“A NOITE TRANSFIGURADA” – O CÉU, A SOMBRA, O FILME

"Os Vivos e os Mortos" (1987) de John Huston

Por Jacques Aumont[1]

Tradução: Fernanda A. C. Martins

A atração da sombra

“Meu plano preferido seria uma parede, duas pessoas diante da parede, a luz e a sombra. Remove-se uma pessoa: ficam uma pessoa, a parede, a luz e a sombra. Remove-se a segunda pessoa: ficam a parede, a luz e a sombra. Remove-se a parede: ficam a luz e a sombra. Remove-se a luz: fica a sombra. Isso é o cinema.”[2] Aki Kaurismaki

“Isso é o cinema.” Eis uma definição que pode surpreender. O cinema não é, antes de tudo, a escritura do movimento, a reprodução das aparências, um derivado da foto? Não consiste primeiramente num meio de expressão documentário, tão realista que se pôde dele oferecer uma ontologia? E, “além disso”, numa indústria, num comércio do entretenimento? De maneira humorística e sugestiva, Kaurismaki nos diz que o cinema é antes de tudo e, essencialmente, um jogo de luz: na verdade, eis algo evidente demais (ver em alemão falado Lichtspiel). Mas quem diz jogo de luz, figuração da luz, diz também jogo com a sombra, uma vez que a luz no mundo não vem nunca sozinha. Kaurismaki sugere que a sombra, ao contrário, pode se apresentar sozinha tanto no mundo como na imagem. Dito de outra maneira: a imagem começa com a luz e isso é a lei da representação, porém, num outro sentido, a imagem começa também com a sombra, e de que isso poderia ser a lei?

Se o cinema é uma arte da luz e da sombra, é primeiramente ao estúdio que ele deve sua arte e à ciência das iluminações. Em inglês studio, retomado tal qual do italiano, significa o ateliê do pintor e é isso que se trata de copiar: os primeiros “studios” de cinematografia eram ateliês de pintura, apenas um pouco mais iluminados. Com efeito, a iluminação não é senão uma maestria da luz até a perversão como o afirmaram sutil ou expressamente grandes fabricantes de imagerie, de Sternberg a Fassbinder e ainda Spielberg. “Iluminar” um filme, fabricar a luz, consiste em se submeter à captura do drama, mas também em inventar uma aventura da luz, autônoma, arbitrária, que seguirá suas próprias regras e, se necessário, as inventará. “A sombra esconde, a luz revela (saber o que revelar, saber o que esconder, e em que medida todo o trabalho do artista assegura essa fórmula).”[3] A sombra esconde: isto é dito ainda numa perspectiva dramática, na qual se trata de valorizar o que se revela por intermédio do que se esconde. Mas se podemos dizer “isso é o cinema”, considerando apenas a sombra, sem dúvida, é porque ela exerce um papel mais fundamental na figuração cinematográfica.

Em poucos anos Hollywood se tornou a capital mundial do cinema por várias razões – econômicas, ideológicas, políticas, climatológicas. Mas, nessa dominação de uma indústria e logo de uma arte, não se poderia superestimar o peso da invenção de um classicismo estilístico, chamado a reinar durante décadas. Em matéria de iluminação, esse classicismo possui um nome, é o famoso sistema “de três pontos[4]”, que representou a solução mais econômica para a representação da figura humana e a encenação cinematográfica dos dramas. O que me impressiona é que esse sistema, por mais “clássico” que seja, é uma violência feita ao real, tão flagrante quanto a das iluminações dos pintores os mais expressivos. Trata-se sempre de “saber o que revelar e o que esconder”, de saber dosar a luz e a sombra. Não surpreende se, no próprio seio desse sistema clássico, tantos contrastes, tanta escuridão da imagem, tanto expressionismo avant la lettre tenham sido imaginados. Na verdade, os cinemas da sombra nasceram no classicismo; eles são sua conseqüência extrema mais lógica, preocupada somente em levar a termo a experimentação da relação entre luz e sombra, a saber, entre luzes e trevas. Das iluminações de Alvin Wyckoff para DeMille[5], era quase fatal passar às de Karl Freund para Murnau ou Lang, em seguida das deste último às do cinema noir americano dos anos 1930 e 1940.

Essas cinematografias, nós o sabemos, tematizam a sombra, tornando-a criminosa ou ao menos perigosa. É o retorno ostensivo, numa arte da imagem, de um antigo fundo literário, poético e também pictural e gráfico para o qual a sombra era o domínio dos demônios. Lotte Eisner não se enganou a esse respeito, impondo, ao invés do ambíguo e pouco convincente “expressionismo”, a idéia de uma “tela demoníaca” consagrada às aventuras da sombra[6]. Eis, pois, a primeira razão para falar do cinema com a sombra: quaisquer que sejam as aventuras exatas da indústria do espetáculo que se chamou cinema, ela tem, ao longo de todo o seu primeiro estado esteticamente homogêneo, encontrado antigas tradições, que ligam a imagem ao daimon. Hans Belting, que tanto tem trabalhado sobre a história da ligação entre a imagem e a morte, observou que “o corpo fotografado produz de certa maneira sua própria imagem do mesmo modo que sempre havia projetado sua sombra. […] É precisamente na mais estreita proximidade com o corpo que a imagem se transforma num fantasma que não é mais nem corpo nem imagem. É a esse fantasma que se liga a antiga magia da qual a sombra tirou vantagem durante tanto tempo.[7]” Teria sido estranho se o cinema escapasse disso. Pode-se apenas constatar que a história do cinema não se contenta em confortar essa intuição de uma proximidade da imagem movente com a sombra, mas que ela a exacerbou, conferindo uma vida autômata a suas sombras.

