CINEMA E ANTROPOLOGIA

 

Por José da Silva Ribeiro

 

 Em Setembro de 2009, realizou-se em Portugal o I Festival de Cinema Antropológico e o estudo sistemático do cinema em antropologia tem dado no país, ainda que hesitantes, os primeiros passos. Em primeiro lugar foram muitos os colegas antropólogos ou documentaristas que fizeram a formação em Inglaterra, sobretudo em Manchester – Granada Center for Visual Anthropology, e em França, na EHESS – LISS (L’image en sciences sociales) e no Laboratoire d’histoire visuelle contemporaine ou em Nanterre – Cinémas, représentations, identités. Posteriormente, muitos destes colegas organizaram a formação em antropologia visual nas principais escolas de antropologia do país, bem como a produção de filmes, a presença nos principais festivais de cinema etnográfico e antropológico e as redes internacionais de cooperação. Embora o âmbito da antropologia visual ou o da antropologia das imagens exceda o da relação entre o cinema e antropologia, esta constituiu até agora o tema central, sempre presente nestas abordagens. Propomo-nos apresentar uma reflexão sobre a relação cinema e antropologia vista a partir de e no âmbito da abordagem da antropologia visual e da antropologia das imagens e das experiências de formação, produção e internacionalização.

 

Introdução

 

O filme Gente da Fajãs (2009), de Antônio Saraiva, foi o filme premiado no I Festival de Cinema Antropológico da Associação Portuguesa de Antropologia. O realizador é investigador do Laboratório de Antropologia Visual do Centro de Estudos da Migrações e das Relações Interculturais da Universidade Aberta e o filme insere-se num projeto de doutoramento. A menção honrosa neste festival foi atribuída ao filme Cinema de Quebrada (2008), de Rose Satiko Gitirana Hikiji, antropóloga do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da Universidade de São Paulo. São, porém, cada vez mais as teses de doutoramento e dissertações de mestrado que incluem a produção de filmes (documentários, filmes etnográficos). Alguns realizadores portugueses iniciaram a sua formação em antropologia e continuaram-na nos centros e universidades de referência em Inglaterra, Universidade de Manchester – Granada Center for Visual Anthropology e em França na EHESS – LISS L’image en sciences sociales e LHIVIC Laboratoire d’histoire visuelle contemporaine ou em Universidade de Nanterre – Cinémas, représentations, identités, etc..

Em 2001, aAmerican Anthropological Association definiu uma série de produções audiovisuais frequentemente integradas na investigação antropológica e publicou uma proposta elaborada SVA – Society for Visual Anthropology – para o estabelecimento de critérios de avaliação e integração desta produção nos currículos acadêmicos dos antropólogos, e considerou que “os media visuais etnográficos (principalmente o filme, o vídeo, a fotografia e os meios multimídia digitais) desempenham um papel significativo na produção e na aplicação do conhecimento antropológico, constituindo também uma parte integrante das ofertas de cursos desta disciplina. Os antropólogos envolvidos na produção de trabalhos visuais produzem contribuições acadêmicas valiosas para a disciplina. Os antropólogos incluem também, cada vez mais, produções de media visuais como parte dos seus curricula vitae” (AAA, 2001)

Recentemente, no VI Seminário Imagens da Cultura / Cultura das Imagens, organizamos uma pequena mostra de filmes que pôs em confronto a produção audiovisual em algumas escolas de referência – ISCTE, Universidade Aberta, EHESS e USP LISA – Laboratório de Imagem e Som em Antropologia.

A presença na Internet do filme etnográfico e antropológico e da formação oferecida pelas Universidades neste domínio, hoje indispensável à visibilidade de qualquer área científica, é notável. Refiro-me apenas ao site oficial na Web do “Comite pour la diffusion du film ethnographique en Afrique[1]” e algumas bases de dados que se me afiguram relevantes e próximas dos trabalhos que vimos realizando neste campo – Ethnodoc[2], O lugar do real[3], Interculturalidade Afro-Atlântica[4] e Imagens e sonoridades das Migrações[5] LISA-Antropologia.

Parece-nos, pois, pertinente e necessário o debate e a contextualização desta produção no âmbito das conferências sobre o cinema. Em primeiro lugar porque poderemos observar entre cinema e antropologia uma história paralela (Piault, 2000), mas também uma metodologia paralela (Vertov, Flaherty, Malinowski, Piault, Tomas, Ribeiro) e um ponto de partida comum (Laplantine, 2007). A posicionalidade (ponto de vista) do investigador e do realizador é ainda um aspeto em que poderiam também distinguir formas aproximadas de intervenção. É sobre estas três questões que nos debruçaremos nesta publicação. Faremos também algumas considerações sobre a quarta questão acima referida.

 

1.Cinema e antropologia, uma história paralela

 

Marc Piault afirma que a ligação entre a origem do cinema e a da antropologia não é fortuita e merece que nos debrucemos sobre ela:

“Assistimos, com efeito, ao desenvolvimento simultâneo do que podemos considerar duas instrumentações dos tempos culturais e dos espaços sociais: o cinema como a etnologia (antropologia para os britânicos) vão para o terreno dos horizontes mais longínquos, onde são perceptíveis as maiores distâncias físicas, mentais e comportamentais em relação ao que parece um lugar central de referência e que poder-se-ia, sem muito erro, qualificar de ´mundo branco´. Esta grande partida situa-se numa época em que a Europa e a América procuravam assegurar os mercados necessários à sua industrialização e às exigências do seu expansionismo econômico, manifestas, nomeadamente, pelas diferentes invasões coloniais”. (Piault, 1993: p.58-65.).

