Por Guilherme Sarmiento
Pode-se dizer que a grande sacada do diretor mexicano Alfonso Cuarón em Gravidade, além de realizar um filme que impressiona pela capacidade sinestésica, envolvendo o espectador em camadas de sensações deliberadas por um corpo à deriva, foi encontrar um ambiente ideal para elaborar um conjunto de metáforas audiovisuais, ou, caso se amplie esta capacidade figurativa para o discurso, de alegorias expressivas da ideia de “renascimento”. Talvez a grande dificuldade dos latinos – e,também, sua maior virtude criativa – resida na não aderência de seus cineastas ao realismo puro e simples, herança de uma poética barroca insatisfeita com a anotação materialista do mundo e voltada para as mensagens encobertas, capaz de maravilhar a todos com suas tortuosas analogias e com a melancolia doce de seus desenganos. Assim, Gravidade, desde o título em nossa língua materna, quer dizer tanto uma força física, atrativa, produzida pela densidade dos corpos celestes, como o ato de gestar uma vida, estar “grávida”, “engravidar”. E em torno dessas imagens apaziguadoras, fluidas e cálidas como se submersas em líquido amniótico, recortando todas as personagens em uma escuridão infinita e potencialmente ameaçadora, a morte encontra o ambiente perfeito para se fazer presente e, com isso, ampliar as possibilidades de se produzir o suspense.
Para realçar estas imagens de vida e de morte, gravidez e gravidade, Alfonso e Jonas Cuarón, roteiristas do filme, acertadamente escolheram uma personagem feminina como protagonista. Pois Ryan Stone, interpretada com intensidade por Sandra Bullock, traz consigo o trauma de uma perda: seu filho morreu em uma acidente e ela amarga o luto desta ausência ainda fresca e não superada. Seu ventre oco e mesmo assim fértil replica-se na imagem do universo, encaixando-se ali como a miniatura de uma boneca russa dentro de uma outra de estatura tão maior que suas bordas jamais podem ser atingidas, ou mesmo tocadas, a não ser pela chegada abrupta de seus detritos. Como em resposta ao destino da criança, viaja solta no éter à procura de mais uma chance de renascer e não acabar abortada prematuramente. Somente uma personagem feminina poderia desencadear a força desta simbologia noturna: estes desdobramentos infinitos de corpos que envolvem outros corpos, de modo a se perder os contornos da capsula original e se deixar levar por um estranho – talvez mórbido – sentido de liberdade. Pois a morte no espaço deixa de ser apartada. Ela mora mesmo no intervalo entre uma inspiração e uma expiração, intromete-se compondo o fundo escuro diante do qual a terra se torna mais azul e cristalina e, cada ato realizado, mais vivo.
Nesse sentido, o espaço sideral imaginado por Cuarón e concebido por sua equipe técnica é um forro silencioso sobre o qual a morte pulsa de forma apaziguada e o planeta Terra, quebrando a monotonia da paisagem abissal, parece ser a fonte de todos os traumas e de todas as decepções do homem consigo e com seus semelhantes. Na extensão de seu manto assustadoramente vasto, os corpos no firmamento não encontram resistência, atravessam quilômetros sem encontrar atrito ou, contrariando a geografia terrestre, impedimentos de fronteiras. As estações russas e chinesas servem de abrigo a qualquer astronauta: todos se transformam na estratosfera membros de uma irmandade. E, lá das alturas, se a visão do sublime não torna a morte menos assustadora, coloca o observador do espetáculo no lugar de um ser privilegiado, alguém que se deixará matar sem resistir, como um fiel após flagrar um deus em sua forma comum aceita, com a expressão pacificada, ser fulminado.
Mas, mesmo tornando a morte em um sono flutuante e embalsamado, ainda assim torcemos para que a mocinha sobreviva. Com a mão firme, Cuarón aos poucos vai construindo a personalidade de sua heroína a cada passo dado em direção à sobrevivência. Porém, sua força suprema só se torna palpável no momento em que fecha os olhos e aceita, como seu companheiro de viagem, o beijo cálido desta morte onipresente. Neste momento, ela se encontra pronta para renascer. Numa das imagens mais bonitas do filme, a nave se desintegra antes de pousar na terra e suas partes incandescentes, ao entrar em contato com a atmosfera, riscam o céu límpido como se fossem espermatozoides em direção ao óvulo. É nessas metáforas visuais de grande beleza plástica e, ao mesmo tempo, reflexivas de um conhecimento científico dos fenômenos espaciais e biológicos, que Gravidade transcende a mera exploração comercial dos motivos para elaborar uma narrativa potente, capaz de atualizar uma poética universal com inquietações e ambientações contemporâneas, realçando com imagens assombrosas a maravilha de se estar vivo. Apesar de tudo, pisar em solo terrestre, sentir o peso de nosso próprio corpo em um lindo dia de sol, ainda é o mais próximo do paraíso a que podemos chegar.