O REAL E A POÉTICA DO COTIDIANO EM VIAJO PORQUE PRECISO VOLTO PORQUE TE AMO E AVENIDA BRASÍLIA FORMOSA
*Este artigo foi publicado no livro Salve o Cinema II, organizado por Fábio Henrique Nunes Medeiros e Taiza Mara Rauen Moraes, Editora da Univille, Joinville, 2011.
Por Alexandre Figueirôa
Introdução
Estamos atravessando nos últimos anos uma considerável expansão do filme documentário na paisagem da produção audiovisual. Francisco Elinaldo Teixeira assinala com exatidão, na introdução da coletânea de ensaios intitulada Documentário no Brasil – Tradição e Transformação esta fase de entusiasmo em torno do cinema de não-ficção ao afirmar que “preso ao real como matéria-prima de base e referente insubstituível, o campo do documentário se apossa e se alimenta de novos materiais das realidades virtuais emergentes, reatualizando-se e compondo peças híbridas de grande impacto expressivo e comunicacional” (TEIXEIRA, 2004: p.7). Se lançarmos um olhar no audiovisual contemporâneo não teremos dúvida de tal vitalidade. No Brasil e no mundo, as narrativas documentárias conquistam lugar de destaque com obras relevantes ocupando não apenas as salas de exibição do circuito alternativo, mas, aos poucos, ganhando espaço até mesmo nas salas comerciais.
A multiplicação de festivais e mostras, estudos, debates acadêmicos e publicações dedicadas ao documentário exigem dos estudiosos do audiovisual uma constante renovação do conhecimento produzido sobre esta forma de apreensão do mundo, cuja trajetória foi acionada no final do século XIX quando o cinema ainda dava seus primeiros passos. O documentário chega aos dias de hoje repleto de indagações e proposições narrativas potencializadas com os novos dispositivos tecnológicos de produção de imagem. O uso de câmeras de vídeo e as câmeras digitais não reinventam uma estilística para o documentário como bem observou Brian Winston em uma das conferências do festival É Tudo Verdade, mas expandem os processos de representação da realidade. Equacionar, portanto, algumas destas experiências nos parecem essencial.
Em constante movimento, a linguagem cinematográfica precisa ser confrontada e é isto que tentaremos fazer aqui a partir de recortes precisos os quais certamente não terão a pretensão de abarcar todas as experiências do audiovisual de não-ficção. Assim, nos debruçaremos sobre duas vertentes que consideramos fundamentais no documentário moderno: o cinema verdade e o cinema direto. A partir dos enunciados de pensadores como Bill Nichols, Fernão Ramos, Guy Gauthier, Francisco Elinaldo Teixeira, entre outros, vamos procurar entender e refletir como estes modelos narrativos, cujos princípios estilísticos se confundem, desde sua eclosão no final dos anos 50 e início dos anos 60, e ainda ecoam no audiovisual brasileiro contemporâneo.
Porém, os ecos deste cinema verdade/direto nos quais estamos interessados têm endereço certo. São aqueles registrados em dois filmes recentes: Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo (2010), de Marcelo Gomes e Karin Aïnouz e Avenida Brasília Formosa (2010), de Gabriel Mascaro. Lançados no final desta primeira década do século XXI, eles são ótimos exemplos de como a linguagem do documentário é ainda um laboratório de experimentos capaz de nos surpreender. Esses dois filmes, em suas distintas propostas estéticas, estimulam olhares sobre o cinema, o qual graças aos seus artifícios narrativos e às articulações híbridas de sua própria trajetória como expressão audiovisual, emerge como exercícios singulares de capturar o real. Um real marcado pelo prosaico, onde uma poesia do cotidiano ganha forma e se traduz por meio de elementos da tradição do cinema verdade/direto, mas cujas premissas são constantemente questionadas e reinventadas em um diálogo rico e diverso.