A partir de meados do séc. XIX, segundo o autor

“a ciência desenvolve as suas práticas analíticas, cumulativas e quase compulsivas: estabelecimento da nova ideologia científica de que o positivismo será uma das mais fortes expressões. Convergências notáveis neste século entre, por um lado, formulações filosóficas que, para além das contradições entre os seus autores, traduzem todas uma mesma preocupação de captar a totalidade e compreender o mundo a partir ou no interior dessa totalidade e, por outro, a consolidação política dos Estados-Nações, ocupando, sem deixar nenhum vazio, os antigos espaços misturados da geografia dos povos: as fronteiras delimitam espaços homogéneos, cujos detalhes poderão ser ainda contestados, mas cujo princípio está doravante estabelecido e feito coincidir o povo com o território quase sempre identificado a uma cultura, para os mais importantes de entre eles, a uma língua” (Piault,1993: p.58-65).

É neste contexto que surge a tentativa desenfreada de colecionar e de apreender o mundo e a sua diversidade (Albert Khan – Archives de la Planète) ou para reduzir o que seria apenas uma aparente diversidade à ordem única de classificações mais ou menos dominadas pela ideia-força do evolucionismo ou de implantação da ideologia do progresso. A obsessão classificatória, articulada no modelo das ciências naturais, apoia-se, no seu projeto de captação etnocêntrica do mundo, na afinação das técnicas instrumentais produzidas, nomeadamente, graças ao progresso da química, da ótica e da mecânica. O Ocidente do séc. XIX conhece como uma capacidade evidente e, pensa-se, sem limite na expansão, na exploração do mundo e na definição do seu sentido. Esta capacidade é tão sentida que se exprime em termos de necessidade: o famoso “fardo do homem branco”, responsabilidade que se outorga de conduzir nos caminhos da sua própria civilização todas as sociedades do planeta. Encontramo-nos, por isso, num período de multiplicação e de sofisticação dos instrumentos de medida e de observação em todos os domínios, triunfo do método experimental, confirmando ao mesmo tempo a validade da démarche, a qualidade da sua instrumentação e a realidade dos seus objetos. O caráter objetivo da ciência é fundado sobre instrumentos de medida, cuja materialidade se supõe dispensar as incertezas da subjetividade da observação humana, pela imprecisão dos seus sentidos: justifica-se, assim, não só a necessidade da descoberta, mas a finalidade “civilizadora” se não da conquista, da exploração do mundo. A constituição progressivamente acabada dos Estados europeus modernos implica, por seu lado, a passagem para uma verdadeira experimentação das formações sociais que eles representam e, por isso, a confrontação real, histórica, com espaços exteriores, cuja ocupação, se fosse conseguida, daria prova de eficácia e de pertinência: a expansão política pode validar, de alguma maneira, a objetiva necessidade da expansão econômica, do crescimento da produção, do alargamento dos mercados, da venda e da apropriação sistemática das fontes de matéria-prima de energia.

A antropologia, considerada num sentido mais lato, antecedeu o cinema e a fotografia, no entanto, como refere Ella Shohat e Robert Stam,

“As tendências visualizantes do discurso antropológico ocidental abriram o caminho para a representação cinematográfica de outros territórios e culturas. O estatuto ´ontologicamente´ cinético da imagem em movimento favoreceu o cinema dando-lhe um estatuto semelhante ao da palavra escrita e ao da fotografia. Era mostra da antropologia ao armá-la com a evidência visual não só da existência de ´outros´, mas também da alteridade. O cinema neste sentido prolonga o projeto museológico de reunir na metrópole objetos zoológicos, botânicos, etnográficos e arqueológicos tridimensionais. A diferença das mais reputadas e ´inacessíveis´ ciências e artes das elites, o cinema popularizador podia trazer aos espetadores, desejando ver e sentir civilizações ´estranhas´, mundos não europeus. Podia transformar o obscuro mapa-múndi num mundo conhecível e familiar” (Shohat e Stam 2002:121, 122).

Como vimos, Ella Shohat e Robert Stam incluem o conhecimento ou o espetáculo da ciência numa perspetiva mais ampla que a do conhecimento antropológico. Tratava-se das práticas desenvolvidas pelas expedições científicas multidisciplinares, que acompanham o processo colonial e que inserem os nativos mais num processo de identificação com a natureza (selvagem, bom selvagem, etc.) do que com a cultura e a sociedade, mas também identificam a semiótica da câmera de filmar e da encenação colonial das expedições científicas ou coloniais (exploração de matérias-primas) evidentes em alguns filmes (First Contact, 1984). Afirmam assim que, operando num contínuo com o zoológico, o antropológico, o botânico, o etnológico, o biológico e o médico, câmera – como o microscópio – anatomizava o “outro”. Os novos aparatos (aparelhos) visuais demonstravam o poder da ciência para mostrar e decifrar culturas alteradas, a dissecação e a montagem construíram, juntos, um retrato presumivelmente holístico do colonizado. As invenções tecnológicas traçavam o mapa do mundo como um espaço de conhecimento das disciplinas. As topografias estavam documentadas para o controle militar e econômico, frequentemente, e literalmente, às costas dos “nativos” que levavam o cineasta e o seu equipamento. No contexto colonial, o tropo (figura) da “câmera como uma arma” (espingarda cinematográfica de Marey) ressoava como o uso agressivo da câmera (ver First Contact, 1984) pelos representantes dos poderes coloniais (tb. cinema americano). Os povos primitivos tornaram-se objetos de representação quase sádica (Shohat e Stam, 2002:122).

Cinema e etnografia revelam e acompanham de forma paralela o contexto histórico e cultural construído como que um olhar comum. Não apenas uma história paralela de fatos.

