O CINEMA FALADO

TRATADO SOBRE VERBORRAGIA

cinema falado

 

O som deve dar a impressão de ecoar o sentido

Alexander Pope

 

Por Guilherme Sarmiento

 

Um dos aspectos que mais chama a atenção em O cinema falado(1986), primeira e única incursão cinematográfica de Caetano Veloso na direção, é justamente a capacidade explicativa e evasiva de seu título. Através dele podemos avaliar até que ponto o projeto se concluiu, mantendo ativos seus acertos e contradições ao se valer da ironia para romper determinadas expectativas formais projetadas em obra tão ambiciosa. Pois, como espectadores, inicialmente esperaríamos de um compositor-cantor um filme cantante, um Cinema cantado, e, desde sua apresentação, percebemos o quanto a realização aparentemente rompe com aquilo que imaginamos como um produto musical. Se muitos apontaram a montagem, por todas as suas possibilidades rítmicas e contrapontísticas, como a base de sustentação de uma musicalidade inata à sétima arte, temos aqui a expressão orgulhosa do verbo seco e a fixação de planos, muitas vezes, estáticos ou com pouca espontaneidade de ação, estancando a fluidez narrativa. Caetano força-se em sua estreia cinematográfica a ser anticaetano: pretende desconstruir sua persona de compositor popular para se impor como cineasta experimental. Para isso, afirma a superioridade da prosa sobre a poesia, subexpondo, muitas vezes, o valor lírico das imagens para que a luz incida mais decisivamente sobre as referências literárias de sua formação intelectual. Estas inquietantes dissonâncias entre o deleite em se deixar levar pelos encantos melódicos e em se fixar nas asperezas da língua produzem parte significativa da identidade de Caetano Veloso como autor. Na letra da canção Outro retrato ele foi explícito ao cantar:

Minha música vem da
Música da poesia de um poeta João que
Não gosta de música

Minha poesia vem
Da poesia da música de um João músico que
Não gosta de poesia

Estas estrofes indicam um programa também seguido por O cinema falado, dedicado, desde os créditos iniciais, a personalidades tão díspares como Antônio Cícero e José Agripino de Paula, cujas qualidades evocadas cumprem o papel de tornar explícito o tour de force entre o sólido e o fluido, tão caro ao compositor. E, neste sentido, a música, aparentemente alheia ao projeto, ganha vulto insuspeito justamente por ser uma categoria muito mais complexa do que aquela exigida pela simples forragem do ambiente. Trata-se de um elemento de grande força motriz, sobretudo para a produção de texturas semânticas e evocações temáticas produzidas desde o achado do título.

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Assistindo pelo Youtube uma longa entrevista dada por ocasião do lançamento do DVD O cinema falado,  a inspiração para realiza-lo, como o próprio Caetano mesmo expressou, veio após uma sessão do filme de Rogério Sganzerla, no qual Aracy de Almeida interpretava o clássico de Noel Rosa Não tem tradução. Deduzimos ser o curta metragem realizado em 1981, Noel por Noel https://www.youtube.com/watch?v=qtaDA5tTcKM, uma pequena e marcante cinebiografia, onde na terça parte final há o famoso trecho “O cinema falado/É o grande culpado/Da transformação”, pontuado por fotos, cartas e objetos do compositor carioca. Caetano inspirou-se, portanto, em dois mestres da ironia para imaginar sua futura paródia ao cinema ideológico, e não será perda de tempo entendermos primeiramente como a obra dialoga com a canção do Poeta da Vila antes de tecer outros comentários.

Interessante atentar para o que diz a letra desse samba de um dos compositores brasileiros mais importantes do século XX. Exímio cronista, Noel, através de seus versos líricos e debochados, acusava o “cinema falado” pelos modismos que então americanizavam a língua “brasileira”. Culpava-o pela transformação da prosódia, das gírias, e, para o compositor, essa sorrateira entrada de estrangeirismos em nossa maneira de falar traria consequências nefastas para nossa música. Esta satanização do cinema “sonoro” não fora, na época de Noel, um privilégio seu: por outros motivos cineastas e críticos da década de 1930 questionavam a inclusão da banda sonora nas películas a partir do mesmo argumento essencialista. Para eles, a arte das imagens em movimento perderia seu encanto abstrato e cederia terreno ao talento de dialoguistas, transformando o cinematógrafo em um meio eminentemente teatral.