O que é a sombra?

Antes de continuar, eu devo precisar um ponto não sobre o cinema, mas sobre a sombra. Em todas as línguas européias, existe um equívoco permanente entre “sombra” e “sombra”: entre a sombra projetada por um corpo situado sob a luz e a sombra que invade todo um espaço para, por sua vez, envolver os corpos. Entre a sombra que pertence a um ser enquanto um prolongamento visível de seu corpo e a sombra que só pertence a si mesma e submete os corpos que recobre. Em suma, entre a sombra como figura, suscetível de viver sua vida de figura – a saber, nas ficções fantásticas tal como a história de Schlemihl, sua vida de personagem – e a sombra enquanto substância, suscetível de invadir um volume, um cômodo, uma casa e instituir algo como um meio próprio[8].

Eis uma distinção ingênua, mas indispensável, na medida mesma que é sempre esquecida. Assim, a formidável “História da Sombra” (Histoire de l´Ombre)[9] de Victor Stoichita, por exemplo, o charmoso ensaio de Dominique Païni sobre “A Atração da Sombra” (L´Attrait de l´Ombre) ou o sábio estudo de Michael Baxandall sobre “A Sombra e as Luzes(L´Ombre et les Lumières) falam da sombra apenas como figura, nunca como meio[10]. É o inverso que me interessa aqui. O prestígio de Sombras (1923), de Arthur Robison, a sombra de Nosferatu subindo sozinha a escada, a utilização sinedóquica da sombra projetada em Casamento ou Luxo? (1923), de Charles Chaplin, me interessam menos que as situações figurativas nas quais a sombra reina e se propaga, invade a imagem como invadiu o espaço e por que o invadiu. Eu me interesso pelo meio sombrio qua talis, pela sombra como substância e como extensão, porque a coisa que eu quero pôr em evidência é a potência sombria que está na origem desse meio – o skieron que Goethe postulou na Teoria das Cores (Farbenlehre), e cuja luta, em pé de igualdade com a potencialidade luminosa, estaria na origem de todo um lado de nossa apreensão e de nossa sensação do espaço visível, subjetivo e objetivo.

Em termos científicos, não se pode pensar a sombra como um princípio ou uma potência. A sombra se define sob o modo negativo, como ausência de luz, quer dizer, como a inexistência ou a não presença de alguma coisa. Ademais, esta “alguma coisa” possui um estatuto material complexo: a luz é o que permite ver, mas ela própria não é vista, e ver não é suficiente para compreender. A sombra reproduz e até mesmo duplica esta dificuldade: ela ocupa o espaço, mas não é o espaço; vê-se ela, mas de maneira sempre ambígua. É a sombra que vemos e não o espaço invadido pela sombra, a saber, os objetos na sombra? Enfim, a sombra não pode nem mesmo ser imaginada como a luz sob o modo dinâmico: não há nenhum equivalente obscuro do “raio” luminoso.

Stoichita evoca o “estado da sombra” que a “epistemologia genética” de Jean Piaget evidenciou na criança.[11] Incapazes de dizer claramente de onde vem a sombra de um objeto, as crianças a atribuem em parte à opacidade do próprio objeto ou fazem intervir uma espécie de “reserva” de sombra: a noite, um canto sombrio, etc. Ou, então, a sombra é vista como uma substância que emana do objeto, e que a luz “elimina” ou dispersa. Apenas em torno de nove ou dez anos, segundo Piaget, a criança compreende que a sombra não é uma substância corroída, eliminada ou destruída pela força luminosa, mas entra numa distribuição geral da luz que segue certas “leis de propagação” geométricas. Contudo, as crianças não estão forçosamente erradas. Dizer que a sombra é uma ausência não remete imediatamente à experiência e supõe a passagem por um modelo matemático, abstrato da luz. (Sabe-se a queixa de Goethe e dos Naturphilosophen à teoria de Newton.)

A sombra do dispositivo

Se resistimos à ideia que a sombra é a contrapartida da luz, isto se deve em grande parte ao fato de que ela não é produzida, não é fabricada nem modelada. “O homem não produziu ainda nenhuma lâmpada, nenhum aparelho, nenhuma máquina para fazer a escuridão[12]”: isso é verdade e indica um limite na simetria entre força luminosa e força sombria. A luz faz parte não somente dos dados da natureza, mas também dos artefatos humanos desde sempre; aliás, o cinema nasceu numa época em que se havia aprendido a fabricar luz à vontade[13] e, em parte, por essa razão. Quanto à sombra, ela é um dado natural, mas que não se sabe reproduzir nem mesmo trabalhar diretamente; para modelá-la, para dominá-la, é preciso sempre pensar “luz”.