 

2. Cinema e antropologia: montagem e desenvolvimento de um projeto de investigação em antropologia

 

Entre o fim da Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, o antropólogo britânico W.H.R. Rivers (1864-1922), a quem se deve a matriz da Escola Britânica de Antropologia Social [Galileu da etnologia (Lévi-Strauss), iniciador da pesquisa britânica sobre a família e o parentesco, participante na Expedição ao estreito de Torres organizada por A. C. Haddon], apresentados como field-anthropologists, seguindo o modelo dos field-naturalists (L’Estoile, 1999), contactou os cineastas D. W. Griffith e D. Vertov transmitindo a necessidade de encontrar novas formas de documentar a realidade (Grimshaw, 1997). Pouco se sabe destes contatos e se a ideia do antropólogo britânico era simplesmente de documentar, de uma aproximação mais direta do cineasta ao seu objecto de estudo, de produzir testemunhos de exceção dos encontros de terreno ou se já estava presente a ideia de montagem que Griffith e Vertov trazem para o cinema na segunda década do século XX. Para Vertov, a câmera, o olho fílmico, era mais perfeito que o próprio olhar humano para explorar o caos dos fenômenos visuais e suscetível sempre de ser melhorado. À perceção caótica do olhar humano e às limitações impostas pela imobilidade, contrapõe as possibilidades do olhar mecânico e móvel da câmera.

A câmera, para Vertov, é um olho mecânico em perpétuo movimento, que liberta o homem da sua imobilidade, aproximando-se e afastando-se das coisas, penetrando nelas, deslocando-se, atravessando multidões, caindo e levantando-se ao ritmo dos movimentos.

O olhar mecânico organiza a perceção:

“se fotografarmos o que o homem viu, obter-se-á naturalmente uma grande confusão. Se montarmos habilmente tudo quanto se filmou, o resultado será um pouco mais claro. Se eliminarmos as escórias que perturbam, ainda será melhor. Obteremos deste modo uma memória organizada das impressões de um olhar vulgar […] O olho mecânico procura às apalpadelas no caos dos acontecimentos visuais um caminho para o seu movimento ou para as suas hesitações e experimenta, alongando o tempo, desmembrando os movimentos ou absorvendo o tempo em si próprio, engolindo os anos, esquematizando assim os processos inacessíveis ao olhar humano” (Vertov em Granja, 1981:45).

A observação da câmera, resultado das experiências e da confiança dos operadores, contribui assim para desvendar o real e para educar ou organizar o olhar do espectador.

O cinema de Vertov, um cinema olhar (cine-olho) e, sobretudo, o filme O homem com a câmera, marca, incontestavelmente, uma época na história do cinema de vanguarda, sendo uma das últimas manifestações de agitação de efervescência criativa que se seguiu à revolução bolchevique abruptamente estancada com o advento do realismo socialista, da coletivização e da industrialização, do estalinismo. Esse cinema de vanguarda vertoviano assenta em três princípios fundamentais: o cinema como processo de desvelar o real, a atualidade, a vida quotidiana; utilizando todas as técnicas de filmagem, todas as potencialidades das imagens em movimento, todas as invenções e métodos suscetíveis de fazê-lo; a superioridade da câmera em relação ao olhar humano; uma nova concepção de montagem.

O filme O homem com a câmera tem, para os antropólogos, um duplo valor etnográfico: o de produto documental da construção de uma nova sociedade e o de resultado de um novo modo de olhar (cinema) e apresentar (teorização, construção discursiva, montagem). Constitui também um ritual de passagem (Tomas em Taylor, 1994: 272), porque foi produzido na fase liminar da revolução soviética, que acima referimos, mas também porque o próprio desenvolvimento do filme apresenta claramente três momentos (como nos rituais de iniciação ou de passagem): separação ou ruptura, passagem ou liminar e, finalmente, de agregação ou reintegração. Mais duas características importantes na cinematografia vertoviana: cada plano nada valia por si, isoladamente, como as palavras no texto ou na poesia, mas em função das conexões, da articulação com os outros planos,

“não é nada, em si, fora de qualquer contexto, mas, na relação estabelecida entre ele e os outros, torna-se expressivo do conjunto. Um pouco como um indivíduo isolado de todo o universo seria reduzido ao insignificante social e cultural e não se conceberia fora de determinações puramente biológicas, tornar-se-ia pelo contrário representativo, exprimiria à sua maneira, original, irredutível, um ou vários conjuntos se a observação fosse suscetível de ligá-lo a eles. Enfim, a sua própria existência só se situaria necessariamente e ganharia sentido na relação constantemente estabelecida com este ambiente no qual só pode agir sendo a expressão agida. A construção de um filme poderia ser considerada como um empreendimento metafórico da produção do sentido pelo homem na dinâmica da sociedade que exprime e sobre a qual exerce a sua ação” (Piault, 2000:64).

A montagem constitui um elemento central do filme desde a fase prévia de abordagem do tema ou do assunto até a montagem final e a apresentação pública. Múltiplos são, pois, os paralelismos entre a investigação em antropologia ou em ciências sociais e a teoria da montagem de Vertov

Em primeiro lugar o que Vertov chama em três períodos (planos) de produção:

Na produção cinematográfica

Na investigação

O plano temático – inventário de todos os dados documentais que tenham uma relação direta ou indireta com o tema tratado. Com eles se cristaliza o plano de filmagem: A consulta documental. Fase prévia de abordagem da temática e do terreno.
Plano da filmagem – resumo das observações realizadas. É o resultado das diretrizes do plano temático e as propriedades particulares do “olho-máquina”. Trabalho de campo e adaptação dos métodos (tecnologias de representação – Bob White) ao terreno.
Montagem central – resumo das observações inscritas na celulóide pelo cine-olho. Cálculo cifrado dos agrupamentos de montagem. Associação (soma, subtração, multiplicação divisão e colocar entre parêntesis) dos fragmentos (blocos) filmados de idêntica natureza. Permutação incessante destes blocos-imagens até que todos eles estejam colocados numa ordem rítmica e no qual os encadeamentos de sentidos coincidirão com os encadeamentos visuais. Como resultado final de toda estas mesclas (misturas), deslocamentos, cortes, obtemos uma espécie de equação visual, uma espécie de forma visual. Esta fórmula, esta equação, obtida como resultado da montagem geral dos cine documentos fixados na película, é o filme cem por cento, o extrato, o concentrado do eu vejo, o cinema-eu vejo. Escrita final, edição. Montagem do filme do hipermedia ou de outras formas de apresentação final dos resultados da investigação.