É a partir dessa base crítica que as cenas de O cinema falado irão ser elaboradas. Caetano se apropriou da falação para criticar os diálogos vividamente ideológicos. Desdobrou a fala de outra fala, que, na verdade, não foi espelhada, mas revertida em arremedo. Obviamente seu comentário passa longe do essencialismo do passado: a Nouvelle Vague e o Cinema Novo já haviam absorvido organicamente a literatura; a  música pop, rimado I love you com Nova Iguaçu sem espoliar nosso rico linguajar. No entanto, a intromissão do discurso sonoro em sua época deixou de ser uma profecia temerária para se tornar uma bandeira encarnada. Caetano soltou a língua sobre a pseudointelectualidade, destacando a logorreia como o maior de seus vícios. Em texto publicado no livro organizado por Eucanaã Ferraz, reunindo suas crônicas, o músico-diretor foi bastante explícito com relação a suas intenções ao escrever que

“Há uma ironia específica na escolha do tema de O cinema falado: as falas políticas e sociológicas, em uma palavra, teóricas, dos filmes do Cinema Novo sempre soaram falsas. Os cineastas daquele movimento parece que estavam mais apaixonados pela política e pela vida intelectual do que pelo cinema. (…) No meu filme, eu quis tratar do assunto oscilando entre a mofa e a exaltação” (VELOSO, 2005: 209-210).

Esta mofa, este avacalhe alcançado pelo viés de uma paródia intelectual, marca, digamos assim, as diferenças entre Caetano Veloso e o Cinema Novo, aproximando-o mais dos recursos narrativos dos cineastas marginais, inclusive do modo como eles aproveitavam o elemento musical para a elaboração dramática das cenas. De certa forma, especialmente em seu primeiro momento, a música é utilizada de maneira bastante convencional nas obras cinemanovistas. Servem tanto para sublinhar a voltagem épica como para reiterar certos elementos dramatúrgicos de forma muito similar à do melodrama. Já a utilização do elemento musical, especialmente das canções, em O cinema falado, exige um tipo de escuta muito mais atenta a seu valor próprio e independente. Elas trazem uma carga emotiva, identitária, que não permite que sejam simplesmente reiterativas. Portanto, como os cineastas marginais, Caetano valoriza o elemento musical em contraste com as imagens ou como vetor de certos descolamentos que promovem, mais uma vez, um comentário irônico, dissonante e polissêmico quando colocado ao lado daquilo que se vê na tela. As imagens que se falam aos olhos e aos ouvidos se chocam, encaminhando os sentidos para inadvertidas oposições.

“Imagine-se o filme de um estreante anônimo que contivesse uma longa discussão crítica sobre a fala no cinema (e sobre o cinema no Brasil) encenada como um diálogo amoroso entre uma mulher e um rapaz, sob música de Walter Smetak; um texto de Thomas Mann sobre casamento e homossexualidade dito em alemão por um jovem caboclo numa praia do Rio, sob música de Schoenberg (…); um diálogo de Sansão e Dalila, de Cecil. B. DeMille, dito, em tradução brasileira, pelo casal que fala de cinema (…) enquanto se houve a versão brasileira da “Canção de Dalila”, cantada por Emilinha Borba”. (VELOSO, 2005: 206-207)

Vemos aqui afirmado através da voz do próprio diretor-compositor que, em O cinema falado, todas as cenas, assim como os diálogos, foram pensados em conjunto com a música. Ela desloca o valor comum das imagens para o manancial proteico, para a grandeza épica de um povo em formação, onde um caboclo fala alemão (com a música de Schoenberg ao fundo) e as falas de um clássico americano deixam-se envolver pelo canto da rainha do Rádio, Emilinha Borba. Esta musicalidade latente é um dado transversal à obra, ainda que o diretor tenha seguido à risca um programa rígido e altamente hierarquizado, cujo acúmulo de palavras vai aos poucos soterrando as vias de acesso à melopeia. Essas duas faces do intelectual Caetano Veloso –  compositor/crítico cultural – parece definir duas maneiras de articular as palavras que, na passagem de um registro para outro, tornam um poeta de grande leveza  em um dialoguista ensimesmado pela androginia e carregado de referências eruditas.

