O SABOR DA MELANCIA

UM MUSICAL EXCÊNTRICO

o sabor da melancia

Por Guilherme Sarmiento 

Este artigo foi desenvolvido no âmbito de projeto de pesquisa sobre musicais cinematográficos beneficiado pelo Edital Fapesb 11/2013, de apoio à formação e articulação de redes de pesquisa no Estado da Bahia,  gerido pelo no Laboratório de Análise Fílmica do Póscom/UFBA.

Tsai Ming-Liang despontou nos festivais do Ocidente a partir da década de 1990, e como muitos cineastas surgidos nessa época, não economizou no momento de performartizar o corpo através de zonas desconfortáveis tanto para o horror como para a ironia, desconjuntando as personagens conforme avançavam em uma atmosfera dificilmente qualificável por sua natureza limítrofe. Não há nada mais incômodo para os espectadores, e, certamente, arriscado para os autores, do que se equilibrar tenuamente entre duas emoções aparentemente tão díspares quanto o asco e o desejo, ou, seguindo o exemplo de cineastas mais sujeitos ao âmbito da ação dramática, quanto a violência gratuita e a coreografia lúdica, e, diante deste desafio de encontrar novos efeitos estéticos abertos por estas experiências híbridas, obras foram sendo chanceladas pelos festivais e cultuadas pelo público cinéfilo, cujo gosto já não se adequava completamente às formas ditas puras, ou, mais precisamente, já assimiladas pelo senso comum de espectatorialidade. Para Cleber Eduardo, em crítica publicada pela Cinética, no ano de 2005, a filmografia do diretor malaio, radicado em Taiwan, ancora-se na falência da expressão afetiva e da interação física, segundo ele

“sempre mostrando os personagens como ilhas: mudos, um tanto imbecis, envolvidos em performances cênicas, de um minimalismo que faz esquina com o clichê de cinema de autor. No entanto, essas performances do silêncio estão abertas ao humor, a ironia, à crueldade, de modo a se exorcizar parte a dor manifestada. Mas a dor, mesmo passiva, mesmo contida, mesmo naturalizada, predomina”1.

Portanto, a princípio, as credenciais de Tsai Ming-Liang não lhe autorizariam, ou pelo menos, não lhe permitiriam transfigurar o mundo objetivo pelo uso das ferramentas oferecidas pelos musicais, onde a opulência das coreografias geralmente pontuavam dramas açucarados ou jogavam os corpos uns em direção aos outros, embalados por canções populares, numa afirmação movimentada da própria identidade. Sua mise-en-scène crua, “minimalista”, “a falência da expressão afetiva e da interação física” expressa em cada um de seus enquadramentos longos e reflexivos, como bem observou o crítico, expressava-se aparentemente como um contraponto a esta festividade maravilhada com o movimento do corpo e com a sincronia das vozes. A adesão ao gênero “musical” realizada pelo diretor de Taiwan, em 2004, quando ganhou três prêmios em um dos mais importantes festivais de cinema europeu com O sabor da melancia, não deixa de surpreender e, ao mesmo tempo, revelar certas empatias até então inconfessáveis entre esta performatividade muda e seu sucedâneo entregue ao canto, a dança e à coreografia.2

Bordwell, em seu Figuras traçadas na luz3, ao destacar o estilo na configuração da narrativa fílmica, já apontava a mise-en-scène como um fator de suma importância para a construção de significados, especialmente o sentido imanente a uma pactuação entre câmera, cenário e atores, numa espécie de balé onde as relações estabelecidas dentro do quadro desconfigurariam e reconfigurariam contantemente as possibilidades semânticas durante a encenação. Somado a isso, a convicção própria da contemporaneidade de que o corpo tranca em si os segredos da linguagem, liberando-os quando constrangido por um dispositivo muitas vezes cruel, pondo em movimento os automatismos da dor e do prazer, ampliaria ainda mais o repertório do que hoje se denomina”coreografia”, cujas denotações vão bem além de uma sincronia, um jogo, entre corpos presentes para expressar a perspectiva de um isolamento contínuo, patológico, diante do outro. Desde que Pina Bausch colocou em movimento braços, pernas e troncos para expressar a incomunicabilidade, a dança e, de quebra, o próprio musical, foi obrigado a redimensionar seu discurso ante esta corporificação da crueldade. E pode-se dizer que O sabor da melancia é uma das expressões desta nova medida do homem e de seus afetos, utilizando-se de um gênero muito marcado na história do cinema.