 

Em segundo lugar, uma teoria da montagem que muitos autores consideram um primeiro programa de Antropologia Visual, ou como outra semelhante e paralela ao desenvolvimento de um itinerário de pesquisa em Ciências Sociais:

 

Teoria da Montagem de Vertov

 

 

Itinerário de pesquisa em Antropologia

1. Montagem durante a observação

  • Orientação do olho desarmado para qualquer lugar ou momento.
1ª Fase

  • Escolha do tema e definição das unidades de análise.
2. Montagem depois da observação

  • Organização mental do que foi visto em função das características futuras.
2ª fase

  • Relação com a primeira observação,
  • Formulação de hipóteses tendo em conta a realidade que nos vai permitir a verificação.
3. Montagem durante a filmagem

  • orientação do olho armado com a câmera para o lugar analisado em 1,
  • adaptação da filmagem às condições da situação que possam ter sido alteradas entre o momento da observação inicial e o momento da filmagem.
3ª  fase

  • Concretização do trabalho de terreno,
  • Adaptação do dispositivo de observação.
4. Montagem depois da filmagem(pós-produção)

  • Primeira organização (grosso modo) do que foi filmado em função das características futuras,
  • Procura de fragmentos que faltam na montagem (retorno ao terreno).
4ª fase

  • Retorno ao terreno,
  • Classificação dos dados,
  • Ajustamento das hipóteses iniciais em relação aos dados,
  • Primeira avaliação da relação das hipóteses com o que aconteceu,
  • Avaliação e procura no terreno do que ainda falta e se considera necessário.
5. Golpe de vista — procura dos fragmentos indispensáveis à montagem

  • Orientação instantânea para qualquer meio visual para captar as imagens de ligação necessárias,
  • Excepcional atenção,
  • Regra de ouro: golpe de vista (intuição), velocidade, precisão,
  • Procura dos planos de corte e de estabelecimento de ligações.
5ª fase

  • Organização dos elementos e sequências de elementos de modo a desenvolver um discurso organizado,
  • Para que os elementos e sequências possam funcionar entre si é necessário determinar um certo número de relações entre os diferentes momentos e lugares de pesquisa,
  • Relacionar os elementos, as articulações e integrar o que não foi previsto no plano inicial.
6. Montagem final

  • Pôr em evidência pormenores, temas (núcleos) fechados situando-os no mesmo plano que os grandes,
  • Reorganização de todos os materiais na melhor sucessão,
  • Acentuar a linha principal do filme, o centro do filme,
  • Reagrupar situações da mesma natureza, cálculo métrico (ritmo) do reagrupamento da montagem.
6ª fase

  • Construção geral do sentido principal,
  • Colocar à volta do sentido principal, toda a série de temas secundários que poderão permitir toda uma série de pesquisas derivadas,
  • Organização e hierarquização do tema de pesquisa,
  • Elaboração da síntese,
  • Apresentação final.

Esquema sugerido por Marc Piault (2000) e baseado em Marc Piault em Vertov e David Tomas (1994).

Este parece ser um esquema demasiado rígido que, tanto no documentário como na antropologia, é necessário tornar flexível na adaptação ao terreno e no qual são nítidos três momentos: 1) uma fase prévia de abordagem do terreno – olhar desarmado de Vertov, a observação flutuante dos antropólogos, o flâneur de Baudelaire, Simmel, Benjamin; 2) a fase do trabalho de campo, da relação entre cineasta ou antropólogo (sua cultura e seu projeto) com as pessoas filmadas (sua cultura e seu projeto), da filmagem, de produção de informação a partir do local (“do minúsculo, do efêmero, do extremamente frágil”) em que o plano de filmagem pode ser assimilado à “descrição densa” de Geertz; 3) a fase da montagem, da exploração da tensão entre planos, a relação, o raccord, entre um e outro plano na construção final da obra (discurso audio-visual) – pós-produção. Na sequência das etapas preconizadas por Vertov e Piault podem redesenhar-se frequentes percursos mais curtos de ida e volta entre etapas sucessivas antes de passar à seguinte. O som e as vozes dos atores introduzem nesta esquematização novas complexidades. Este instrumento poderoso constitui um guia de percurso, uma gramática a praticar até que, parecendo esquecida, se revele como algo que continua a estruturar o processo de investigação e de produção audiovisual em antropologia.

Na relação com o trabalho de campo, cinema e antropologia também se encontraram e se desenvolveram de forma paralela. Na antropologia, foi Malinowski que iniciou o trabalho de campo e elaborou a sua “carta fundamental” que viria a se tornar “norma” e “preceito” em antropologia. Caracterizava a situação de trabalho de campo um investigador só, de modo a aprender a comportar-se segundo os códigos sociais do grupo com quem conviveu, a aprender a sua língua e a tomar parte da sua vida; separado da companhia de brancos (ruptura com a sociedade europeia); procurando viver na sociedade nativa, com os nativos, com o objetivo de aprender a conhecê-la e a conhecê-los; observando a vida social e participando nela tão intimamente quanto possível e tanto tempo quanto o necessário; estudá-los sobre todos os seus aspectos; apreendendo o ponto de vista dos nativos e compreendendo a sua visão de mundo.

