SOB A LUZ DAS ESTRELAS
Por Ana Pessoa
À primeira vista, a biografia de Carmen Santos (1904-1952) mais parece um conto de fadas dos tempos modernos: uma pobre imigrante se torna uma sedutora estrela e influente produtora de cinema.
Ao se acompanhar o percurso pessoal de Carmen, observa-se o momento do cinema brasileiro em que se buscou a superação de sua face artesanal, no período silencioso, à implantação das bases empresariais exigidas pelo filme sonoro. Como contexto, as profundas transformações sociais e políticas que marcaram o país entre as décadas de 1920 e 1940.
Contudo, sua trajetória não assinala somente a afirmação do cinema no país, como retrata o difícil embate entre a nova mentalidade de independência feminina e a persistência dos padrões sociais estabelecidos, e o surgimento de novas possibilidades de atuação da mulher na sociedade brasileira.
Nascida em 1904, em Portugal, a pequena Maria do Carmo emigra com a família para o Brasil aos oito anos. Em 1919, ela é selecionada, dentre outras dezenas de jovens, para ser protagonista da primeira produção da Omega Filme. Apesar da película não ter alcançado as salas de cinema, a experiência permite que Carmen procure destino diverso daquele forjado nas duras jornadas dos ateliês de costura e balcões dos magazines, conseguindo, em seguida, com o amparo de um jovem empresário apaixonado, se tornar uma estrela do incipiente cinema silencioso brasileiro.
Desde o início, Carmen não se deixa restringir ao papel de musa sedutora, e se engaja na construção de uma ativa carreira cinematográfica. Por mais de 30 anos, ela atuaria diretamente na realização de seus filmes, escolhendo projetos, contratando diretores, produzindo, estrelando, dirigindo companhias e até mesmo um filme.
Carmen atua em oito longas metragens. Quatro desses filmes são do período silencioso –– Urutau (1919), de William Jansen; Sangue mineiro (1929), de Humberto Mauro; Limite (1931), de Mário Peixoto e Onde a terra acaba (1933), de Octávio Gabus Mendes. Já na fase sonora, ela atuou e produziu três filmes dirigidos por Humberto Mauro – Favela dos meus amores (1935), Cidade mulher (1936), Argila (1940); e protagonizou, produziu e dirigiu Inconfidência Mineira (1948).
A perda irremediável da maioria desses filmes impossibilita a avaliação atual de sua carreira, com seus fracassos e sucessos, para além das considerações de seus contemporâneos. De sua presença no cinema, somente cópias de Sangue Mineiro (1929), Limite (1931) e Argila (1940) sobreviveram até os nossos dias. Contudo, por intermédio de farto material publicitário e jornalístico sobre suas iniciativas, divulgados em revistas e jornais, é possível resgatar muito dessa peculiar trajetória.
Urutau (1919), seu filme de estréia, tem direção de William Janssen, um americano de passagem pelo Brasil, que conquista a adesão de comerciantes para criar a Omega Filmes. O filme, apesar de elogiado em sessões especiais para jornalistas, no Rio de Janeiro e em São Paulo, não consegue espaço no circuito de exibição, já agendado pelas companhias estrangeiras. A produtora é fechada e a única cópia do filme desaparece com o seu diretor.
Por essa ocasião, Carmen conhece Antonio Lartigau Seabra, jovem de família de origem portuguesa, de empresários do setor têxtil. Nove anos mais velho, educado na Europa, sportman apaixonado por cavalos, carros, barcos e aviões, Antonico se tornaria o principal incentivador e patrocinador dos projetos da atriz. Apesar da objeção dos Seabra, e a consequente estigmatização de Carmen, como sua amante, o relacionamento perdura. Eles teriam dois filhos e se casariam na maturidade.
Na década de 1920, Carmen cria a Film Artístico Brasileiro (FAB) e ocupa as páginas das principais revistas para divulgar dois polêmicos projetos: A Carne, de Júlio Ribeiro, e Mlle. Cinema, de Benjamin Costallat, romances sobre jovens envolvidas com o desabrochar do sexo, considerados excessivamente lascivos para os padrões da época. Apesar das filmagens não progredirem, a atriz mantém o interesse dos leitores, por meio da publicação insistente de notas e de fotografias em poses sensuais e provocantes. Essa estratégia lhe vale uma popularidade até então incomum para as atrizes brasileiras.
Após um período de recolhimento, quando nasce sua primogênita, Carmen se associa ao grupo de Cataguases para estrelar, sob a direção de Humberto Mauro, Sangue Mineiro (1929), no papel de uma jovem ingênua e sofredora. A experiência a entusiasma a desenvolver com Ademar Gonzaga o projeto Lábios sem beijos, mas as filmagens são interrompidas, e o filme, sob a direção de Mauro e novo elenco, é concluído sem Carmen.
Em 1930, após o nascimento de seu segundo filho, a atriz posa para um pequeno teste para Mário Peixoto, que acabaria sendo agregado à versão final de Limite (1930). Em seguida, Carmen e Mário se unem para realizar um roteiro que ele desenvolvera para ela, Onde a terra acaba. O argumento narra a história de uma escritora amarga e decidida que se refugia em uma ilha para escrever, quando recebe o apoio desinteressado de um jovem simples e dedicado, por quem se apaixona. A temporada é perturbada pelo seu ex-amante; Eva deixa a ilha e, tempos depois, lança um livro narrando a experiência. Com locação no extremo de um istmo, a paradisíaca Marambaia, a produção exige um complexo esquema de produção para a acomodação e manutenção da equipe. Alguns meses depois de iniciada, a filmagem é interrompida em conseqüência de desentendimentos entre a atriz-produtora e o diretor. Anos mais tarde, eles cogitam em retomar o projeto, mas Mário jamais realizaria outro filme.
