Por Poliana Costa
Em 1970, foi lançado o filme Caveira My Friend, o primeiro longa-metragem do diretor Álvaro Guimarães, que até hoje é referência quando se fala em cinema marginal brasileiro. Era uma época conturbada, dois anos após a implantação da mais rigorosa medida tomada pelo regime militar no Brasil, o AI-5, que reprimia toda a liberdade de expressão artística.
O mercado do cinema brasileiro não estava muito bem, faltavam distribuidores. Os cineastas precisavam do apoio do governo, e este, por sua vez, os censurava. Em contraponto ao Cinema Novo (mas não completamente), os cineastas marginais passaram a fazer filmes que ignoravam o mercado e a censura, e o Cinema Marginal debruçara-se sobre o grotesco, a selvageria e o disforme ao apresentar suas particularidades, representando sua visão do mundo.
A unidade política, de certa forma, é dissolvida ante uma paixão pelo cinema, e os preceitos formais embutidos na idéia de uma cinematografia brasileira são ignorados. A estética se envolve com a radicalidade que proferiam os ditos marginais, e a linguagem torna-se subversiva, o principal meio de locomoção de experimentações cinemáticas.
O filme Caveira My Friend consegue transmitir o sentimento de uma época em que não eram importantes o passado e o futuro. O dinamismo das transformações e experiências pelas quais passavam a juventude direcionava a atenção para o aqui e o agora, para o presente transtornado. O ambiente familiar de angústias de uma geração que se sentia vazia. Álvaro Guimarães transfere esse sentimento através de uma das fortes características de muitos filmes ditos marginais: uma narrativa não-linear – a construção da história por fragmentos díspares, desconexos – composta por sequências sem relação entre si, que mostram os crimes cometidos por um grupo de amigos assaltantes, liderados pelo personagem Caveira. Depoimentos trazem uma tonalidade de documentário e o diálogo de personagens com os espectadores.
É apresentado no filme um grupo de jovens sem referencias passadas e sem preocupações póstumas, agindo com uma violência circense. E uma metalinguagem inunda a obra e discute a funcionalidade própria do cinema.
A película é bastante experimental em sua parte sonora, logo o som é fundamental para a compreensão da narrativa fílmica. Na restauração de Caveira My Friend, feita pela Cinemateca Brasileira, a imagem foi restaurada com sucesso, mas o som não teve o mesmo fim. A trilha sonora é composta por músicas que pertenciam ao movimento de contracultura, cantadas por Gal Costa, Baby Consuelo (que também participa do filme como atriz), Paulinho Boca de Cantor e Moraes Moreira. Baby acaba assumindo na sua carreira artística o nome de sua personagem no filme, que antecipa músicas que seriam gravadas logo depois pelo recém-criado grupo Novos Baianos. As vozes em over costuram o filme entre narração, depoimentos e pensamentos. Os diálogos entre os personagens e o espectador, frontalmente, encarando a câmera, desconstroem a idéia de representação da realidade.
O depoimento de Baby se desenrola durante uma sequência em que um personagem discute com os seus pais, assim como declara Baby, entre a confusão de várias vozes, sua relação familiar ter sido problemática, lugar-comum da juventude. Os recursos imagéticos são significantes que têm seu fluxo aprimorado pela conexão com o som, e mais vozes se intercalam com outras vozes em conflito consigo mesmas, perpetuando a montagem sonora como um dos núcleos na linguagem cinematográfica, desconcertante enquanto parte não restaurada da cópia original. Ao longo da narrativa também há depoimentos de Ricardo Petraglia e Roberto Duarte.
O cinema marginal do final da década de 60 é uma experiencia no universo das artes brasileiras, em que existe relação entre expressões artísticas contextualizadas com o tropicalismo. Além da relação do filme com a musica, também há um dialogo com outras expressões. Em 1968, Hélio Oiticica, performer e artista plástico, fez uma bandeira com a frase: “seja marginal, seja herói”.
Essa bandeira, além de ser uma forma de protesto, foi uma homenagem a Manoel Moreira, o“bandido cara de cavalo”, que foi morto em 1964 pela policia por assassinar um oficial. A história desse bandido é muito semelhante a de Caveira, que também é morto por policiais após ter configurado uma turbulência dentro da sociedade. O herói, em ambas as obras e para o contexto tropicalista, era aquele que causava a ruptura com o modelo social que era aplicado. A marginalidade natural dessa expressão artística transgride os costumes de sua época.
Poliana Costa é aluna do segundo período do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB.
BIBLIOGRAFIA
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento – cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.
SETARO, André. Panorama do cinema baiano. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1976.