Semelhantes a estes são os princípios que orientaram o trabalho de Flaherty assentes em três princípios fundamentais: 1) Longa duração da experiência no local: o tempo do contato prévio, do conhecimento do objeto a filmar, da criação de laços de amizade ou confiança que permitam a participação das pessoas filmadas, enfim a filmagem, o visionamento e o feedback. Assim, o filme constitui uma experiência interminável, a que só uma “violência” exterior pode pôr termo (compromissos de distribuição, pressões relativas à encomenda…). “Todos os meus filmes são apenas esboços – aproximações ao que espero vir a fazer um dia, ou que será feito por outros […] Fazer um filme é como procurar uma pepita de ouro […] um filme é a maior distância entre dois pontos” (Flaherty in Romaguerra, 1980:145). Flaherty, para a realização de Nanook, conhecido Allakariallak (Nannok no filme) e a família, e tendo decidido filmá-la, instala-se na sua ilha, baía de Hudson, hoje ilha Flaherty, durante 15 meses em condições climáticas difíceis, temperaturas que rondavam os 55º negativos. Improvisa aí um laboratório e uma câmera escura para tratamento do filme, utilizando a luz do sol para invertê-lo, utilizando uma câmera leve, uma Akeley de 35 mm. O processo envolvia uma intensa cooperação entre o protagonista Nanook e o realizador Flaherty. 2) Subordinação da filmagem aos dados dessa experiência e a uma ideia emergente do local, que mais tarde Jean Vigo chamaria “ponto de vista defendido inequivocamente pelo autor”. Os filmes obedecem a projetos, a ideias. Em Nanook, “filmar a majestade inicial dos povos”. Nenhuma ideia é viável, se poderá vir a tornar filme, sem que seja ratificada pelos fatos passados ou presentes. A grande maioria das ideias nasce do conhecimento direto da comunidade, emerge do “real” desafiando-o, “o documentário, como a antropologia é a exploração criativa da realidade” (Crawford e Simonsen). 3) Efeito de feedback entre a própria condução da experiência, o que a câmera dela vai revelando e a observação diferida das pessoas filmadas e com as pessoas filmadas. O filme desenvolve-se a partir do olhar do realizador, das análises partilhadas das imagens, das conversas com os habitantes, da sucessiva repetição das tomadas de vista. Para isso, Flaherty instala, sempre que possível, laboratórios e equipamentos de projeção do original dos filmes, rushes, no local, chegando ao limiar de um germe de “criação coletiva” (os esquimós, Itiumuits, corrigem o filme depois do seu visionamento), o que postula o princípio determinante da descoberta de elementos a partir das próprias revelações operadas pela câmera: a câmara vê mais que o olho. Tanto o filme como a metodologia nele utilizada tiveram admiradores e detratores. É de certa maneira irônico que Flaherty tenha sido atacado por fazer o que os antropólogos fazem com virtual impunidade “o objetivo final que o etnólogo não pode perder de vista é, em suma, compreender o ponto de vista do nativo, a sua relação com a vida, a sua visão do mundo” (Malinovski, 1922).

O tempo constitui a essência do método de Flaherty. O exercício do cinema consiste na reunião progressiva de condições. Recordem-se os três princípios, acima referidos, para a revelação dos acontecimentos através da objetiva. Trata-se não de um ato passivo da parte do realizador, mas de um deixar acontecer para saber descobrir através do filme, onde o objetivo prioritário é a captação do real pela imagem, como o fizeram antes Muybridge, Janssen ou Lumière, a profundidade através das condições em que o real é registrado. A montagem, inicialmente, delimita o fim da sucessão de um acontecimento, ou a escolha dos planos dentro do muito material repetidamente filmado, analisado e, por vezes, discutido com os próprios filmados, caso de Nanook. Não há metáforas: a sucessão dos planos acumula e desenvolve a tônica principal de comunicar o tempo: o ritmo interno dos gestos, o valor do instante, a noção exata da espera, a duração como forma dramática (Nanook of the North, 1923).

Flaherty foi, na opinião de Jean Rouch,

“um etnólogo sem o saber e sem o querer, dando talvez a maior lição de paciência e de tenacidade aos que se dedicam ao estudo dos outros homens. A sua pesquisa maníaca da autenticidade obrigava a contatos prévios prolongados precedendo uma observação minuciosa, uma tentativa de compreensão mútua de que poucos etnógrafos profissionais se podem gabar” (Rouch, 1966:453).

Descobre as potencialidades da observação participante (para Heusch, também «câmera participante») que etnólogos e sociólogos utilizarão mais tarde, a sua atitude com Allakariallak resume a deontologia da pesquisa etnográfica: além do rigor do trabalho de observação e de integração, da existência do projeto e do conhecimento minucioso e aprofundado dos meios técnicos, Flaherty não atua como mero caçador de imagens, adotado por Allakariallak e sua família. observa-os minuciosamente, procura a sua colaboração estreita, trata-os como seres humanos, o que nem sempre aconteceu com os etnólogos cineastas.

Flaherty, ao abandonar o ponto de vista objetivista, o olhar ou a observação exterior –tratava-se de seres humanos, não de insetos – colocou-se, ele próprio, dentro do processo de observação. O filme Nanook of the North resultou de uma construção conjunta com Alakialak (Nannok no filme), de uma relação colaborativa baseada em visionamentos e repetições conjuntas. Eram pedidos a Allakariallak comentários à correção das imagens, o que ajudava Flaherty a planejar as filmagens do dia seguinte. Alguns Inuits colaboraram como técnicos de manutenção do equipamento de Flaherty (Ruby 1979). Estes filmes para Flaherty rodavam-se “no mesmo lugar que se quer reproduzir e com os indivíduos desse lugar”; deveriam tentar reproduzir uma visão do mundo daqueles que filmava, preocupando-se com as suas opiniões; ser possível “projetá-lo para os esquimós, de forma a que estes pudessem aceitar e compreender o que eu estava a fazer e trabalharem comigo como parceiros” (Flaherty 1950: 13-14); a apresentação ao público adquiria um “valor incalculável no efeito da mútua compreensão dos povos” (Flaherty, 1998:114). A partir dos anos 1920 até ao presente, podemos seguir uma tênue tradição para partilhar o poder criativo, a partir dos primeiros esforços de Flaherty (Ruby, 1991). No entanto, a ideologia de Flaherty estava lá, a justaposição de pontos de vista era-lhe favorável. Paolo Chiozzi afirma que

“o filme Nanook assinala a passagem de uma relação vertical observador observado, para uma que exprime o encontro entre dois sujeitos em situação de igual dignidade, de modo que as imagens filmadas se revelam como produto de uma interação entre o cineasta e os sujeitos filmados (Chiozzi, 1992:227)

Jean Rouch refere que

“Robert Flaherty inventou toda a nossa ética: como filmar as pessoas sem lhes mostrar as imagens? A sua câmera tornou-se «participante»: metamorfoseada em projetor das imagens tiradas e reveladas na véspera, foi o pretexto fantástico de um diálogo permanente entre os Esquimós e aquele contador de histórias” (Rouch, 1995:12)

Foram tecidas críticas às opções de Flaherty, o “romantismo” e a obsessão pelos países longínquos e pelos povos primitivos (Grierson) ou, atualmente, a sua perspetiva etnocêntrica – na medida em a personagem principal encarna os valores protestantes do patriarcado, o centralismo do trabalho, a independência e a coragem (Solís, 2000).