Mas talvez a motivação mais plausível para que Tsai Ming-Liang adentrasse por uma seara tão avessa as suas convicções filosóficas e estéticas venha desta própria capacidade do cinema contemporâneo de deslocar, torcer, a noção de gênero, recriando certos códigos a partir do distanciamento dado pela autorreferencialidade, seja através da paródia ou do pastiche, ou dos apelos de um roupagem estilística tão acentuada que o modelo de sua inspiração acaba definitivamente soterrado por um ego criativo exuberante. Em alguns cineastas este trabalho de mascaração de procedimentos genéricos, codificados pela cultura, com os cacoetes de uma face reconhecidamente particular consiste, ele mesmo, em uma marca intransferível. É como se os autores quisessem anular a atuação de forças imemoriais, decorrentes da sistematização da linguagem, para sobrepor a cristalização de seu próprio estilo como a matriz de futuros diálogos intertextuais. Penso aqui em Almodóvar, os irmãos Cohen e, claro, Tarantino, diretores estetas, mas, certamente, quando se observa como O sabor da melancia agencia certas convenções próprias dos filmes musicais perceberemos também que a intenção do autor, mais do que reforçá-las, é abrir caminho a um sentido próprio de expressão, desintegrá-las como a um corpúsculo entrando em um domínio gravitacional dominante e reconfigurá-las ao sabor de suas necessidades artísticas. Nesse sentido, a presença de números musicais, assim como outros índices de pertencimento ao gênero, jamais aliviariam as tensões elaboradas em toda uma obra como “estilo”, mas, muito pelo contrário, fomentariam estes choques para que no intervalo se produzisse o chiste, o comentário irônico, como a revelar os descolamentos entre dois discursos antagônicos.

Pode-se apontar estas estratégias narrativas desde a utilização da melancia, toda a sua carga simbólica e figurativa, dentro da elaboração do discurso fílmico, por exemplo. Fruta opulenta, berrante, oriunda de climas quentes, tem um papel fundamental para ancorar os motivos que se submetem tanto ao mero deleite gráfico, pictórico, como a extratos mais profundos de configuração, em especial, àqueles legitimados pela tradição dos musicais norteamericanos. Penso aqui em Carmen Miranda e seu turbante saturado por penduricalhos – bananas, abacaxis, mangas –, tornando-a uma alegorização do sabor e das cores tropicais, e, ao mesmo tempo, o modelo de representação carnavalesca de toda uma região sob o domínio da United Fruit Company. Sem sombra de dúvida, a atriz e cantora brasileira tornou-se uma referência especialmente para aqueles que buscavam iconografias representativas de uma visualidade excêntrica, periférica, capaz de suportar a carga do exótico sem vergar sob seu peso excessivo. No caso de Tsai Ming-Liang, a escolha de uma melancia delimita seu posicionamento à margem de uma cultura cinematográfica hegemônica, perfilando-o com os países periféricos, mas, também, exprimindo seu distanciamento através dos abusos de uma fruta superlativa, dificilmente funcional como adereço. Esta superabundância de suco, de sementes, de carnadura vermelha, ajuda a estabelecer os valores extremos a partir dos quais certas características do gênero musical deverão ser lidas, especialmente as de ordem sexual.

Como toda a fruta, a melancia apresenta-se como um elemento plástico extremamente rico para se urdirem figuras de linguagem, metáforas, que remetem diretamente ao universo sexual. Não é a toa que hoje em dia as dançarinas de corpos esculturais utilizam-na como uma imagem possível para denominar um atributo: pode-se dizer, mais uma vez, que com fins menos explícitos tais analogias ajudaram Carmen Miranda a se estabelecer como uma das grandes sexy simbols dos musicais, ao oferecer seu pequeno perfil como uma árvore cheia de frutos proibidos. Em uma passagem deliciosa da Casa grande e Senzala, Gilberto Freyre vai reconduzir este recurso poético e performático às origens, quando o homem cordial, em plena adolescência, abria mão de práticas nada convencionais para aplacar seu desejo por sexo:

“Noutros vícios escorregava a meninice dos filhos do senhor de engenho; nos quais, um tanto por efeito do clima e muito em consequência das condições de vida criadas pelo sistema escravocrata, antecipou-se sempre a atividade sexual, através de práticas sadistas e bestiais (…); a bananeira; a melancia; a fruta do mandacaru com o seu visgo e sua adstringência quase de carne. Que todos foram objetos em que se exerceu – e ainda se exerce – a precocidade sexual do menino brasileiro”.4