No entanto, não somente isto nunca proibiu o trabalho figurativo, como também nunca impediu que ela estivesse intimamente ligada à imagem, em especial, à imagem fílmica. A intuição acientífica de Goethe tem algo sugestivo para a teoria das imagens fotográficas (aí inclusas as do cinema), quando põe a sombra em pé de igualdade com a luz no princípio da representação. Na imagem fílmica, certamente a sombra é uma aparência entre outras, captadas pelo olho indiferente da lente (a “indiferença escrupulosa de uma máquina” da qual fala Bresson[14]). Mas se pode também a tomar como um meio da produção da imagem ao mesmo título que a luz. Ou seja, se “meio” parece por demais preciso (uma vez que não há “máquina para fazer o escuro”), que se entenda a sombra ao menos como princípio da produção da imagem (e por “princípio” eu entendo também, conforme a etimologia, algo de originário).

DeMille, o demoníaco, o filme noir: cinematografias particulares, algumas nascidas em momentos de agitação ideológica, como o diz “expressionismo”[15]. Todavia, o que me interessa é menos essa história das formas fílmicas do que uma relação mais essencial entre cinema e sombra, e que se exerceria ao nível da matéria fílmica mesma. Aliás, isso foi reconhecido amplamente em todas as correntes noires do cinema. Quando, em O Gabinete de Dr. Caligari (Robert Wiene, 1919), Cesare passa furtivamente ao longo de uma parede, moldando na sombra sua silhueta magra e esbelta, vestida de preto, com membros tão longos que ela parece mais serpentina que felina, com os movimentos admiravelmente suaves mesmo em solavancos. Eis um esplêndido acontecimento sombrio, que mobiliza toda a matéria visual da imagem. Ou, quando em Suspeita (Alfred Hitchcock, 1941), Cary Grant levanta seu copo de leite para Joan Fontaine, a sombra do marido, talvez assassino, é captada sabiamente numa verdadeira teia de aranha: a sombra reina com sua metáfora e aí ainda é uma escuridão que pertence tanto à imagem, e até mesmo a seu suporte material, quanto ao drama. Poder-se-ia multiplicar os exemplos, mas eu noto, contudo, que sempre se tratam de coincidências, sempre um tanto perfeitas demais, entre um tema narrativo e um motivo visual, entre um conteúdo dramático e um traço icônico que exprime de maneira conveniente, quase automática. Trata-se, no fundo, do reino do que se chama um pouco delicadamente de “metáfora” fílmica, e que consiste em dar imediata e visualmente uma significação possível da cena, ao mesmo tempo em que ela é mostrada[16].

O que eu postulo é um encontro mais primitivo, mais apurado, entre cinema e sombra, um encontro que não depende unicamente de um tema “noir”, um encontro que tem a ver com uma natureza do cinema. “Natureza” pode parecer provocante, tratando-se da primeira arte inventada, e cujo meio de expressão é altamente técnico e nem um pouco natural. No entanto, se me ocorre que a imagem fílmica, em seu estado nativo, pertence miticamente à sombra ou, em todo caso, ao negro, é em razão de certas propriedades do cinema como meio de expressão (artístico). Com efeito, o filme é também a película, e no caso de haver a revelação, sem a ter exposto a nenhuma luz, ela será negra. Isso não é uma prova, simplesmente algo como uma metáfora. Ademais, na época do eletrônico, esse parentesco automático entre “filme” e “filme” desapareceu ou, mais exatamente, ele surge para o que ela sempre foi: um roteiro imaginário. Mas esse fantasma teve e ainda tem efeitos simbólicos poderosos. Não é por acaso que tantos filmes, de 2001 a Dog Star Man, de Duras a Straub, de Monteiro a Weerasethakul, representaram essa possibilidade de reservar, num determinado momento, o negro sobre a tela de cinema como um acontecimento visual primordial ou como um banho de jovialidade para o olhar, antes que a luz comece a exercer seu papel de modelar – ou se, mais banalmente, o preto tenha sempre sido nos filmes a cor das pontuações (como o branco do papel entre dois parágrafos de romance).

Eis, então, após a explicação um pouco rápida pela tradição cultural, uma segunda razão possível para a estreita associação da sombra e do filme: esse casamento é prescrito pelo dispositivo. Ademais, a película, com seu pretume fantasmático, é uma parte desse dispositivo em sua versão canônica, de todo modo a outra parte não faz senão confirmar. Com efeito, o dispositivo é também outra sombra, a da sala de cinema, perfurada pelo raio do projetor. Esse aspecto do dispositivo, mais imediatamente acessível à nossa experiência sensível, foi comentado abundantemente – que se tenha visto nele a sombra inquietante, onde se vai para regredir, segundo Jean-Louis Baudry[17], ou a sombra absoluta, evocando um impossível retorno às origens pré-históricas do espetáculo, conforme Robert Smithson[18]. (Aí ainda, não é surpreendente que tantos filmes tenham representado ficticiamente essa situação do espectador de filme, se isolando de uma sociabilidade que, no entanto, não desaparece.)

Eu resumo: filmar a sombra é se inscrever numa longa cadeia de imagens que fizeram jus ao laço arquetípico entre a imagem e o reino dos demônios. É também marcar as imagens produzidas de um traço da sombra como aquele, primordial, do cinema inteiro; é lidar com uma natureza do substrato da imagem, como sendo originariamente preta, e com a própria condição perceptiva de toda imagem luminosa (a sala obscura); é fazer passar na imagem algo das qualidades essenciais do meio de expressão – de suas qualidades simbólicas, entenda-se[19].

