POR DENTRO DA ORQUESTRA
Por Cláudio Seixas
Introdução
Os organizadores do primeiro festival de documentários da cidade de Cachoeira, CachoeiraDoc, na Bahia, em 2010, propuseram que a abertura desse evento fosse feita com a exibição do filme Nanook do norte (Nanook of the north, 1922), dirigido por Robert Flaherty, com música especialmente composta para ele e executada ao vivo. Essa idéia começou a ser posta em prática quando Guilherme Maia, então professor do curso de Cinema e Audiovisual da UFRBconvidou Paulo Lima, da Escola de Música da UFBA, para, juntos, articularem uma parceria entre os cursos de Cinema da UFRB e Composição Musical da UFBA.
O Professor Lima, então meu orientador no curso de doutorado em composição musical, indicou alguns dos seus alunos de composição para participarem desse projeto e, como meu projeto de pesquisa tem a ver com música fílmica, me convocou para, junto com o Professor Maia, fazer a direção musical desse evento.
Até o presente momento (maio de 2013), a Escola de Música da UFBA não oferece cursos regulares de composição musical específica para filmes, embora algumas iniciativas pontuais nesse sentido já tenham ocorrido na forma de cursos de curta duração. Por essa razão, essa proposta com o filme de Robert Flaherty pareceu bastante desafiadora, pois, além da necessidade de capacitar, ainda que minimamente, os alunos-compositores para essa tarefa, seria necessário conseguir mantê-los motivados, para que a construção da música pudesse ocorrer a contento e num período de tempo relativamente curto. O objetivo era construir coletivamente uma partitura musical que dialogasse eficientemente com as imagens e que também fizesse sentido, musicalmente falando.
Se, por um lado, a proximidade com o cinema pode, por si só, despertar facilmente a curiosidade e interesse dos músicos pela possibilidade de expressão artística num meio novo para eles, por outro, pode significar um aprendizado que resulta, eventualmente, em novas possibilidades de inserção no mercado de trabalho.
O Filme
Com 78 minutos de duração, aproximadamente, o filme em preto e branco de Flaherty é considerado o primeiro documentário com relevância internacional e por essa razão foi escolhido para abrir o festival. Nanook do norte é um filme sem diálogos ou efeitos sonoros, e sua música original é tecnicamente tão inapropriada que chega a ser inconveniente.
Nanook é o nome do pai de uma família esquimó, queé mostrada encenando momentos do que seria ou foi, seu cotidiano no Ártico. Um ambiente gelado, árido, e remoto. Como o filme se passa no início do século XX, a situação dos que lá viviam era agravada pela inexistência das facilidades tecnológicas que se dispõe hoje em dia, fazendo com que sobreviver num local assim fosse um desafio tão constante quanto difícil. Ainda hoje, com todo avanço tecnológico que se dispõe, conceitos como segurança ou conforto soam próximos do abstrato por lá.
As cenas de caça e pesca não deixam dúvida de que conseguir alimento num local inóspito como aquele é uma tarefa que requer habilidade para caçar ou pescar e também alguma sorte; ainda necessita da cooperação entre as pessoas. A vegetação é escassa, sazonal, e a fauna nativa, normalmente a única fonte de nutrientes disponível, inclui pequenas raposas, focas, morsas, ursos polares e leões marinhos, por exemplo, que, além de pesados, são fortes e podem ser muito perigosos para um caçador incauto ou que resolva se aventurar sozinho.
Nanook do norte, como a maioria dos filmes do chamado cinema mudo, traz intertítulos1, que comentam algumas cenas. Como a apresentação em Cachoeira estava prevista para acontecer em praça pública, como de fato ocorreu, na Praça da Aclamação, havia a possibilidade de que pessoas não alfabetizadas estivessem presentes. Com o objetivo de facilitar o entendimento dessas pessoas, o professor Maia providenciou a leitura gravada desses textos e os adicionou ao filme, juntamente com o som de vento, com o objetivo de dar mais realismo às imagens.
As cenas variam em ritmo e nas atmosferas emocionais que evocam. Há momentos tranquilos e lentos, como a cena em que a família se acomoda para dormir num iglu, momentos em que a ação parece mais viva e tensa, como nos momentos de caça e outras com níveis intermediários de ação. Essa variação rítmica e emocional precisa ser levada em conta, mesmo que a intenção seja negá-las com a música. Além disso, esse filme não possui uma trama narrativa definida, o que faz com que o encadeamento das cenas se aproxime do aleatório. Por essa razão, ao final da exibição, normalmente se tem a impressão de que o filme talvez não tenha realmente terminado. Uma música composta para acompanhar tal sequência de imagens tem a oportunidade de tentar conferir, ou pelo menos sugerir, a ideia de que nele há unidade e coerência.