Carmen, com o apoio do estúdio de Ademar Gonzaga, a Cinédia, prepara um projeto substituto, baseado em Senhora, de José de Alencar, mantendo o título que já fora intensamente veiculado na imprensa. O filme é dirigido por Otávio Gabus Mendes. Tem cenário e fotografias primorosos, mas sua sonorização ainda é apenas musical, com os diálogos inscritos em cartelas. Senhora estréia em 1934, e é recebido com indiferença pelo público, já cativado pelas produções sonoras americanas. O insucesso, porém, não a desestimula.
Em 1934, com a colaboração de Humberto Mauro, Carmen se empenha para atender às exigências do cinema sonoro, e organiza uma nova companhia, a Brasil Vox Filme – mais tarde, Brasil Vita Filmes; e produz, de imediato, alguns complementos nacionais, atendendo à oportunidade surgida com a obrigatoriedade de exibição instituída por decreto em maio daquele ano.
Favela dos meus amores (1935) é o primeiro longa-metragem da nova fase, com um enredo romântico, números musicais e ambientação em uma favela da cidade, “e mostra o Rio pela face pitoresca e quase desconhecida da vida humilde e dolente do ambiente onde nasce o samba (…)”. Carmen é uma abnegada e elegante professora da favela, que desperta o amor de dois homens: o estudante, que ali montara um cabaré, e o sambista. O filme é um sucesso, e dá impulso à realização de uma nova produção, um filme musical.
Cidade Mulher (1936) tem mais uma vez o argumento de Henrique Pongetti e a direção de Mauro. Carmen interpreta a filha de um empresário teatral falido, que pede ajuda a seu namorado, um talentoso compositor, para produzir uma revista de sucesso. A música título é de Noel Rosa, cantada por Orlando Silva, e o elenco reúne comediantes experientes e belas bailarinas, como as irmãs Pagãs. Os cenários, armados no porão do Teatro Cassino Beira-Mar[1], reproduzem lugares emblemáticos da cidade, como a praia de Copacabana e a Lapa. A seqüência final, fiel à estrutura dos musicais, é uma “apoteose” a bordo do navio SS Saudade, tendo ao fundo o Pão de Açúcar.
A parceria de Carmen e Humberto Mauro produz ainda Argila, realizado de 1938 a 1940, mas lançado somente em 1942. Carmen interpreta Luciana, uma viúva sedutora que se apaixona por Gilberto, talentoso artesão, e se engaja na transformação de uma olaria em um ateliê de cerâmicas artísticas. Com inspiração em Carmen para a definição da protagonista, o filme inova na representação feminina no cinema brasileiro, quando Luciana subverte a tradicional prerrogativa masculina da conquista, e busca o beijo de Gilberto, cena destacada no cartaz de divulgação.
Nesse meio tempo, Carmen conclui a construção, em um amplo terreno na rua Conde de Bonfim, do estúdio da Brasil Vita Filme, com modernas instalações e novos equipamentos, para atender às exigências técnicas dos filmes sonoros. Com isso, a companhia se consagra como uma das principais produtoras de cinema do país. Carmen dá, então, início à preparação de um ambicioso projeto, a realização de uma fiel reconstituição cinematográfica do episódio histórico da Inconfidência Mineira.
Para a preparação de Inconfidência Mineira, ela se cerca de consultores e especialistas com o objetivo de garantir a fidedignidade do enredo, cenários e figurinos. Carmem, além de interpretar Bárbara Heliodora, assume a direção do filme, com a ajuda do fotógrafo Edgar Brasil. A complexidade do projeto e as restrições trazidas pela II Guerra Mundial dificultam a finalização da produção, provocando comentários jocosos na imprensa. Quando Inconfidência Mineira finalmente é exibido, em abril de 1948, o público não o prestigia e a crítica, apesar de reconhecer o empenho da produtora e a qualidade da reconstituição histórica, não esconde a decepção com suas deficiências, em especial sobre a falta de estrutura narrativa e o artificialismo da interpretação.
Nos seus últimos anos, Carmem se associa a novos projetos, em especial com o veterano Lulu de Barros, a partir dos recursos técnicos da Brasil Vita Filmes, Nesse esquema, foram realizados O cavalo 13 (1947), O malandro e a gran-fina (1947), Inocência (1948) co-dirigido por Fernando de Barros, Era uma vez um vagabundo (1952) e O rei do samba (1952), entre outros.
Carmen Santos morre em conseqüência do câncer em 24 de setembro de 1952.
Ana Pessoa é arquiteta, Doutora em Comunicação e pesquisadora da Casa de Rui Barbosa.
BIBLIOGRAFIA
PESSOA, Ana. “Argila… ou Falta uma estrela, és tu?”. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Jan/fev/mar 2006. vol . 3 Ano II, no. 1
_____________Carmen Santos: cinema dos anos 20. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as Imagens do Brasil. São Paulo: Unesp, 2004.
NOTAS
[1] O Teatro-Cassino Beira Mar, também chamado de Beira Mar Cassino, funcionou no Passeio Público de 1922 a 1937, quando foi demolido, Em suas instalações funcionava um teatro e um cabaré.
Carmen é diva inegável! É, triste, porém, perceber a indiferença com que o brasileiro recebe rememora seu passado e seus heróis.
Carmen é diva inegável! É, triste, porém, perceber a indiferença com que o brasileiro rememora seu passado e seus heróis.