Após estes atos e anos fundadores, os anos 1960 do séc. XX trouxeram novos desenvolvimentos ao cinema e à antropologia marcados, sobretudo, pela presença destacada de Jean Rouch como antropólogo “de pensamento fértil” (Piault, 1996) e como cineasta inovador. Os filmes Moi, un Noir (1958), La Pyramide Humaine (1959) e Chronique D’un Été (1960) constituem e acompanham (ou antecedem) mudanças radicais na antropologia e no cinema. A abordagem do exótico e do longínquo é agora posta a par (em situação de igualdade) com o endótico, o próximo, o familiar, o quotidiano das nossas sociedades (Chronique D’un Été) ou com a interação entre os mundos, tradicionalmente dos observadores com o dos tradicionalmente observados (La Pyramide Humaine). A observação como atividade visual, saber ver, é agora acompanhada de palavras e sonoridades localmente produzidas, saber ouvir, saber escutar. A relação entre observados e observadores (quem é quem neste processo?) transforma-se. A antropologia também é o saber estar com, com outros e consigo mesmo quando nos encontramos com os outros. Finalmente, é ainda uma atividade de construção do discurso escrito, além de visual, integrando as possibilidades técnicas de registo do som síncrono, audiovisual. Isto tem marcas profundas de afinidade com novas formas emergentes no cinema – cinema direto, novo cinema verdade (Morin, 1960), cinema observação, cinema interação (antropologia partilhada).

Este período e a influência de Jean Rouch prolongaram-se até à atualidade. Influenciaram as práticas da antropologia visual debatidas no primeiro Congresso de Antropologia Visual (1973). No entanto, a influência dos filmes de Jean Rouch torna-se referência paradigmática (Ginsburg, 1999) e escola, continuada em múltiplos lugares. Na Universidade de Nanterre, com os cursos de Cinéma, Audiovisuel, Culture et Société, atualmente com duas vertentes –  Cinéma anthropologique et documentaire e Cinéma, littérature et société, na EHESS –; École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris, Marselha) e noutras instituições: Ateliers Varan, etc. Neste contexto, a publicação de Cinéma et Anthropologie, de Claudine de France, no início dos anos oitenta (1982) como a primeira obra sistemática, que aborda as questões da antropologia visual ou da antropologia fílmica, como prefere chamar-lhe, marcou profundamente não só muitas gerações de antropólogos-cineastas, mas também o texto que agora apresentamos.

A utilização sistemática de imagens de arquivo pelo cinema e da inclusão de estudos coloniais permitindo o desenvolvimento de etnografias longitudinais, a justaposição de espaços e espaços e tempos diversificados numa era pós-colonial e, sobretudo, a publicação Writing Culture: the poetics and politics of ethnography, James Clifford, George E. Marcus, em 1986, problematizam a representação escrita e audiovisual em antropologia e abrem caminho a narrativas complexas.

Finalmente, o advento da era digital poderá produzir novos desafios e novas representações cinematográficas e antropológicas, que reformatam e reconfiguram as novas narrativas multimediáticas e hipermediáticas

“os novos media digitais colocam à nossa disposição uma provável linha de continuidade, uma vez que estes incorporam potencialmente todos os media anteriores, diluem as especificidades de cada um, facilitam a intertextualidade e sua mestiçagem (Stam, 2002: 235).

Neste sentido, vão surgindo experiências que apontam para a exploração de novas formas e questionamentos. Em primeiro lugar, porque o acesso aos media digitais se generalizou (ao mesmo tempo que criou novos excluídos) e contribuiu para o desenvolvimento de novas práticas sociais de utilização da imagem. Estas levaram a que, por vezes, indivíduos, “grupos locais” (ou profissionais), adotassem os meios tecnológicos de modo alternativo como instrumento de memória, de expressão, de reivindicação ou de mediação. Às imagens históricas cada vez mais acessíveis juntam-se as imagens produzidas pelos atores sociais locais, agora disponíveis aos investigadores de terreno. Ao mesmo tempo em que se questionam as representações clássicas da antropologia, o trabalho do antropólogo confronta-se frequentemente com outras representações, tornando-se cada vez mais trabalho de terreno e trabalho em arquivos pessoais, familiares, institucionais.

Eram também questionadas as representações clássicas, de natureza descritiva objetivista (Marcus e Fisher, 1986 Canevacci, 2001), na antropologia e apresentadas como alternativas representações críticas (crítica cultural) e a justaposição como forma de comparação. Esta foi uma técnica central das vanguardas ocidentais pelo uso de colagens, de montagem e junção, pela criação de fatos visando surpreender ou desfamiliarizar, técnicas que até certo ponto foram partilhadas de maneira mais prosaica pela antropologia crítica e pela reflexividade ( Nas ciências sociais: Kilani, 1995; Ulrich et all, 2000; Ghasarian, 2002; no cinema:Shohat e Stam, 2002;  na Antropologia Visual: Jay Ruby, Marc-Henri Piault, 2000). Remetemos para a experiência da escrita como processo de investigação (Richardson, 1994; Ribeiro, 2003), para as novas concepções de terreno (lugar de colaboração e de descrição densa), para a ideia de “descolonização pela imagem” desenvolvida por Piault (2000: 235-240) e para os filmes Trobriand Cricket: An Ingenious Reponse to Colonialisme (1975), de Jerry Leach, e First Contact (1984), de Bob Connoly e Robin Anderson – uma reflexão consciente, deliberada, de um povo sobre si próprio, de um habitante da Papua Nova Guiné confrontando-se com as imagens do primeiro encontro com o homem branco e com o ato de tornar o passado presente através da voz das pessoas que testemunham este primeiro encontro.