Os Compositores
O grupo de alunos de composição indicados pelo professor Lima para se engajarem no projeto era formado por André Fidelis, Alisson Silva, Gabriel Sobral, Juliano Valle, Paulo Santana, Vinícius Amaro e Vítor Rios. Todos jovens, talentosos e com o conhecimento musical necessário para responder a essa proposta eficientemente. Como já tenho, há algum tempo, interesse na composição de música para filmes, tendo inclusive colaborado como compositor em algumas produções audiovisuais de curta-metragem e em peças de teatro, fiquei muito entusiasmado com a possibilidade de participar dessa realização acumulando as funções de diretor musical e de compositor.
Algum tempo depois das primeiras reuniões com os alunos do professor Lima, Danilo Valadão, um colega da turma envolvida na composição, apareceu num dos primeiros ensaios mostrando-se interessado em participar e foi bem aceito entre nós. Muitas mãos tornam o trabalho mais leve e, normalmente, mais agradável, embora exija um pouco mais de atenção de quem faz a direção.
Os Instrumentistas e o Maestro
Na primeira reunião com os compositores foi discutido, além de assuntos relacionados ao trabalho de composição a ser desenvolvido, a formação instrumental que teríamos à nossa disposição. Havia uma quantia em dinheiro destinada ao pagamento dos instrumentistas, que, embora não fosse tão grande, fazia daquele empreendimento um trabalho profissional e, por isso, sujeito ao cumprimento de uma agenda de obrigações com ensaios e estudos até a apresentação final. Ficou decidido que a formação instrumental seria um grupo de câmara2 formado por uma flauta, um oboé, uma clarineta, um fagote, dois violinos, uma viola e um violoncelo, resultando num grupo com uma sonoridade rica e elegante. O professor Maia batizou esse coletivo de instrumentistas, regente e compositores de “Nanook Ensemble”.
Essa formação camerística teria ainda um percussionista, mas não foi possível sua inclusão naquela ocasião, porque o músico que assumiria esse posto acabou ficando impossibilitado de fazê-lo e, como o prazo exíguo nos exigia rapidez, não podíamos ficar esperando indefinidamente até que algum outro o substituísse para começarmos a trabalhar. Por isso, ficou decidido que deixaríamos o grupo sem o percussionista, ao menos nessa primeira apresentação. Convidei pessoalmente os instrumentistas para integrarem o grupo, mostrando a cada um deles a relevância da proposta e as possibilidades de futuras conseqüências profissionais positivas para todo o grupo a partir dessa empreitada. A adesão deles ao projeto foi imediata e entusiasmada.
Uma formação instrumental como a que foi escolhida e o tipo de música que se pretendia compor para esse filme implicavam na necessidade de um regente para dirigi-los nos ensaios e na apresentação final. Talvez por se tratar de um grupo formado por músicos habituados a atuar profissionalmente em orquestras e a seguir seus códigos de ética, a simples presença de um maestro nos ensaios tendia a imprimir seriedade e profissionalismo aos trabalhos.
Após algum tempo, algumas partes da música começaram a ficar prontas e os ensaios foram acontecendo comigo, interinamente, conduzindo os ensaios, até que, após três tentativas sem sucesso com outros regentes, convidei o Professor José Maurício Brandão (UFBA), que se saiu muito bem no desempenho de suas funções. Sua liderança e conhecimento técnico conquistaram os instrumentistas desde o primeiro ensaio e a melhoria no resultado pôde logo ser percebida. É importante ressaltar que o trabalho de um maestro regendo um grupo que toca acompanhando um filme é bem diferente do que normalmente aconteceria na preparação e execução de um concerto.
Andamento, no jargão musical, é a velocidade com que a música é tocada. Embora seja possível executar uma peça musical num andamento especificamente pré-determinado, normalmente as partituras musicais trazem indicações mais subjetivas como “acelerando”, por exemplo, que pode variar ligeiramente até mesmo em execuções diferentes de um mesmo intérprete. Um filme, por seu turno, tem uma duração e ritmo que sempre se repetem imutáveis. Para contornar essa possibilidade de perda de sincronia com as imagens, José Maurício precisou se adaptar a reger prestando atenção simultaneamente ao que os músicos tocavam, a um computador portátil (notebook) que mostrava o filme que estava sendo exibido para a platéia e a um relógio digital com números vermelhos acesos, já que a exibição de um filme normalmente ocorre no escuro.
