O CURTA EM CANNES

Por Fernanda Aguiar C. Martins

Louvável iniciativa a da chalet pointu de reunir em formato DVD uma coletânea de curtas-metragens selecionados para a Quinzena de Realizadores, programação paralela ao Festival Internacional de Cannes, conhecida pelo fato de revelar novos talentos. Mencionando apenas alguns nomes, atualmente célebres, descobertos na Quinzena, há Werner Herzog, Rainer Werner Fassbinder, Nagisa Oshima, George Lucas, Martin Scorsese, Jim Jarmush, entre outros.

No volume inicial dessa coletânea (contendo dois DVDs), lançado em julho, entre os catorze títulos, o que mais chama a atenção é a variedade e isso sob diferentes aspectos – quanto às datas (de 2000 a 2011), quanto às nacionalidades (Portugal, Tailândia, França, Holanda, Estados Unidos, Brasil, Canadá, Marrocos, Suécia), enfim, quanto às formas cinematográficas, incluindo desde filmes com aporte documentário e etnográfico tais como Tarrafal (Portugal, 2007), de Pedro Costa, e Luminous People (Tailândia, 2007), de Apichatpong Weerasethakul, até o experimentalismo mais digno de nota como Cosmetic Emergency (Holanda/EUA, 2005), de Martha Colburn, e The Heart of the World (Canadá, 2001), de Guy Maddin. Feito para o Festival de Cinema de Toronto de 2000, The Heart of the World é uma homenagem ao cinema silencioso, sendo por isso constituído de imagens em preto e branco, com efeito granulado, e sem diálogos. Ainda no que se refere à diversidade da forma, Le Mur (Marrocos/França, 10 min, 2000), de Faouzi Bensaïdi, por sua vez, abrange um aspecto lúdico, ganhando por vezes ares de absurdo, sua ação em face de um grande muro fazendo convergir indivíduos e atitudes os mais inesperados.

Precisamente, no tocante ao formato curta, no quadro dessa seleção da Quinzena, é interessante constatar que a duração dos filmes pode comportar 5 e até mesmo 34 minutos. Segundo o diretor artístico Frédéric Boyer, só a partir de 50 minutos que se considera o filme média-metragem, sendo este igualmente objeto de programação específica durante o festival. Entre os mais curtos, há, pois, By the Kiss (França, 5 min, 2006), de Yann Gonzalez, verdadeiro poema cinematográfico, graças ao viés sugestivo, unânime ao evocar os diferentes amores da vida de uma mulher. Entre os mais longos, deparamo-nos com Bugcrush (EUA, 34 min, 2006), de Carter Smith, sendo, por sua vez, a ocasião de assistirmos a uma estranha incursão no mundo de grupo de adolescentes, suas experiências com substâncias e vivências sexuais.

Não apenas Bugcrush, mas também outros títulos têm como base a narrativa. Eis o caso de China China (Portugal, 21 min, 2007), de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, focalizando a vida da protagonista chinesa, embora jovem já casada e mãe, cuja existência parece carecer de sentido, o que acaba lhe conferindo um perfil suicida. Exemplificam ainda o gosto por contar histórias Majorettes (França, 16 min, 2005), de Lola Doillon, Shadows of Silence (França, 11 min, 2010), de Pradeepan Raveendran, À Bras le corps (France, 20 min, 2005), de Katell Quillévéré, Vinil Verde (Brasil, 17 min, 2005), de Kléber Mendonça Filho, Mary Last Seen (EUA, 14 min, 2010), de Sean Durkin.

Entre eles, Shadows of Silence e Vinil Verde são dotados de estéticas particulares envolvendo o meio familiar. Se a trama do primeiro possui como fio condutor as visões e os impulsos de morte, vividos pelo protagonista, um pai de família deprimido e com tendência à solidão, o que imprime um viés subjetivo inerente ao tempo vivido; a intriga do segundo, embora conduzida por uma narração do início ao fim, não escapa ao insólito. Na verdade, trata-se de uma adaptação da fábula popular russa, Luvas Verdes, evocando o que há de curioso e talvez até mesmo de natural e salutar no fato de ir além do que nos é proibido. Premiado nos festivais de Brasília e de São Paulo, Vinil Verde narra a história de mãe que dá à filha uma caixa de discos infantis, os quais a menina deve ouvir, exceto o vinil verde.

Com Majorettes e Mary Last Seen, eis a oportunidade de revisitarmos o universo de adolescentes seja na puberdade ou em idade um pouco mais avançada, o filme americano, tal como o título o indica, sendo o testemunho de um percurso que conduz ao desaparecimento da protagonista, e isso de modo imprevisível, uma vez que Mary Last Seen nos dá a impressão de estarmos em face de um road movie. Em À Bras le corps, Katell Quillévéré nos oferece um retrato do vivido totalmente inusitado, que acomete um dia banal de dois irmãos ainda crianças, fazendo-nos acreditar na importância da encenação, remetendo-nos à contribuição magistral de François Truffaut à sétima arte, graças não apenas a tal atividade da mise en scène mas também ao universo da infância, tão caro igualmente a Jean Vigo e ao Neorrealismo italiano.