Filmar a noite

Portanto, filmar a sombra é também e primeiramente… filmar uma parte da sombra, a registrar no modo do documentário. Doravante, a técnica permite captar a sombra a mais profunda, a noite negra, como na cena do início de H Story (Nobuhiro Suwa, 2000), onde dois atores, que vão encenar os personagens num filme sendo feito, discutem seus papéis à margem de um rio, à noite. Não se vê quase nada; esta sombra extrema, onipresente, pena para figurar um espaço; pequenas partículas de cor luminosas flutuam no quadro, sugerindo um plano de fundo, mas com dificuldade para defini-lo verdadeiramente; os dois seres estão lá, nós o sabemos, porque os vimos chegar, mas são necessárias suas vozes para fazê-los existir[20] Ora a voz, o som em geral, não define o espaço (a perspectiva sonora, aliás, mínima aqui, não tem a eficácia da perspectiva visual). Neste caso extremo, apresentamos o que é uma noite negra: uma situação na qual não há mais primeiro plano, plano de fundo, hierarquia, nem propriamente medida visuais. Sem dúvida, isso é, também, amplamente metafórico, a saber, alegórico: trata-se de representar novamente um drama já representado em outro lugar (no filme de Alain Resnais, Hiroshima meu amor, do qual se prepara o remake), e então de conjurar os espíritos; o negro é apropriado à sua aparição. Os atores produzem uma imagem pouco visível: “nem corpo, nem imagem”, para retomar a fórmula de Belting, precisamente, a de um fantasma. De todo modo, isso não impede que esse negro seja negro e percebido como tal.

Evidentemente não é necessário esse jogo explícito com a reminiscência para fazer surgir a sombra e seus poderes num filme. É suficiente o exercício de sua virtude documentária. A noite é um lugar de ficção freqüente e importante. Ela é o momento do perigo, como nos filmes de guerra, e o momento do terror, como nos filmes noirs. Ela é o momento da nova compreensão, da meditação ou da confissão, como nos filmes de Bergman ou de Tarkovski. Ela é o momento da intimidade amorosa ou, ao contrário, o momento no qual toda intimidade acaba para deixar o ser humano entregue às forças que o excedem, como no cinema fantástico. Mas a noite é também e, sobretudo, um espaço de metáfora talvez, evocando forçosamente uma noite eterna. É um velho topos poético, aparentemente universal, essa assimilação da noite à morte, e se os perigos, os terrores, a possessão, os abraços, as confissões e as meditações podem se exercer à noite, é porque ela nos aparece sempre sub specie mortis. A situação ficcional de predileção da noite é sempre uma espécie de memento mori, que muitos filmes articularam expressamente, a começar pelo famoso prólogo de Cidadão Kane, com seu jogo afetado de extinção reiterada das luzes e de invasão do espaço pela noite.

“É a noite que é contínua. É a noite que é o tecido do tempo. A reserva de ser. […] É no meio da noite que a alma pura compreende tudo.”[21] Essas frases de Péguy dizem cruamente o que veicula uma vasta e diversa tradição, vinda do Romantismo ou solidificada por ele, em cinema como em literatura ou em poesia (ver com certeza Novalis). A noite é “o tecido do tempo”. Para o poeta católico Péguy, isso remete, sem ambiguidade, a uma velha metáfora do abandono do religioso em sua fé, mesmo e, sobretudo, se esta última é obscura, mesmo se a fé é o contrário da luz ou das Luzes. Entre o homem que renuncia a compreender para entrar no regime do “eu creio”, e aquele que renuncia ver para entrar num outro regime de visibilidade, noturna, o paralelo não pode deixar de se estabelecer. Filmar a sombra e, sobretudo, esse reino quase absoluto da sombra que é a noite, é seguir uma inclinação, a da atração pelo infinito, pelo desconhecido e, para tudo dizer, pelo sublime e/ou pelo transcendente. (Eis, se o desejamos, uma especificação da minha primeira observação, a da história cultural: o Romantismo fez coagular associações muito antigas, e a sobrevivência das ideologias românticas no cinema o torna apto, e talvez até mesmo fadado a as perseguir e as reativar.)

Filmar o céu noturno

No final de seu último filme, Os Vivos e os Mortos (1987), John Huston encarna o pensamento desesperado de seu personagem através de signos inequívocos: túmulos, neve, montanhas negras, crepúsculo. Terminando as tristes reflexões noturnas de seu personagem com esses planos melancólicos de cemitérios e de planície glacial, Huston levanta uma questão que o filme de Suwa e o de Welles haviam descartado, em proveito de soluções mais radicais, porém mais irrealistas: a questão do céu e de sua figuração. O que chamamos “a noite” não é outra coisa senão a presença, em torno de nós, de uma sombra tão grande que só vemos ela, e que é a sombra produzida da Terra. Mas, como Husserl nos deu o sentido vigorosamente, “a arca originária Terra não se movimenta”[22] , e a noite não é para nós o mergulho objetivo num negro cósmico, mas num estado da vida na Terra. A experiência do arco estrelado, é verdade, é totalmente diferente da experiência do azul do céu, mas continuamos no negro o mais completo (as noites sem lua), a “ver” acima de nossas cabeças esse fantasma esférico que chamamos de céu.