Um olhar sobre o passado
Não podíamos encetar uma reflexão sobre o tema sem lembrar, ao menos em pinceladas rápidas, que a trajetória do documentário brasileiro sonoro tem como principais referências dois movimentos. O primeiro deles é o período entre os anos 30 e 50, com a criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo e a presença incontornável do cineasta Humberto Mauro. A importância de Mauro deve-se principalmente aos inúmeros filmes educativos por ele realizados e a série Brasilianas, um inventário da memória e das belezas naturais do país. O segundo ocorre nos anos 60, quando a produção documentária experimenta uma íntima relação com o Cinema Novo, ponte de ligação com as transformações e inovações estilísticas do documentário oriundas das experiências do cinema direto e do cinema verdade no panorama mundial.
O pesquisador Fernão Ramos observa que “o cinema verdade/direto constitui o primeiro momento de ruptura ideológica com o universo documentarista griersoniano” (RAMOS In.: TEIXEIRA, 2004:81). A afirmativa de Ramos é fundamentada nas crenças que nortearam o surgimento desta ruptura no final dos anos 50, quando o documentário rejeitou parte dos pressupostos da tradição dos anos 30 que a escola documentarista inglesa capitaneada por John Grierson havia sistematizado. Grierson estabeleceu regras e códigos para o cinema documentário no sentido de adequá-lo a uma organização do real a partir de uma linguagem social. Contou com um grupo de intelectuais e cineastas inovadores, como o brasileiro Alberto Cavalcanti, que trouxe contribuições notáveis, sobretudo quanto à utilização do som e com a ideia do documentário como uma forma de “tratamento criativo da realidade”. Contudo, o atrelamento governamental, o uso da encenação para reconstituir os temas abordados, além de apenas constatar os acontecimentos sem propor soluções para resolvê-los, deu ao documentário britânico uma visão essencialmente reformista.
O cinema direto, neste sentido, renovou a concepção e a finalidade do documentário. A principal intenção dos seus realizadores era eliminar a estetização do real em favor da própria palavra dos sujeitos filmados e não apenas adicionar um discurso sobre sequências devidamente organizadas na montagem. Os primeiros defensores do direto surgiram nos Estados Unidos e no Canadá sob influência da televisão, o aparecimento de equipamentos leves e ágeis e do gravador Nagra. Estilisticamente, o cinema direto recorria a planos longos e o uso de câmera na mão, além de usar entrevistas e depoimentos com som direto sincronizado. Segundo Ramos, a proposta ética do cinema direto atacava a encenação não revelada da escola clássica do documentário e enfatizava a ideia da não-intervenção do realizador, ou seja, o registro de imagem e som era simultâneo e sem diálogos escritos e programados.
O modelo de não-intervenção do cinema direto, porém, passaria a ser questionado por conta de uma pretensa objetividade – quase absoluta – embutida nos seus princípios estilísticos, realçados pelo esquema “mosca na parede” de sua proposta, em que o realizador veria tudo, mas não interferiria em nada. Esta inflexão ideológica abriria caminho para que os franceses Jean Rouch e Edgar Morin propusessem a expressão “cinema verdade” ao lançarem, em 1960, o documentário Crônica de um Verão. O filme utiliza as mesmas técnicas do cinema direto, mas seus realizadores acrescentam uma nova atitude estética e moral, como atestam Jacques Aumont e Michel Marie: “os cineastas participam da evolução da pesquisa e da filmagem, eles não procuram esconder nem a câmera nem o microfone; eles intervêm diretamente no desenvolvimento do filme, passando do status de autores a de narradores e personagens” (AUMONT e MARIE, 2001: p.34). Para Rouch e Morin a câmera é concebida como um instrumento de revelação da verdade dos indivíduos e do mundo. Fernão Ramos assinala, no entanto, que embora contorne a ética não-intervencionista do cinema direto, o cinema verdade não negaria o fato desta “ter sido pensada dentro de um horizonte no qual se acreditava na objetividade de uma verdade” (RAMOS In.: TEIXEIRA, 2004: p.83). A expressão cinema verdade, como observa boa parte dos teóricos, por suas ambiguidades também passaria a ser questionada.