Em meio a essas narrativas pouco convencionais, a inventividade parece se revelar enquanto característica fundamental dos curtas selecionados para a Quinzena dos Realizadores. Um modo diferente do narrar, rompendo com a linearidade narrativa, pode ser apreendido mesmo num filme, com viés político, como Killing the Chickens to Scare the Monkeys (Suécia, 25 min, 2011), de Jens Assur, filme esse sobre as consequências da política nacional na vida de uma jovem mulher, seu título se referindo à política do governo chinês de executar dissidentes. Mas, ao que parece, é o uso expressivo na inter-relação imagem e som, abolindo o uso da fala, que se destaca, pondo em jogo as múltiplas possibilidades dessa inter-relação. Com exceção de Tarrafal, bastante falado, os curtas em geral exploram e valorizam o uso do som e, até de seu contrário, o silêncio. Em Cosmetic Emergency e The Heart of the World, a música interage com as imagens de modo a reforçar o ritmo lancinante da montagem, em The Heart of the World a composição Time, Forward!, de Georgy Sviridov, intensificando a velocidade rápida do filme, haja vista a média de duas tomadas por segundo. Diferentemente desses dois, em By the Kiss é à medida que a emoção das cenas vai se tornando mais forte que o volume da música instrumental aumenta.

Além de suas sequências magistrais no diálogo entre a imagem e o som, vale notar, em China China, que quando há o uso de uma canção chinesa, a letra funciona como espécie de pequena narrativa, em estrutura especular. Ademais, a ausência de comunicação aí é mostrada, em determinado momento, a protagonista, residente em Lisboa, fala em chinês com desconhecido, que diz não lhe entender.

Em Luminous People, do cineasta Apichatpong Weerasethakul – conhecido graças à premiação na 63ª edição do Festival de Cannes, com a Palma de Ouro, por seu filme Uncle Boonmee Who Recall his Past Lives, eis a vez da importância dada aos ruídos. Recriação de uma cerimônia fúnebre, em plena viagem de barco, ao longo do rio Mekong, na fronteira entre a Tailândia e o Laos, esse filme reforça a presença do vento, de águas barulhentas em movimento, quando não é o caso do ronronar do motor da embarcação, além de chamar a atenção para as cores laranja e azul, compondo o cenário e o figurino. Dando continuidade à valorização dos ruídos, Shadows of Silence, por sua vez, vai mais longe, a chamada do celular servindo como elemento capital reconduz o protagonista à realidade objetiva. Além disso, o toque do aparelho, presente no início e no final da intriga, traz argumentos para crermos na manifestação de uma focalização sonora, delimitando as fronteiras entre os universos interior e exterior, favorecendo a compreensão da narrativa.

Depararmo-nos com tal seleção de curtas nos obriga a repensar a ideia segundo a qual o formato curta se restringe às experiências de cineastas iniciantes. O canadense Guy Maddin e o português Pedro Costa constituem exemplos de cineastas renomados, revisitando o filme de menor duração. Aliás, nos últimos anos, um longa-metragem como Cada um com seu Cinema (2007) – realizado para celebrar a 60ª edição do Festival de Cannes, reunindo trinta e três filmes de três minutos cada, feitos por cineastas de prestígio tais como David Lynch, David Cronenberg, Manoel de Oliveira, Walter Salles, Gus Van Sant, Takeshi Kitano, Abbas Kiarostami, Jane Campion, Ken Loach, etc. – não pode senão revigorar o formato. Vale lembrar, que um ano antes, em 2006, Paris, eu te amo constitui fruto da colaboração de vários diretores. Esse filme comporta vinte e um curtas, de cinco minutos cada, todos sobre a cidade tema. Semelhante a ele, Nova York, eu te amo é composto, por sua vez, por onze curtas-metragens de dez minutos. Ou seja, os últimos anos revelam que o curta-metragem tem sido alvo de interesse, fomentado na ocasião de diferentes celebrações e homenagens. No caso dos filmes de Pedro Costa, Tarrafal, e de Apitchapong Weerasethakul, Luminous People, ambos participam do projeto coletivo O Estado do Mundo (2007), formado por seis curtas, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito das comemorações do seu cinquentenário, lembrando ainda que Guy Maddin, por sua vez, realizou The Heart of the World, sob encomenda para o Festival de Toronto.

 

Fernanda Aguiar C. Martins é Professora Adjunta do Colegiado em Cinema e Audiovisual da UFRB, líder do grupo de pesquisa AIS – Análise de Imagem e do Som (CNPq), atualmente desenvolvendo projeto de pesquisa, intitulado “O Som no Cinema segundo Alberto Cavalcanti”.

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