com um quarto, de uma realizadora conosco. O pai tenta chamar o seu pai à vida através da palavra: grita seu nome, tenta estabelecer um diálogo. A palavra rasga o silêncio do espaço, o possível silêncio da morte. De outro lado, há uma filha que observa um pai, e que o observa em silêncio, mas cujo instrumento de diálogo se dá não através da palavra, mas do olhar, ou ainda, da imagem, com a empunhadura da própria câmera. Em que medida esses olhares são ou não correspondidos? Nessa conjunção de olhares, somos (nós, espectadores), testemunhas de uma intimidade compartilhada de forma imensamente delicada, numa distância precisa entre esses olhares. Olhares que mostram o que esses olhares não mostram; palavras que dizem o que essas palavras não dizem. Como ambos se chamam Jaime, esses olhares sobre esses dois homens se desdobram num jogo de espelhos com a própria representação cinematográfica, com um grande despojamento, apresentado pela realizadora na própria sinopse do curta, que simplesmente diz “Jaime em francês significa ‘eu amo’ ”. Desse modo, Jaime aponta para a necessidade do afeto diante do luto, ou ainda, que é preciso resistir. Torna-se, então, um inesperado filme político. A imagem íntima aparece como uma política da resistência. Ora, pois resistir é amar, e amar é viver.
Victor Costa Lopes realizou dois curtas, cujos títulos dialogam com locais pouco conhecidos do Ceará: Meruoca (Serra do Meruoca) e Presídio (Praia do Presídio). Ou seja, o realizador não buscou lugares turísticos como Jericoacoara ou Canoa Quebrada. No entanto, ambos os curtas não possuem a pretensão de ser um retrato desses locais, como um típico documentário que apresenta espaços. Ao contrário, me parece que a vocação desses dois singulares curtas é a de serem um percurso por uma geografia íntima, ou ainda, uma espécie de diário de viagem que, mais do que um retrato objetivo do que sejam essas localidades, trata essencialmente de um percurso pessoal, de uma vivência do realizador através desses espaços. Pois, de fato, mais do que sobre lugares, os dois curtas são sobre pessoas, ou melhor, sobre a relação do realizador com essas pessoas, seus amigos companheiros de viagem.
Além disso, esses dois curtas possuem uma singular relação com a própria imagem produzida pelo realizador, que empunha a câmera. As imagens são como imagens amadoras, que buscam mais uma espontaneidade no registro, do que um fetiche com a plasticidade e o rigor do enquadramento. São filmes infantis, pensando o termo em como esse encantamento com o descobrir-se filmando se revela diante de nós com uma ingenuidade fascinante.
Presídio, no entanto, coloca um elemento adicional em relação à Meruoca: o trabalho com o som, ou ainda, com a voz do outro em off. Através do som, percebemos que se trata de um realizador buscando fazer um filme, e que é constantemente “atrapalhado” por seus colegas, que caçoam das pretensiosas tentativas do “aspirante a realizador”. O som surge como um comentário sobre o sentido dessas imagens durante seu próprio processo de captação. Presídio, dessa forma, se revela como um filme sobre um realizador que busca fazer um filme… E fracassa! No entanto, enquanto tenta fazer esse filme, ele vive, e enquanto vive, faz esse filme, que se torna justamente sobre seu processo de vivência com esses amigos enquanto tenta fazer o filme. Ou ainda, na mesma medida em que Victor fracassa ao fazer o “filme sobre o lugar Presídio”, ele se torna bem sucedido ao realizar um curta sobre a experiência de tê-lo feito. Nesse retrato bem-humorado sobre a juventude, repleto de uma consciente autocrítica, Presídio, para além da metalinguagem, se revela um diário de viagem sobre a vivência desse realizador com seus amigos, e como essa vivência, torna-se, no seu caso, mediada pelo próprio processo de filmagem. As imagens, portanto, não estão ali mais para “registrar um acontecimento”, mas se tornam o acontecimento em si: é um curta sobre o processo próprio de produção das imagens.
Em comum a todos esses trabalhos está o despojamento dos meios de produção para a filmagem e finalização do material. Ou seja, são curtas que tensionam os limites entre a ficção e o documentário, ou ainda, entre a decupagem e o improviso. Com poucos recursos técnicos e financeiros, transformam sua suposta precariedade em potência. São, dessa forma, coerentes com um cinema possível a ser feito no Ceará, estado periférico, que, mesmo distante das principais economias do país, vem oferecendo, nos últimos anos, um olhar renovado sobre si mesmo, através de filmes criativos e deliciosamente imperfeitos.
Marcelo Ikeda é professor do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará. Realizador de diversos curtas-metragens, como O posto (2005), É hoje (2007) e Carta de um jovem suicida (2008). Crítico de cinema, especialmente na internet, mantendo o blog www.cinecasulofilia.blogspot.com. Autor do livro Cinema de garagem: um inventário afetivo sobre o jovem cinema brasileiro do século XXI, em parceria com Dellani Lima. Curador da Mostra do Filme Livre.