A despeito destes conflitos ideológicos, no Brasil os princípios estilísticos do cinema verdade e do cinema direto mesclam-se em diversas realizações que marcam a produção dos anos 60, tanto no núcleo da geração cinemanovista com Paulo César Sarraceni (Arraial do Cabo, 1959; Integração Racial, 1964), Arnaldo Jabor (Opinião Pública, 1967), Joaquim Pedro de Andrade (Garrincha, Alegria do Povo, 1963), Leon Hirszman (Maioria Absoluta, 1964), entre outros, quanto nos realizadores paulistanos ligados ao cineasta Thomas Farkas – Geraldo Sarno (Viramundo, 1965), Paulo Gil Soares (Memória do Cangaço, 1965), Maurice Capovilla (Subterrâneos do Futebol, 1970). Podemos resumir estes princípios com o uso intenso de entrevistas e depoimentos, mas também pela casualidade do conteúdo das tomadas, muitas delas improvisadas. Até mesmo na ficção como é o caso de Câncer (1968-1972), Glauber Rocha flerta claramente com este tipo de narrativa ao explorar tomadas em som direto e o uso de câmera na mão, fazendo que a interpretação dos atores seja marcada pela improvisação e a vivência do momento da filmagem. Jean-Claude Bernardet no clássico ensaio Cineastas e Imagens do Povo ao se debruçar sobre esta produção demonstrou como esta crença de dar voz ao outro resultou “em imagens cinematográficas marcadas pela relação entre os cineastas e o povo brasileiro” (BERNARDET, 1985:6). Relação que não atuou apenas na temática dos filmes, mas também na linguagem, palco dos conflitos ideológicos e estéticos dos cineastas brasileiros em relação à temática popular, o que configurou o que Bernardet classificou como modelo sociológico. Nos filmes destes realizadores, o documentarista permanece oculto com sua voz identificando-se com a voz do mundo real e que pretenderia mostrar a vida como ela era.
Algumas pontuações sobre o presente
Não seria, portanto um exagero afirmar, numa certa medida, que boa parte dos documentários realizados hoje no Brasil teria herdado esta característica de que o cinema tem a missão de revelar o país aos próprios brasileiros e que a estética dominante, como insiste Fernão Ramos, seria a mesma do cinema verdade:
“Embora não seja um estilo homogêneo, nossas últimas produções documentárias têm um débito evidente para com esta tradição. Mais importante ainda, a questão ética, central para o fazer documentário, é pensada inteiramente dentro do universo ideológico do Cinema Verdade. Dois de nossos principais documentaristas, Eduardo Coutinho e João Salles, desenvolvem trabalhos marcados por este estilo”. (RAMOS In.: TEIXEIRA, 2004:p.94)
É fácil reconhecer no trabalho de Eduardo Coutinho, autor de um dos documentários mais importantes da cinematografia nacional, Cabra Marcado Para Morrer (1981-1984), a filiação ao que propôs Rouch e Morin. Em seus filmes, Coutinho assume que a realidade altera-se a partir do momento que uma câmera se coloca diante dela. Ele, todavia, tira proveito deste acontecimento fílmico e articula uma expressividade imagética construída a partir deste encontro entre aquele que filma e o seu objeto. Procedimento que extrapola a filmagem em si e desdobra-se também na montagem. Cabra Marcado… é um excelente exemplo deste recurso ao retomar um projeto inacabado nos anos 60 sobre as ligas camponesas no interior do Nordeste. Coutinho reencontra a viúva de um líder camponês assassinado e a transforma em protagonista do filme que se constrói a partir das imagens do projeto inacabado e o reaparecimento da viúva, tudo isto sendo mostrado ao espectador.