Mas até que ponto o texto empostado por uma voz não trás em sua imagem acústica o cinema em potência – como queria Godard – e em seu sotaque os temperos de uma protomúsica?  Este desejo de fazer brotar da matéria verbal bruta a sombra de uma imagem e de, através da ressonância da voz, denunciar seus túneis melódicos fazem de O cinema falado uma experiência cinematográfica cheia de paradoxos aparentes. Talvez por isso tenha sido bastante apreciado pelos concretistas, que viram no filme uma referência audiovisual de suas preocupações teóricas. Isto fica bastante claro em uma entrevista dada por Décio Pignatari – um dos grandes defensores públicos da experiência cinematográfica de Caetano Veloso – à Beatriz Resende http://www.pacc.ufrj.br/literatura/arquivo/entrevista_decio_pignatari.php, na qual ele diz que

“A tridimensionalidade das artes cênicas é a mesma de nossa vida cotidiana – mas não pertence à nossa vida cotidiana. Daí o seu fascínio. Sem falar na voz. Ou melhor, é absolutamente necessário falar na voz e da voz. O brasileiro não sabe falar. O teatro brasileiro não tem voz. Falamos mal. Os poetas falam mal. Os atores, idem. O cinema falado brasileiro não é muito melhor”.

Fazendo coro com tais reflexões bombásticas, a crítica mordaz e cifrada de Caetano à falação no cinema brasileiro pareceu apontar um declínio deste mesmo processo de realização que, através dela, chega a seu término. Quatro anos depois do lançamento de sua primeira e única experiência cinematográfica, a Embrafilme foi extinta, calando durante algum tempo a voz entediante de nossos cineastas e abrindo caminho para uma geração com outras preocupações estéticas e ideológicas. Se pegarmos toda a produção contemporânea brasileira, especialmente os filmes de arte recentes, perceberemos a resistência em verbalizar as emoções e uma tendência de expor o discurso político através do afrontamento entre corpos performáticos. Vemos novas obras nascerem com esta intenção de romper com determinados padrões elencados pelo Cinema Novo, abrindo caminhos menos ostensivos para o posicionamento político.  Porém, não podemos dizer ainda se isto devém da superação ou da reiteração do problema já há algum tempo notado por espectadores comuns e críticos culturais brasileiros. Pois construir uma dramaturgia sem diálogos para não denunciar as impostações da voz, ou a ineficiência da captação sonora, só confirma que o cinema falado foi (é) o nosso grande culpado. E que o silêncio não é a melhor forma de reação, como bem nos mostrou o autor de Língua.

 

Guilherme Sarmiento é professor Adjunto de Dramaturgia na UFRB, cineasta e Editor Chefe da Revista Cinecachoeira. Roteirizou, juntamente com Eduardo Nunes, o filme Sudoeste, co-dirigiu o primeiro longa metragem universitário Conceição Ou Autor Bom É Autor Morto.

 

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

 

VELOSO, Caetano. O mundo não é chato. (Apresentação e organização Eucanaã Ferraz). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

 

RAMOS, Fernão & MIRANDA, Luiz Felipe. Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: SENAC, 2012.

 

 

SITES E PUBLICAÇÕES VIRTUAIS

 

Entrevista de Décio Pignatari dada a Beatriz Rezende http://www.pacc.ufrj.br/literatura/arquivo/entrevista_decio_pignatari.php

 

Discografia de Caetano Veloso: http://www.caetanoveloso.com.br/discografia.php

 

 

 

 

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