Seria distorcer demais os objetivos deste ensaio enveredar pela obra de Gilberto Freyre com intuito de insinuar alguma influência deste clássico da sociologia brasileira no sadismo e bestialidade contido em O sabor da melancia, mas não custa enriquecer esta análise com certo aspecto lúdico contido em todas as imagens, especialmente as constelações surgidas em torno de fruto tão excêntrico como a melancia, cujo uso não fugirá à regra mesmo em um curta metragem sui generis dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, na década de 1970, chamado Vereda tropical. Aqui temos a história de um homem enredado num vício desconcertante: para tornar seu sexo solitário menos deprimente, torna o sulco profundo sob a casca verde e irizada, realizada com um estilete, uma vagina imaginária. Isso comprova a capacidade de Tsai Ming-Liang em manipular certos conteúdos simbólicos do amor romântico para, de forma muito particular, fazê-los renascer como flores carnívoras ou ervas daninhas em sua estufa muito bem cultivada. Para contar a história de amor entre uma viajante e um ator pornô através de números musicais, restou a mais do que explícita recorrência a este fruto descomunal, capaz de desenfrear a imaginação para a comunicação do exagero e, também, desapropriar o gênero de sua vertente romântica. Como Barry Keith Grant nos diz em seu estudo sobre o gênero nos Estados Unidos:

“The importance of romance and the construction of the couple in the film musical inivetably raises question about the gender and sexuality. The musical´s concern with articulating a sense o community as well as defining the parameters of sexuals desire are, o course, related, as the regulation of sexuality is crucial to the maintenance of social order”.5

Esta importância dada ao romance nos musicais, especialmente norteamericanos, vai contaminar inclusive a estrutura mesmo de suas narrativas, geralmente cindidas entre dois protagonistas apaixonados. Rick Altman, em seu enciclopédico estudo American film musical, destacou igualmente determinados aspectos estruturantes do gênero, cuja trama bifurca-se em dois plots autônomos e convergentes para a “regulação da sexualidade”, ou seja, para uma coreografia capaz de insinuar as delícias do sexo heterossexual sem ferir o decoro.6 Aqui, a dança integra-se à própria expressão humana, instintiva, de modo a estilizar o cortejo para o consumo de uma burguesia puritana. Em O sabor da melancia vemos a reiteração deste modelo de construção dramática, com uma narrativa bipartida, realizada através da sincronia da montagem alternada, e enquadramentos que anunciam desde o primeiro plano dois caminhos que futuramente irão convergir para espaços comuns. Porém, Tsai Ming-Liang elabora uma contínua curva anticlimática cujo cume, ou queda, se dará numa das cenas de sexo mais deprimentes, talvez, da história do cinema, com o protagonista jogando crua e dolorosamente o esperma na boca de sua “Partner”. Este desencanto e amargura diante da vida deformam as inúmeras camadas de significação estabilizadas por mais de 50 anos de lida com o musical, seus códigos, seus temas, sua ordem, forçando as bordas destes feixes de signos em direção a uma personalidade disponível, como o dito inicialmente, às experiências híbridas.

Há uma linha de fronteira dentro do filme a partir da qual as personagens entram em um campo movediço, atraindo o olhar do espectador para zonas intermediárias, desorientadoras, onde o preparo da gargalhada se desfaz subitamente para o esgar do nojo, ou, de forma ainda mais desconcertante, somos apresentados ao horror antes mesmo de retirar completamente o sorriso do canto dos lábios. Diante de tal programa desestabilizador da própria coerência, inteireza, da obra como um produto de fruição estética, o musical surgiu como um fator a mais para a produção destes estranhamentos. A maneira que Tsai Ming-Liang encontrou para integrá-lo ao seu programa foi mantê-lo autônomo dentro da estrutura dramática, como se fosse um comentário alienado da própria situação extrema vivida pelas protagonistas. Os números de dança e música estabelecem-se dentro do filme como ilhas incomunicáveis, estanques, cercadas pela seca e pela espetacularização da vida, e por uma produção epidêmica de melancia. Seu tratamento visual recebe atenção especial do diretor, que não poupou no momento de apresentar coreografias caprichadas e coloridas, que, em seguida, são sufocadas pela fotografia escura, o suor, os mucos, decorrente de corpos esmagados por um ambiente apocalíptico.