Outro filme com traços nítidos do cinema verdade é Notícias de uma Guerra Particular (1999), de João Moreira Salles. Feito para a televisão, ele inicialmente era um documentário sobre um grupo de dança de um morro carioca. Mas, ao chegar ao local, o cineasta deparou-se com uma realidade muito mais forte e imediatamente transformou seu projeto. Contrapondo-se a realidade oficial dos telejornais, Salles mergulhou no universo do tráfico e revelou, ao público, locais e situações que eram visitadas pelos noticiários sensacionalistas, mas com uma perspectiva completamente diferente. Ele usa depoimentos fragmentados para mostrar as diversas posições dos personagens envolvidos e dá visibilidade a uma parcela da população urbana que convive com a violência em seu cotidiano. Aliás, o tema da violência, vai reverberar não apenas no documentário quanto no cinema de ficção, a exemplo de Ônibus 174 (2003), de José Padilha; Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, entre muitos outros.
As realizações mais recentes, todavia, vão jogar mais lenha na fogueira no campo do documentário brasileiro. Francisco Elinaldo Teixeira expõe isto muito bem ao descrever como nos últimos anos o jogo de estratégias operadas no âmbito da representação cinematográfica vem provocando deslocamento dos modelos narrativos consagrados. As tendências atuais mesclam experiências formais que tanto podem reafirmar os cânones clássicos do documentário, acirrando a oposição entre o real e a ficção, quanto os colocando lado a lado ou os tornando indiferentes fazendo com que os produtos resultantes trafeguem nas rotas do hibridismo. O importante, no entanto, é lembrar o que nos aponta Bill Nichols:
“Os cineastas são frequentemente atraídos pelos modos de representação do documentário quando querem nos envolver em questões diretamente relacionadas com o mundo histórico que todos compartilhamos. Alguns enfatizam a originalidade ou a característica distintiva de sua própria maneira de ver o mundo: vemos o mundo que compartilhamos como se filtrado por uma percepção individual dele. Alguns enfatizam a autenticidade ou a fidelidade de sua representação do mundo: vemos o mundo que compartilhamos com uma clareza e uma transparência que minimizam a importância do estilo ou da percepção do cineasta”. (NICHOLS, 2005:20)
Isto, a meu ver, nos coloca perante um dos principais desafios para quem se lança ao desafio de realizar documentários: como apreender a realidade do mundo, assumindo claramente o papel de mediador ou narrador e respeitando esta realidade, como preconizava André Bazin nas suas análises sobre o realismo no cinema? Ou seja, como organizar a realidade filmada na tela sem incorrer na pretensão de negar o tratamento criativo proposto por Grierson e ao mesmo tempo comprometer-se com os acontecimentos e os protagonistas destes acontecimentos permitindo-lhes que eles se revelem diante das câmeras?
Poéticas do cotidiano, revisitando o cinema verdade de braços abertos
Para tentar responder às indagações colocadas acima chegamos finalmente aos produtos audiovisuais que de alguma forma desencadearam a reflexão proposta neste artigo. O primeiro deles é Avenida Brasília Formosa, documentário de Gabriel Mascaro, realizado em 2010. Ele foi exibido em diversos festivais pelo mundo afora, inclusive o prestigiado Festival de Roterdã, na Holanda, e a exemplo de seu trabalho anterior, Um Lugar ao Sol, recebeu elogios da crítica e despertou a atenção dos aficionados do cinema documental. Mascaro tem se mostrado um artista sensível capaz de nos impressionar com seu olhar original sobre os temas aos quais se debruça e em sua trajetória denota ser um herdeiro legítimo do cinema verdade no Brasil, sobretudo na construção de uma poética do cotidiano.