Ver é uma coisa, figurar é outra. Quando o herói cansado de Huston se lembra da sua vida banal, e se dá conta repentinamente de que ela foi um longo fiasco, as mudanças do céu que acompanham seu devaneio não são vistas por ele, mas por nós. São enunciados mudos, que o filme oferece, acrescentando-os como seu próprio comentário às frases do personagem. O céu é tenebroso, azul escuro pintado de violeta, acima de paisagens de neve onde formas negras avançam. Não é a fotografia realista das coisas; é a imagerie de circunstância que flutua no espírito moroso do marido: paisagens sem árvores ou com árvores mortas, cemitérios, neve “caindo igualmente sobre os vivos e os mortos” (últimos mortos do filme). A morte aí está, a noite aí está – e o céu? De que céu se trata? Certamente, não do Céu para onde as almas vão embora. É um cenário, uma cenografia, tão arbitrária quanto todos os céus dos pintores. Sua cor não se parece com quase nada de real, ela é a convenção que nos diz noite e morte, e também cenário e imagem – ela é a metáfora e sua encarnação nas figuras.

Os exemplos, que eu citei no começo, representavam a sombra, o negro – da noite, se o queremos, mas quase sempre de uma noite reduzida à sua mais simples qualidade, a da metade do ciclo quotidiano no qual se deve acender a luz ou nada ver. O céu estava ausente ou permanecia secundário. Os Vivos e os Mortos nos faz compreender o seguinte: figurar a sombra, figurar a noite, não implica forçosamente que se figure o céu. Fazê-lo é uma escolha, expressiva e significativa como toda escolha de imagem, como toda escolha de figura. E evidentemente uma escolha que terá dificuldade em descartar o céu como Céu, como além. A narrativa de Huston é também uma história de fantasma, e mais globalmente os céus filmados, como antes deles os céus pintados, têm uma propensão certa para ecoar em termos religiosos – tanto num autor clássico como John Ford (o cemitério em Legião Invencível), quanto num cineasta da modernidade tardia como Werner Schroeter (o pôr do sol de A Morte de Maria Malibran). O céu sombrio e a morte, o céu noturno e a melancolia, o céu vermelho e o paraíso (ou o inferno): associações quase banais, inevitáveis.

Filmar o céu sombrio

Optar por figurar o céu para figurar a sombra é um paradoxo, tanto o céu é por nós associado à luz. Nas imagens, o céu é na maioria das vezes oferecido como o lugar do sol, quando não é ele próprio dado como luminoso. Daí o problema que as situações visuais suscitam quando um céu sombrio é associado ao dia – ou, ainda mais, aquelas nas quais um céu claro é associado à noite. É o destaque de uma obra bem conhecida de Magritte, O Império das Luzes (várias versões no início dos anos 1950), onde um céu azul claro coexiste com um cenário urbano sombrio e iluminado. O cinema pode produzir esse gênero de efeito, desdobrando-o temporariamente, como num plano de Le Révélateur (Philippe Garrel, 1968) onde o garoto vai encontrar seu leito percorrendo um longo caminho no seio da floresta alemã; visivelmente ele caminha na noite – a noite dos Românticos e dos contos para crianças – e vê-se justamente o solo molhado e as árvores negras e sinistras como esperado. No meio do plano, o surgimento de uma parte de céu claro é incongruente e emocionante. Não é a passagem do dia à noite ou da noite ao dia, que deixaria a lógica salva. É a coexistência de dois contrários, o impossível de uma noite em pleno dia.

O céu resiste em ser filmado sombrio se não queremos filmar o escuro da noite, nem este outro fenômeno quotidiano que é um céu nebuloso. A noite é essencialmente negra, e isso conduz, nós o vimos, aos valores bem particulares. Quanto à nuvem, ela é um objeto perceptivo, certamente apaixonante, e que apaixonou os pintores[23] ; ela é pitoresca, sua matéria indecisa a torna fascinante para o olhar. Mas mesmo quando se tenta a abstrair para fazer dela uma textura ou uma matéria visual, como buscou o Stieglitz das Equivalentes (aproximadamente 1930), ela permanece visivelmente material: um objeto. Ora o céu, o céu em e por si próprio, é precisamente o que evacua a presença de todo objeto perceptivo. O céu é um fenômeno visual absolutamente singular porque sem textura, sem perspectiva (sem “gradiente”), sem marcador espacial. Sua cor é uniforme e imaterial, não detém o olhar, e é uma das decisões das mais arbitrárias da pintura (embora a mais antiga e a mais permanente) a de ter feito do céu um fundo de cenário, um suporte para uma composição. Figurar o céu é se ater a um referente que resiste à figuração, uma vez que ele não oferece nenhuma tomada na estruturação do espaço nem a mínima aparência de solidez. Para quem fabrica a imagem, o céu não é um objeto, porém não é também um meio. Sua figuração suscita problemas comparáveis àqueles que a figuração da atmosfera cria, a qual é transparente e invisível. Mas enquanto a pintura e, em seguida, a fotografia dominaram o atmosferismo, ou seja, a tradução (artística) dos efeitos da difusão luminosa no ar, não será possível evitar senão na imagem, que o céu se torne uma superfície, um achatamento, um fundo, um cenário.