Trabalhar em grupo pode ser muito gratificante, mas é preciso tolerância e paciência com os outros envolvidos. Se a felicidade puder ser aceita como o objetivo último de qualquer a atividade humana, é importante estar atento ao que a torna possível. Um ambiente calmo e amistoso facilita não só a convivência, como propicia uma vivência de todo o processo de forma mais positiva. Saber contornar pequenos desentendimentos é uma habilidade exigida de qualquer diretor que, além disso, precisa estimular o trabalho com elogios e cobrar empenho ou disciplina quando necessário.
A Música
Antes que o trabalho de composição começasse, eu e o Professor Guilherme Maia nos reunimos com o grupo de alunos-compositores para falarmos sobre o filme e as funções que a música deveria ter nessa nova versão de “Nanook do Norte”. O professor Maia providenciou a decupagem3 do filme, que resultou numa tabela com a descrição sucinta das cenas, o momento cronológico em que elas aconteciam e sua duração, o que facilitou muito a divisão das tarefas. Desse modo, o filme acabou seccionado em doze partes, que foram assumidas por nove compositores.
Se compor música em grupo não é tarefa tão simples, reunir compositores interessados em colaborar na realização de um produto audiovisual é uma tarefa que corre sério risco de resultar num conjunto desconexo de peças musicais sem qualquer relação com as imagens. Esse perigo precisava ser minimizado, já que a intenção nossa era que o resultado pudesse soar como uma peça musical única e coerente, mesmo sendo composta por vários parceiros. Uma estratégia que pareceu apropriada para essa ocasião foi estabelecer algo em comum nas diversas partes da música. Com isso em mente, propus um tema musical, que foi unanimemente considerado apropriado para o filme e ao qual os diversos compositores se referem, a seu modo, no decorrer das suas peças musicais que, em conjunto, formam a música do filme “Nanook do Norte”.
Esse tema foi compartilhado com todos os compositores, exceto Danilo Valadão, que, por ter sido incorporado posteriormente ao grupo, não o conhecia. Ao telefone, algum tempo depois, ditei intencionalmente o tema para ele sem especificar a divisão rítmica ou a direção melódica. Falei apenas os nomes das notas na ordem em que elas aconteciam e o resultado conseguido funcionou muito bem. Nessa parte da música escrita por Valadão, o tema é percebido, ainda que de modo um pouco mais discreto. Abaixo, o tema como foi proposto.
Um tema musical precisa ter alguma relação com o que busca representar. Apesar de viver num ambiente hostil e insalubre, Nanook e sua família parecem se divertir todo o tempo em que o filme dura. O riso fácil e constante do protagonista deixa claro que, no filme, ele supera as adversidades a que está submetido com leveza e tranqüilidade. Por isso, essa linha melódica tenta imitar uma onda que flui tranqüila, apesar dos perigos, como o caiaque desse sábio do Norte.
Nanook ensemble:
Flauta: Regina Cajazeira e Fávio Hamaoka
Clarineta: Lucas Andrade e Felipe Souza
Oboé: Rodrigo
Fagote: Uruay Pereira
Violino: Mário Soares, Junio Santana e Jefferson Souza
Viola: Neiva Salu e Davi Cerqueira
Violoncelo: André Eugenio
Assista abaixo o resultado do trabalho do Nanook ensemble
Cláudio Seixas é Mestre em Composição Musical pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e Bacharel em “Composição e Regência” pela mesma universidade, onde estudou com Lindembergue Cardoso e Agnaldo Ribeiro. em criado músicas e trilhas sonoras para peças de teatro e filmes. Em Seattle (E.U.A.), onde viveu por dois anos, atuou como guitarrista ao lado de diversos músicos e integrou o quarteto de música instrumental Second Nature, cujo repertório se baseava em composições suas. http://www.myspace.com/claudioseixas
NOTAS
1 Intertítulos são pequenos textos que aparecem intercalando algumas cenas com o objetivo de facilitar seu entendimento ou oferecer um comentário ao que é mostrado.
2 Música de Câmara é a denominação para o tipo de música tradicionalmente executada em cômodos pequenos (câmara). Numa época em que não havia microfones, um grupo musical pequeno numa sala muito grande perderia parte da sua potência sonora e um conjunto grande como uma orquestra não teria espaço suficiente para atuar. Desse modo, formação camerística é o conjunto pouco numeroso de músicos que executam a música dita de câmara.
3 Decupagem é a divisão do filme em partes numeradas com indicações de tempo e do que acontece nas cenas.