Em KFZ-1348 (2009) – seu primeiro filme, realizado em parceria com Marcelo Pedroso, apesar de certa insegurança na articulação da narrativa, Mascaro já dera indícios de maturidade e perspicácia pela forma como acompanhou a trajetória dos 40 anos de um fusca, fabricado em 1965, a partir das histórias de seus oito proprietários. O filme, feito inicialmente para a televisão, ganhou em seguida uma versão maior para ser exibida nas salas de cinema e conquistou, entre outros, o Prêmio Especial do Júri da 32ª Mostra Internacional de São Paulo. A história do carro serve de ponto de partida para uma investigação da subjetividade e do dia-a-dia de seus proprietários, cujas histórias pessoais se entrelaçam com a história recente do Brasil. O aspecto mais interessante levantado pelo documentário é como o veículo vai sendo ressignificado dentro da sociedade brasileira e como ele serve de agente na construção de um retrato multifacetado do país com destaque para as diferenças étnicas, sociais e culturais. Na medida em que os anos passavam e o carro mudava de mãos, ele ia se desvalorizando e chegando às classes menos privilegiadas, embora não perdesse o seu valor como bem simbólico. A partir deste mote, Mascaro problematizou os conceitos de concentração de renda e as relações entre centro e periferia, ao mesmo tempo em que revelou as movimentações de um objeto por estratos sociais e regiões geográficas diferentes.
No seu trabalho seguinte – Um Lugar ao Sol (2009) – ao discorrer sobre o universo dos moradores de coberturas, Mascaro revelou um domínio preciso na abordagem dos personagens e, a partir de uma organização do material registrado, traçou um painel inusitado do universo de seus entrevistados. O resultado mais instigante do documentário foi desenhar um quadro da desigualdade social brasileira sem recair no recurso usual de dar voz aos grupos marginalizados da sociedade nem aos excluídos. As contradições, os conflitos, as idiossincrasias dos entrevistados vinham à tona a partir do discurso e da postura por eles enunciados. Isto, aliado ao olhar da câmera, cujo ponto de vista era o alto dos edifícios de luxo no Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, configurou com maestria o significado do status ostentado pela classe média e a ilusão por ela desejada de poder e domínio. Neste seu segundo documentário, o realizador não se furtou a mencionar que esta experiência seguiria de certa maneira o modo de realização proposto por Eduardo Coutinho. A exemplo de seu modelo, Mascaro concentra-se no instante da filmagem extraindo dos entrevistados todas as possibilidades, abrindo seu olhar e ouvidos para o presente de forma a evitar ideias preconcebidas sobre o assunto tratado.
Em Avenida Brasília Formosa, Mascaro voltou seu olhar para os moradores da comunidade de Brasília Teimosa, bairro incrustado numa área privilegiada da orla marítima da cidade do Recife e que nos últimos anos vem sofrendo uma transformação significativa após a retirada das palafitas erguidas à beira-mar e a paulatina reorganização urbana ao qual a comunidade vem sendo submetida. O local é emblemático na história sócio-econômica da capital pernambucana, tanto pelo seu passado de lutas na ocupação da área, quanto pela organização dos seus moradores para continuar lá residindo. Mais uma vez o cineasta escapou do lugar comum e em vez de recorrer ao formato grande reportagem com depoimentos articulados para contar a história da comunidade e as inevitáveis sobreposições que acabam transformando o documentarista em jornalista, ele constrói um painel poético do bairro. A Brasília Teimosa que emerge da tela é um espaço de desejos, de fragmentos de memória, de pequenos gestos cotidianos desenhados a partir de quatro personagens que nos são apresentados como se andássemos a esmo pelas ruas do lugar.
Um pescador, que foi alocado em outro bairro com a derrubada das palafitas; um garoto, no dia de seu aniversário; uma manicure, aspirante a participante do Big Brother; e um garçom, videasta são o fio condutor desta nova Brasília Teimosa que se descortina, diante do espectador, impregnada por uma curiosa mistura de narrativa documentária e semi-ficcional. Os protagonistas interpretam a si próprios e desempenham seus papéis sem traumas ou hesitações. Se por vezes eles parecem representar, em determinados momentos eles assumem uma naturalidade espantosa diante da câmera que, por outro lado, evita explicações pré-estabelecidas e apenas os acompanha.