Um céu sombrio, um céu refém da sombra, é ainda mais problemático. Pode ser o que se designa um céu “cinza”, onde as nuvens formam uma cobertura homogênea, uniforme, quase sem modelado. Foi sem dúvida esse efeito que certos pintores quiseram produzir, fazendo do céu uma superfície opaca, com cor imprecisa, de um cinza sempre tendendo para o esverdeado, para acentuar suas conotações sinistras. A Largada do Bucentauro, de Guardi (1765) e a Paisagem de Inverno com Igreja, de Friedrich (1811), não se situam em nenhuma hora precisa do dia. O céu sombrio que eles pintam pode ser tanto um meio-dia como um crepúsculo. Esta própria imprecisão é o sentido de sua imagem: dar a ver um céu sem momento particular, pendendo para a eternidade, mas uma eternidade em si própria não divina, a eternidade da matéria. O céu sombrio figurado nessas imagens não é um céu documentário, nem um céu simbólico, é a afirmação de um poder, o da figura.

Eu adiantarei, pois, esta proposição mais geral: o céu sombrio não é uma realidade, é uma figura. Ainda mais, uma vez que ele emana ao mesmo tempo da representação do céu e da figuração do sombrio (da sombra), é um oxímoro figurativo. A pintura pode o produzir à vontade, flertando com o limite entre o mimético e o simbólico o quanto queira. Quanto às artes fotográficas, elas são menos livres, ligadas como são à sua natureza de documento analógico. Para o cinema, um céu sombrio é, no sentido mais realista, um céu de nuvens ou um céu da noite. Figurar o céu segundo uma superfície marrom (como no final de Nascido para Matar), esverdeada (como na longa cena de sedução diabólica de Sous le soleil de Satan) ou azulada (como as noites de Tropical Malady) é uma decisão mais arbitrária, e que dá ênfase a esta arbitrariedade (mesmo se há sempre a possibilidade de uma motivação realista).

O oxímoro figurativo

Nos filmes dramáticos, a sombra é um poderoso meio para modelar e modular a imagem, para determinar o que aparece e para lhe dar sentido. O céu e, especialmente, o céu sombrio é, na maioria das vezes, um aspecto da imagem que escapa à ficção, mesmo se, num certo sentido, ele lhe pertence sempre. Ele possui a tendência de “viver sua vida” na imagem: seja ao lidar com algo do além, como a metáfora ou o símbolo; seja ao adquirir uma presença visual importante (a de pores de sol, mesmo puramente naturalistas); seja ao manifestar pela sua incongruência de céu sombrio o arbitrário de um trabalho de imagem.

Com certeza, tal fato é mais flagrante ainda nos filmes que não são ou são fracamente dramatizados, filmes à margem do cinema de ficção e do cinema documentário, onde a imagem pode viver sua vida de imagem sem se deixar levar pelos escrúpulos narrativos. É o caso, por exemplo, de duas obras exatamente contemporâneas (1991), The Passing (Bill Viola) e Vozes Espirituais (Alesandr Sokúrov), datando de uma época na qual a imagem movente começava a não mais pertencer exclusivamente aos cineastas. Na primeira dessas duas obras, que não é senão uma grande metáfora da “passagem” da morte, eis o caso de um tal encadeamento de paisagens desoladas, de árvores filmadas como se fossem maquetes, de céus que parecem pintados ou de jogo estranho de faróis de carro que iluminam muito ou muito pouco. No segundo, eis o caso da utilização de tratamentos da película ou das virtudes do vídeo para tingir e quase pintar o céu, de lhe dar uma cor deliberadamente impossível e, aliás, incessantemente em mutação. Estamos aí muito próximos do trabalho do pintor, nas obras de imagem movente (“filmes”, porém muito particulares) em que a mão desempenha quase tanto sua parte quanto o automatismo mimético.

A estranheza do céu sombrio é quase mais sensível num filme também poético, mas sem dissimular sobre o documentário, como Caça ao Leão com Arco, de Jean Rouch (1965), que demonstra que o grande sol, ele próprio e sem trucagem, pode vir a ser eminentemente perturbador. Munido de uma pequena câmera 16mm mecânica, durante anos Rouch percorreu a selva oeste da África a fim de observar um processo longo e complexo, comportando ações muito variadas efetuadas num mundo onde a terra domina, onde a rara vegetação não chega a aparecer verde na uniformidade de um universo ocre. O próprio céu também ganhou a cor ocre, a cor da terra. Não se sabe mais se é a terra que reflete a luz do céu ou se ele é que foi contaminado pela poeira. Mais transparência, mais azul celeste, um céu opaco, cor de enxofre ou cinza, como se todo calor da terra tivesse sido refletido para se tornar cor. Um céu sombrio, paradoxalmente, enquanto o sol reina.