Um exemplo desta utilização deslocada e chocante dos números musicais pode ser encontrada na parte final do filme, na verdade, a última cena em que se utiliza este recurso, quando o ator pornô, inutilmente, tenta conseguir uma ereção masturbando-se num pequeno lavabo, cercado por revistas eróticas. Seu corpo suado, inclinado à esquerda do quadro, provoca desde a primeira mirada a impressão de abatimento – o que só é reforçado pela entrada da atriz, convocando-o para o término da cena de sexo explícito. Em seguida a este quadro deprimente, há um corte seco para um banheiro público bem iluminado, introduzido por um movimento de carrinho ao longo de mictórios, até revelar uma cabine dentro da qual está o protagonista fantasiado de pênis. No alto da cabeça desponta um chapéu em forma de prepúcio e o escroto pende ao lado do pescoço, como duas bexigas infladas. Em seguida entram mulheres cuja indumentária remete ao universo das faxineiras, realizando movimentos sincronizados, perseguindo o infeliz membro que se debate, desesperado, como se quisesse acordar de um pesadelo. Diante de tal alternância de estados tão peculiares fica-se difícil escolher a pior forma de despertar: se sair da realidade nua e crua para adentrar um mundo potencialmente alienante ou, num movimento contrário, desaguar bruscamente deste oásis artificioso para o seio de uma natureza estagnada. Os números musicais, então, em seu fluxo contínuo de movimento, definham como o leito de um rio assoreado, e, tudo aquilo que poderia ser embalado por ritmo e melodia morre sufocado pela atmosfera sombria e deprimente do “universo” retratado pelas lentes de Tsai Ming-Liang.

Observando estes artifícios narrativos, pode-se interpretar O sabor da melancia como uma crítica ideológica aos musicais americanos? Talvez esta leitura possa ser feita, porém, a recusa em fornecer, através da montagem, um processo de alternância dialética entre dois mundos, tornando-os autossuficientes em seu próprio âmbito comunicativo, produz o suporte ideal para a expressão da crueldade ao invés de induzí-lo a alguma síntese revolucionária. Mais do que um comentário crítico, um ensaio de conotações políticas, o filme de Tsai ming-Liang comprova a perda da inocência de um dos gêneros mais identificáveis, mais codificados, dentro da história do cinema. Se hoje nem mesmo os filmes musicais são completamente definidos em sua pureza, o que dirá dos homens, artífices e inventores de sua arte, perdidos em sua incapacidade de amar e, num processo muito mais amplo, fazendo perder em desencanto quem seria digno de ser amado? Beber um doce suco de melancia, neste caso, não difere em nada de abrir as entranhas de um animal inofensivo e chupar seu sangue ainda quente, numa espécie de ritual macabro em homenagem à escatologia.

REFERÊNCIAS

ALTMAN, Rick. American film musical. London: Indiana University Press, 1989.

BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz. São Paulo: Papirus, 2008.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1999.

GRANT, Barry Keith. The Hollywood Film Musical. Wiley-Blackwell, 2012.

Revista Cinética, acessada em 09/08/2013 http://www.revistacinetica.com.br/melancia.htm

1Revista Cinética, acessada em 09/08/2013 http://www.revistacinetica.com.br/melancia.htm

2Barry Keith Grant em seu livro clássico The Hollywood Film Musical vai definir o gênero como “ films that involve the performance of song and/or dance by the main characters and also include singing and/or dancing as an important element”. GRANT, Barry Keith. The Hollywood Film Musical. Wiley-Blackwell, 2012: p.1.

3Hou Hsiao-hsien, outro cineasta de Taiwan, de uma geração anterior a Tsai ming-Lang, vai ser um dos contemplados por Bordwell na hora de discorrer sobre o estilo no cinema. A utilização de grandes angulares e de câmeras fixas produziu efeitos que favoreciam a elaboração de uma mise-en-scène sofisticada. Segundo o teórico, “nos seus três filmes, Hou descobriu que as lentes longas permitem uma proliferação de camadas e detalhes, podendo fazer uma pilha ou uma fileira de rostos ao longo de eixos que acentuam pequenas diferenças”. BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz. São Paulo: Papirus, 2008: p. 259.

4FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 371.

5GRANT, op. cit, p. 46

6ALTMAN, Rick. American film musical. London: Indiana University Press, 1989, p. 137. “The musical invites us to forget familiar notion of plot, psychological motivation and causal relationships; we must learn instead to view the film sideways as it were – arresting the temporal flow and sensing the constance parallels between the principal’s activities”.

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