A engenhosidade do filme reside justamente na escolha destas figuras e, neste sentido, Fábio, o videasta, é um achado formidável, pois ele torna verossímil a desenvoltura dos demais face à mediação da imagem que o documentário estabelece. Também o processo metonímico da narrativa é fundamental para tal eficiência. A forma como os espaços por onde os personagens circulam é apresentada esboça uma arquitetura visual e sonora orgânica e funcional. Ela concretiza em nossa percepção a representação imagética de uma realidade fílmica cuja correspondência tanto pode remeter ao bairro real incrustado na bacia do Pina, caso o espectador o conheça, quanto, para quem nunca ouviu falar de Brasília Teimosa, ao espaço simbólico de uma comunidade de classe média baixa, que simplesmente toca a vida. Por essas razões e pela beleza e sinceridade das imagens, Avenida Brasília Formosa é um filme instigante, pois em muitos momentos lembra-nos claramente o modelo estilístico do cinema direto, cuja câmera limita-se a observar as coisas como elas acontecem e deixe a palavra com os moradores de Brasília Teimosa no melhor estilo do grande documentarista do cinema direto canadense Pierre Perrault, embora, ao mesmo tempo, Mascaro use a encenação como forma expressiva e interaja com os participantes.
O hibridismo da experiência de Avenida Brasília Teimosa, no entanto, é inteligentemente estruturado pelas altercações entre o ponto de vista “neutro” do realizador e o ponto de vista construído dentro do próprio documentário a partir do olhar do videasta amador que funciona como alter ego do documentarista, mas que não perde sua autonomia de co-autor da narrativa. É o que Teixeira denomina cinema do vivido, porque o realizador faz da fabulação um ato que é transmutação do vivido e não mera confirmação de identidades dadas e situadas antecipadamente. Neste ato de fabulação o cineasta e o personagem real inventam e se intercedem em processos de subjetivações em suas contínuas metamorfoses (Teixeira, 2004:50).
O segundo filme que gostaria de abordar neste texto nos traz um elemento que torna ainda mais complexa as relações que estamos pretendendo estabelecer entre a produção audiovisual brasileira contemporânea e o cinema verdade/direto, pois a rigor não poderíamos escrever em letras garrafais que ele seria um documentário, no sentido amplo do termo. Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo, de Marcelo Gomes e Karin Aïnouz, situa-se na zona que Francisco Elinaldo Teixeira descreve como sendo “o campo de uma indiscernibilidade”, ou seja, na sua forma de trabalhar ele lança “ao espectador a dúvida quanto à exata natureza daquilo a que assiste” (TEIXEIRA, 2004:59), pois os limites entre o documentário e a ficção estão borrados e o diagnóstico pode rumar para qualquer direção, inclusive para um campo ainda mais difuso que é o do cinema experimental. De qualquer forma é bom ressaltar que o diálogo documentário/ficção não é necessariamente uma novidade, bem como o documentário ser fonte para obras experimentais.
O documentário, como pontua Nichols, muitas vezes procura transmitir aos espectadores a sensação de envolvimento emocional ou comprometimento com as pessoas e questões retratadas. O neorrealismo italiano, inclusive, contribuiu para “demonstrar que essa forma de estilo narrativo criou um fio comum entre ficção e não-ficção, que permanece até hoje: contar uma história ou dar voz a visão do mundo histórico não precisam ser vistos como alternativas polarizadas” (NICHOLS, 2005: p.129). No cinema brasileiro dos anos 50 temos O Canto do Mar (1953), obra ficcional de Alberto Cavalcanti, mas em que vemos claramente a influência da escola documental britânica, da qual o cineasta havia participado; e também Rio 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, cuja matriz narrativa é o neorrealismo italiano, o qual pode ser encarado como uma crônica documentária da vida carioca. Os realizadores do Cinema Novo em vários momentos de suas trajetórias aproximaram as linguagens do documentário e da ficção, a exemplo de Glauber Rocha, já citado acima e Leon Hirszman que fez ABC da Greve (1980-1989) como laboratório político e dramático de Eles Não Usam Black-Tie (1981). Na produção recente também é incontestável a matriz documental de obras ficcionais como Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles; Carandiru (2002), de Hector Babenco; Narradores de Javé (2003), de Eliane Caffé; e Amarelo Manga (2003), de Cláudio Assis.