O risco, em todas essas figurações do céu – sombrio, colorido ou simplesmente muito presente por si próprio na imagem – é evidentemente sempre o de recair num arquétipo excessivo, redescoberto mais uma vez como imago. São as visões, os sonhos, as aparições e também as imagens dos ancestrais, ou seja, dos mortos – os fantasmas, as sombras. De redescobrir que a imagem é atraída pela morte, incluindo todos os desígnios apotropaicos a serem desejados (a hipótese de Belting que eu citei anteriormente). E que a imagem é atraída pelo invisível, muito simplesmente porque a mimesis, concebida como simples duplicação das aparências, nunca foi um programa muito excitante.[24] Filmar um céu sombrio, filmar ao mesmo tempo a substância do céu e a substância da sombra é arriscar ceder a um programa imagístico eterno: o da impossível figuração, justamente, de substâncias eternas, que elas sejam naturais, como a sombra ou o éter celeste, ou sobrenaturais, como as “vozes espirituais”.

E, eu insisto neste ponto, filmar um céu sombrio é também e, de modo indissociável, um trabalho material. Eu afirmei “oxímoro figurativo”, ou seja, a força e a presença quase física de uma figura de pensamento, a da contradictio in terminis. Um trabalho que, por essência, escapa ao verossímil para buscar a expressão, sobretudo, um trabalho que não é dissimulado, mas, ao contrário, é reconhecido e mostrado, através de seu aspecto arbitrário e de sua dificuldade em si mesmos. Filmar o céu e o tornar sombrio – sem se contentar de filmar a noite ou o cobrir-se de nuvens – é afirmar o poder da imagem, sua distância da realidade e sua participação num mundo, muito real também, o mundo do visual. É, muito simplesmente, mostrar que se acredita que a arte da imagem não está fechada na duplicação das aparências, mas que ela tem sua “autonomia”[25].

Poslúdio

No final de seu filme Nouvelle Vague (1990), Jean-Luc Godard oferece uma cena noturna, muito noturna. Enquanto se ouve, como em todos os seus filmes deste período, um tecido fechado de vozes e de sons, a câmera percorre duas vezes, em toda sua extensão, o exterior da vasta casa à beira do lago. No percurso de ida, a casa, embora já ameaçada pela noite e pelo obscuro, ainda está iluminada por muitas lâmpadas. Ao voltar, as lâmpadas são apagadas uma a uma, fazendo entrar a casa, a cena, o filme inteiro, na sombra, numa ilustração quase literal da utopia de Aki Kaurismaki com a qual comecei: diante de nossos olhos, os personagens, as paredes, a luz são removidos e não fica nada mais que a sombra, que reina.

Isso seria propriamente o cinema? Sim, isso o é, indubitavelmente. Godard, ele também, quis de fato nos mostrar que a imagem de cinema pode desaparecer na sombra, na noite, e que esse movimento de absorção é tudo menos uma perda. Ele nos assinala primeiramente através de uma destas meias-brincadeiras que cultua: esse ir e vir que passa de um resto de luz à sombra vem justamente após a réplica pseudo-hegeliana do herói (interpretado por Alain Delon): “O revelado nos já foi dado, ele nos incumbe ainda de fazer o negativo.”[26] Pois não é o que vemos: um negativo sendo feito?

Mais sutilmente, Godard propõe outro comentário totalmente diferente desta imagem feita de substância visual e de substância temporal. Logo após a frase dita por Delon, uma música aumenta, surda, obscura também, melódica, mas como um lamento. Nos créditos de seu filme, Godard deu escrupulosamente a lista de todas as músicas citadas – todas, salvo justamente uma, obra do primeiro Schoenberg, em seu período “expressionista”. Ela se intitula Verklärte Nacht (A Noite Transfigurada). Em francês, como em alemão, é quase belo demais: transfigurar é, ao mesmo tempo, tornar mais luminoso e se aproximar do supraterrestre. Sem dúvida, Godard não escapa mais do romantismo, com a história de morte e de ressurreição arriscada que seu filme conta – e sua noite transfigurada é uma noite da alma ou do espírito. Eu prefiro, de minha parte, guardar a outra metade da definição da palavra. Uma noite tornada luminosa, enquanto as luzes são aí apagadas, que definição mais proeminente se pode imaginar do trabalho da figuração e de sua absoluta liberdade?

Jacques Aumont é Professor de Estética do Cinema na Universidade Paris III – Sorbonne Nouvelle e na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS), além de ser autor de uma série de livros, que contribuem de modo inestimável para os Estudos de Cinema. Em breve, o seu livro A Imagem será objeto de uma nova edição revisada e ampliada.

A tradução de “A Noite Transfigurada – o Céu, a Sombra, o Filme” (em sua segunda versão, desta vez em língua francesa) foi efetuada por Fernanda A. C. Martins, Professora Adjunto e Pesquisadora do Colegiado “Cinema e Audiovisual”, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB.

NOTAS


[1] Este texto retoma uma conferência proferida em 25 de novembro de 2009 na Bauhaus-Universität de Weimar, no quadro do programa do IKKM – Internationale Kolleg für Kulturtechnikforschung und Medienphilosophie (Congresso Internacional de Intercâmbio Técnico-Cultural e de Filosofia da Mídia).

[2] Aki Kaurismäki, “Leçon de cinéma”, 20 de janeiro de 2002, Centro de Congresso de Angers, transcrito por Raphaël Lefèvre para Cinéchronique (www.cinelycee.com).