Esquematizamos assim, baseados na entrevista de Elizabeth Sussex a John Grierson (Sussex, 1972: 29-30),a relação do documentário e da antropologia como a exploração criativa da realidade, como real imaginado.

Documentário

Antropologia

O primeiro momento é, obviamente, o relato da viagem… (os operadores Lumière espalharam-se pelo mundo, como os operadores de Albert Kahm, ou os exploradores entre os quais se encontrava Flaherty, Thomaz Reis e muitos outros, alguns desconhecidos estão associados a outras atividades; exploração de minerais, construção de linhas de caminho-de-ferro. No início, também a antropologia se baseava no relato de viagens dos exploradores, viajantes, funcionários das administrações coloniais, missionários, comerciantes. Só em 1913 aparece a referência ao trabalho de campo realizado por um «trabalhador privado», realizado por um especialista da etnografia (W.H.R.Rivers).
O segundo é o da descoberta de Flaherty de que se pode fazer um filme sobre as pessoas no local, isto é, que se consegue uma compreensão dramática, um padrão dramático, no local, com as pessoas. Mas é claro que ele fez isso com povos longínquos e nesse sentido foi um romântico. Malinowski, na mesma época, desenvolve uma atitude semelhante, ou seja, de um investigador isolado empreender o trabalho de campo junto de povos longínquos, captando o ponto de vista do nativo. Também foi criticado, sobretudo, a partir da publicação de Um diário no sentido estrito do termo.
O terceiro é o nosso capítulo, o que descobre o drama vivido à soleira da nossa porta, o drama do quotidiano (ver Grierson). A antropologia em casa ou de regresso a casa depois da fase colonial. Manteve-se, porém, objetivista e orientada para as margens sociais.
Há um quarto capítulo, o que é muito interessante, e esse seria aquele no qual as pessoas começam a falar, não sobre como fazer filmes sobre as pessoas, mas com as pessoas… [a partir dos anos 60 desenvolveram-se múltiplas experiências de participação que pretendiam ir além das iniciada por Flaherty] (Sol Worth e Adair, Chaffen Rouch, Macdougall) . A partir do final dos anos 60 do séc. XX, com a independência dos países colonizados, os povos adquirem voz e participam na investigação. É, no entanto, a partir dos anos 80, que a relação entre os antropólogos e os sujeitos do inquérito é concebida como um instrumento heurístico.
No entanto, o capítulo seguinte, o de fazer filmes com indivíduos para isso treinados, tem o problema de se estar a fazer filmes com pessoas e depois partir de novo. Ora, eu vejo o próximo capítulo como o de fazer filmes de fato no terreno, e aqui sigo as ideias de Zavattini. Uma vez Zavattini fez um discurso muito engraçado em que dizia que seria ótimo se todas as aldeias italianas fossem equipadas com câmeras para que pudessem fazer filmes sobre elas próprias e escrever cartas em cinema umas às outras, e isto era para ter uma grande piada. Eu fui a única que não se riu, porque me parece que o próximo passo é – não os aldeões a mandarem cartas de cinema uns aos outros, mas eles próprios a fazerem filmes, onde coloquem questões políticas ou de outra natureza e até a expressarem-se em termos jornalísticos ou noutros. (Sussex 1972: 29-30) Também na antropologia se desenvolvem experiências desta natureza, uma antropologia cada vez mais colaborativa, sobretudo na antropologia pós-colonial. Justaposição de pontos de vista: Writing Culture (Clifford e Marcus), Anthropology as Cultural Critique(Marcus e Fisher),(Appadurai)…. texto sobre os aborígenes…  Marcus e Fisher

 

3.      Cinema e antropologia segundo Laplantine – lições de cinema para a nossa época

Finalmente, para o antropólogo Laplantine, quando falamos de cinema e antropologia, algumas considerações (breves) me parecem relevantes. Em primeiro lugar, tanto a etnografia como o cinema se interrogam sobre o que é a realidade e como se relacionam com a realidade e com o imaginário (interrogam-se sobre o real imaginado) ou como o cinema e a antropologia modelam a realidade. Cinema e antropologia partem ou prestam particular atenção ao detalhe (ver etnografia como atenção ao detalhe), a partir do qual e com o qual se constrói o argumento ou a narrativa. Poderemos, tanto no cinema como na antropologia, encontrar duas polaridades: 1) uma representação mais instrumental, didática, demonstrativo ou resolutivo, organizado a partir de um sentido unívoco, deixando uma limitada liberdade de interpretação ao espectador, criando um espetador mais receptivo que ativo; 2) outra representação mais estética cinematográfica ou literária que deixa mais espaço ao espectador para a procura e construção de sentido como experiência do sensível (o visual e o sonoro mais que isso). Cinema poder-se-á dizer que é um produto da indústria cultural, mas com uma forte componente artística, como a antropologia se define frequentemente como arte – mais artística das ciências (arte de realização trabalho de campo, da escrita e da produção audiovisual, mas também porque baseada na observação, no olhar/ver e no escutar/ouvir)

A singularidade do cinema é ter à sua disposição imagens e sons juntos no que denominamos por plano ou, o que poderemos denominar em antropologia, o ver e o escutar (a observação visual e auditiva), meios de expressão, artes do tempo e do movimento. No plano como se concentra uma forma de “descrição densa”, fragmento tirado da realidade e da representação pelo enquadramento e pela duração. A criação cinematográfica é, assim, a tensão entre o plano e a relação, o raccord, com outro plano. No plano é mostrada a relação do realizador com sujeito (as pessoas e as suas circunstâncias) filmado, na montagem a relação do material filmado com a ideia e o projeto do montador ou do realizador e deste e com o público. Muitos destes processos resultam da planificação e controle, mas também e, sobretudo, do que lhe escapa a essa planificação e controle – a espontaneidade, imprevisibilidade, o acaso. Também neste caso antropologia e cinema se encontram, como poderemos verificar na metodologia de montagem preconizada por Vertov, e que em tudo se assemelha ao processo de investigação.