No campo do cinema experimental, a relação com o real abre-se num leque de muitas possibilidades narrativas. Nos documentários experimentais quase sempre estará presente uma ideia de oposição, desafio ou desconstrução dos modelos convencionais. Em O Homem com a Câmera (1929) Dziga Vertov nos anos 20 já opera neste sentido demonstrando como a impressão de realidade é construída. O filme, por meio da montagem, leva o espectador a refletir sobre este processo. Em geral, este gênero de documentário é marcado pela reflexividade e embora eles tratem do realismo é o modo de representação mais consciente de si mesmo, como assinala Nichols (NICHOLS, 2005:166). No Brasil um cineasta que trafega neste campo é Arthur Omar. Ele se opôs ao documentário classificado por Jean-Claude Bernardet de modelo sociológico e chegou mesmo a afirmar alguns de seus trabalhos como antidocumentários, do qual o longa-metragem Triste Trópico (1974) é um marco. Nos filmes de Omar a inter-relação entre sons e imagens tem como ponto de partida a negação do cinema documentário convencional. Ele absorve as formas de funcionamento destes documentários e desfaz a ordem e subordinação com que as faixas sonora e imagética aparecem organizadas (RAMOS In.: TEIXEIRA, 2004:123).
Marcelo Gomes e Karin Aïnouz em Viajo Porque Preciso Volto Porque te Amo trabalham abertamente com os limites entre a ficção e o documentário e também entre o industrial e o artesanal. O projeto do filme, na verdade inicia-se em 2004 quando Gomes e Aïnouz realizaram o documentário experimental Sertão de Acrílico Azul Piscina, no qual por 20 minutos imagens nem sempre perfeitas obtidas com câmera Super 8, digital high 8, fotografias desfilam diante de nossos olhos para formar um caleidoscópio cromático aparentemente desencontrado, mas de onde emerge um lirismo envolvente em que não se necessita buscar uma causalidade para contemplá-las. A visão do filme – um estudo imagético, sem as costumeiras sonoras de depoimentos, apenas acompanhado por músicas incidentais e som ambiente – nos inspira a repensar um monte de coisa: desde uma renovação do olhar sobre o sertão nordestino (cristalizado em tantos filmes sobre a região, repletos de estereótipos e clichês pitorescos) até a aceitar o desafio claramente proposto da necessidade do cinema, sempre que possível, investir na renovação de sua poética.
Em Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo, estão presentes toda a engenhosidade e poeticidade do documentário de 2004, agora refinadas em uma obra que, sem dúvida, representa um marco no cinema brasileiro contemporâneo. O filme foi exibido no Festival de Veneza, Itália, e como afirmaram os próprios realizadores “ele é uma desobediência de todos os parâmetros sistemáticos, a documentação de uma aventura construída dentro da fábula que é o cinema, no espaço da ficção e nas bordas do documental”. Gomes e Aïnouz brincam com os cânones clássicos da narrativa para entender como é fazer cinema no contexto atual, num mundo permeado por narrativas virtuais. O filme tem a marca da inspiração em cada sequência. Nele parece não existir limites para as possibilidades narrativas. Poderíamos facilmente classificá-lo como um road movie, em que um homem marcado por um amor distante – o narrador da história que nunca é visto (interpretado por Irandir Santos) – vagueia pelo interior do Nordeste e aos poucos vai reconstruindo para si e para o espectador a trajetória de sua paixão ferida. Contudo, acredito que estamos diante de um trabalho bem mais aberto e para o qual a designação prévia de um rótulo pode impedir a apreensão de seus artifícios mais instigantes, a começar pela voz em over que acompanha as imagens sem que saibamos ao certo por onde o narrador está trafegando.