[3] Josef von Sternberg, “Plus de lumière”, Cahiers du cinéma, n° 63, outubro 1956. (Outra tradução em De Vienne à Shanghai, trad. fr., Flammarion, 1989, Original em ingles: Sternberg, Fun in a Chinese Laundry, MacMillan, New York, 1965.)

[4] Ver David Bordwell et al., The Classical Hollywood Cinema. Film Style & Mode of Production to 1960, New York, Columbia University Press, 1985.

[5] É preciso no mínimo lembrar o impacto considerável que teve Enganar e Perdoar (The Cheat,1915) na crítica européia, devido ao jogo, julgado então muito moderno, dos atores, mas também das iluminações muito contrastadas e expressivas.

[6] Lotte Eisner, A Tela Demoníaca (1952).

[7] Hans Belting, “Image et ombre”, Pour une anthropologie des images, Gallimard, 2004, p. 269. Bild-Anthropologie, München, Fink, 2001.

[8] Como Jun’ichiro Tanizaki poetizou sobre a casa japonesa maravilhosamente: Éloge de l’ombre (1933), trad. fr., Publications Orientalistes de France, 1977.

[9] O uso de aspas se aplica aos títulos de obras e ensaios ainda não traduzidos para o português. Quanto a certos títulos de filmes, inéditos ou de difícil acesso no Brasil, eles foram mantidos tal como dispostos no texto.

[10] V. Stoichita, Brève histoire de l’ombre, Droz, Genebra, 2000. D. Païni, L’Attrait de l’ombre, Yellow Now, Crisnée (Belgique), 2007 ; M. Baxandall, Shadows and Enlightenment, New Haven-London, Yale University Press, 1995. Igualmente Gombrich, Shadows, National Gallery, London, 1995.

[11] J. Piaget, passim, e notadamente La construction du réel chez l’enfant, Delachaux et Niestlé, Paris-Neuchâtel, 1937.

[12] Alain Fleischer, Faire le noir. Notes et études sur le cinéma, Marval, 1995, p. 7. (Aqui o noir não deve ser entendido como a cor dos pintores, mas como a sombra absoluta.)

[13] Wolfgang Schivelbusch, La Nuit désenchantée (1983), trad. fr., Le Promeneur, 1993. (Licht, Schein und Wahn, Berlin, Ernst, 1992.)

[14] Robert Bresson, Notes sur le cinématographe, Gallimard, Paris, 1975.

[15] O que, entretanto, não ficou sem posteridade. Ver J. Aumont & B. Benoliel (dir.), Le cinéma expressionniste: de Caligari à Tim Burton, PUR, Rennes, 2008.

[16] A ponta extrema desse processo semiótico é a ideia eisensteiniana de ’obraznost’; sobre esse ponto ver J. Aumont, Montage Eisenstein, 2ª ed. revista, Images Modernes, Paris, 2005.

[17] J.-L. Baudry, « Le dispositif », L’Effet-cinéma, Albatros, Paris, 1978.

[18] R. Smithson, « Art through the Camera’s Eye » (1971-2), in Eugenie Tsai, Robert Smithson Unearthed. Drawings, Collages, Writings, New York, Columbia University Press, 1991.

[19] Pois, no real, é bem certo que não se tenha mais uma necessidade verdadeiramente absoluta da obscuridade para ver um filme.

[20] Wolfgang Beilenhoff teve razão ao sugerir, desse ponto de vista, um parentesco entre a sombra e a voz off – uma e outra fantasmáveis como lugares onde a representação se originava simbolicamente.

[21] Charles Péguy, Le Porche du mystère de la deuxième vertu, 1912.

[22] Edmund Husserl, « L’arche-originaire Terre ne se meut pas » (1934), La Terre ne se meut pas, Éd. de Minuit, 1989.

[23] A nuvem é tanto um corpo que se pôde erigir em objeto, quanto até mesmo em objeto teórico – em caso de escola para os pintores para a figuração em geral. É difícil pintar a nuvem, porque ela é movente, evanescente, e por isso diz algo da empresa pictural. É, o sabemos, o projeto do livro de Hubert Damisch, Théorie du nuage. Pour une histoire de la peinture, Éd. du Seuil, Paris, 1972. Ver também D. Païni, L’attrait des nuages, Yellow Now, 2010.

[24] Como ainda Eugène Green disse muito recentemente: “Qual interesse há em mostrar ao espectador um plano de nuvens, se ele não vê aí outra coisa a não ser o que ele percebe, a manhã, olhando através da sua janela?” E. Green, Poétique du cinématographe, Actes Sud, Arles, 2009, p. 50.

[25] “Como provavelmente não há ninguém que esteja perto de declarar como sendo supérflua a produção artística dos últimos milênios, pode-se (…) considerar como assimilado que as ideias essenciais das obras de arte não teriam podido ser comunicadas em nenhum outro meio de expressão, e que assim é preciso conceder à esfera das artes plásticas uma plena autonomia.” Otto Pächt, Questions de méthode en histoire de l’art (1977), Macula, 1994, p. 163. (Original : Methodisches zur Kunsthistorischen Praxis, 2 Aufl., München, Prestel, 1986.)

[26] A frase é, de fato, de Kafka.