As questões éticas e políticas no filme implicam assim a presença e as relações com as pessoas, acontecimentos, circunstâncias e documentos filmados e o espaço-tempo da sua realização, mas também as escolhas no tratamento da tensão, da relação entre planos – a montagem. Ocultos a teoria, os fluxos de informação, a sensibilidade que informam o processo.

No que diz respeito à relação entre política e cinema, Laplantine afirma que ambos se podem colocar do lado do poder (ou da ideologia), do espetáculo (o cinema ou o outro exibido como espetáculo) ou do lado da resistência, ou seja, “ao contrário de um mundo hoje saturado de imagens obscenas e de seus sons ensurdecedores convergindo tudo no mesmo sentido” (Laplantine, 2007:22) e interroga-se: como resistir, subverter ou contrapôr ao “bulldozer comercial que visa parecer, lisonjear, seduzir, convencer, adormecer o espetador tomado numa relação de clientelismo”? (Laplantine, 2007:22). A história do cinema aponta três formas de resistência – o cinema de autor, transformação geográfica (geopolítica) pela multiplicidade das cinematografias a partir de múltiplos continentes e a desideologização, sobretudo, do documentário. A reflexão sobre estas formas de resistência levar-nos-ia muito longe. A jovem realizadora iraniana Samira Makhmalbaf afirma: “três métodos de controle externos reprimiram o processo criativo dos cineastas do passado: o político, o financeiro e o tecnológico. Hoje, com a revolução digital, a câmera pode ignorar essas formas de controle e ficar à disposição do realizador”. Seremos assim tão otimistas?

Tentamos explorar algumas relações entre a antropologia e o cinema. O amplo campo de análise e reflexão está densamente povoado de práticas cinematográficas desenvolvidas por antropólogos e pela prática da antropologia, ainda que, por vezes, implícita, dos cineastas. Não deixa mesmo assim de ser um amplo campo de trabalho que urge explorar em paralelo à realização do trabalho de campo em antropologia e cinema. Na verdade como refere Aumont “os cineastas e os teóricos do cinema entendem não ser possível o estudo do cinema sem o recurso às ciências sociais e à antropologia” (Aumont,1989:296).

 

José da Silva Ribeiro é Doutor em Antropologia. Professor de Antropologia e Antropologia Visual, Media e Mediações Culturais e Antropologia e Cinema. Investigador do Centro de Estudos das Migrações das Relações Interculturais, coordenador do Laboratório de Antropologia Visual, Universidade Aberta. Professor visitante da ECA/USP. Investigador associado do CEDIPP da ECA/USP. Coordena rede de grupos de investigação Imagens da Cultura / Cultura das imagens. Desenvolve atualmente investigação em Antropologia Visual e Hipermédia e Antropologia Virtual / Digital e os projetos Imagens e sonoridades das migrações, Interculturalidade afro-atlântica, Imagens, cultura e desenvolvimento local. Principais pulicações: Métodos e Técnicas de Investigação em Antropologia (2003); Colá S. Jon. Oh que Sabe! as imagens, as palavras ditas e a escrita de uma experiência ritual e social, (2001) e Antropologia Visual: da minúcia do olhar ao olhar distanciado (2004); filmes: Onde os Tambores se Inventam; Colá S. Jon. Oh que Sabe! (1997); Com Sérgio Bairon, Congada de Nossa senhora do Rosário (2005) e Hipermedias: Antropologia Visual e Hipermedia (2004) e Coroação de reis Congo (2006) e cerca de 20 filmes de investigação. Editor da Revista  Digital ICCI e do Portal Itacaproject.

 

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NOTAS


[1] http://cinema.anthropologie.free.fr/ Sítio da associação para a apresentação de projectos às instâncias públicas e para responder à falta de visibilidade da antropologia audiovisual na Europa e em África.

[2] www.ethnodoc.org/ Organização cultural para a organização da base de dados de filmes etnográficos e da distribuição de filmes.

[3] http://lugardoreal.com/ Sítio de visionamento do documentário, de filmes e vídeos escolares e da fotografia documental, criado e gerido pela Ao Norte – Associação de Produção e Animação Audiovisual que pretende a valorização do documentário, alargando o visionamento de obras condenadas a uma divulgação residual, disponibilizando-as para fins pedagógicos, de investigação e culturais. Uma base de dados que facilite aos programadores a selecção de documentários e de outras obras audiovisuais para projecção em sala; um encontro com “outros olhares” – registos na área da antropologia visual, depoimentos, memórias, entrevistas, imagens de arquivo, etc.; uma janela das obras realizadas pelos alunos das escolas de cinema e de audiovisuais; um ponto de encontro dos projectos levados a cabo pelas escolas do ensino básico e secundário e por outras entidades interessadas na literatura audiovisual; uma plataforma de divulgação da fotografia documental, entendida como memória do séc.XX.

[4] http://afro.itacaproject.com/ Neste projeto pretende-se divulgar e atualizar a produção escrita e audiovisual realizada e proceder à montagem, produção teórica, organização de base de dados da informação recolhida sobre a culturalidade afro-atlântica.

[5] http://ism.itacaproject.com/ O projeto visa a recolha, organização e a disponibilização online de informação fílmica, sonora e documental sobre as migrações em Portugal e na diáspora. A base de dados pretende articular e potenciar conteúdos em linguagens e suportes diversificados como importantes fontes de conhecimento e a sua utilização em contextos educativos, científicos, ou de actividades de dinamização cultural, social e cívica. O dispositivo e disponibilização de uma grelha de leitura e análise de filmes elaborada de forma interactiva têm como objectivos facilitar a aquisição de competências de utilização da informação bem como promover a construção colaborativa de conhecimento por um universo alargado de utilizadores.

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