Também não sabemos onde, no filme, feito a quatro mãos, está um ou outro dos realizadores. Pouco importa, Karim e Marcelo conseguiram uma simbiose perfeita de suas intenções. O filme também, paradoxalmente, sem ferir os princípios básicos de uma obra romanesca clássica, nos leva para um universo em que o texto visual e o texto narrado pelo protagonista se imbricam numa pluralidade de sensações que nos obriga durante toda a projeção a abrir mão de uma leitura superficial e a mergulhar na polifonia de ruídos e imagens. São elas que, articuladas numa superposição aparentemente aleatória, dão sentido ao entrecho e nos colocam no mesmo movimento do narrador. Um constante ir e vir ao mundo sensorial do visto e às reminiscências de uma consciência estilhaçada tanto por um amor perdido, quanto pelo questionamento das ações cotidianas, em que anotações sobre a geologia do terreno e a percepção dos detalhes dos habitantes da região são fragmentos de uma mesma dor. A dor do tempo que passa, das coisas que são esquecidas e da necessidade de seguir adiante.
Este trabalho em seu cerne evoca certamente uma aproximação com o documentário reflexivo, mas em vez de se opor, desafiar ou desconstruir modelos, ele desobedece. Coloca-se no que Raymond Bellour designa de uma poética de passagens cuja operacionalização ocorre pela via de um “entre-imagens” (BELLOUR, 1997:p.14) e instaura uma poética híbrida que dialoga com os signos do cinema verdade/direto (câmera na mão e vivência dos instantes), mas também com a videoarte, as artes plásticas e o discurso indireto livre atribuído a um narrador ficcional de quem só se conhece a voz e que podemos nos perguntar se não é a voz dos próprios realizadores. E como na tradição do cinema verdade brasileiro é mais um a revelar ao brasileiro o seu próprio país a partir de uma busca sem restrições e o desejo de reconfigurar parâmetros da imagem do Nordeste.
Este é um filme que mais uma vez demonstra o quanto a simplicidade de uma história, a principio prosaica e até banal pode, nas mãos de artesãos habilidosos, ser alçada a uma categoria incomum enquanto expressão artística. E isto só é possível graças a uma confrontação direta aos padrões estéticos convencionais em que se busca o salto qualitativo não apenas com formalizações estéreis, mas amalgamando sentimento e poesia em cada quadro, em cada movimento de câmera, na textura das cores e na intensidade irregular da luz. Olhos atentos ao mundo e nada mais.
Alexandre Figueirôa é Doutor em Études Cinématographiques et Audiovisuelles – Université de Paris III. Atualmente é professor adjunto do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco e integrante do Conselho da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema. Foi crítico de cinema e teatro do Jornal do Commercio e do Diario de Pernambuco e é colaborador da Revista Continente. Publicou, entre outros, Cinema Pernambucano: uma História em Ciclos (FCCR, 2000); La Vague du Cinema Novo en France, Fut-elle une Invention de la Critique? (L’Harmattan, 2000); Cinema Novo, a Onda do Jovem Cinema e sua Recepção na França (Papirus, 2004); Guel Arraes: um Inventor no Audiovisual Brasileiro (CEPE, 2008).
REFERÊNCIAS
AUMONT, Jacques e MARIE, Michel. Dictionnaire Théorique et Critique du Cinéma. Paris: Nathan, 2001.
BELLOUR, Raymond. Entre-imagens. In.: Entre-imagens: Foto, Cinema, Vídeo. Campinas: Papirus, 1997.
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e Imagens do Povo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
GAUTHIER, Guy. Le Documentaire, um Autre Cinéma. Paris: Nathan, 1995.
MOURÃO, Maria Dora e LABAKI, Amir (orgs.). O Cinema do Real. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. Campinas: Papirus, 2005.
RAMOS, Fernão e MIRANDA, Luiz Felipe. Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: Senac, 2000.
TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (org.). Documentário no Brasil: tradição e transformação. São Paulo: Summus, 2004.
VERAS, Luciana. Viajo Porque Preciso. In: Eita, ano 2, número 3. Recife:FCCR, 2009.