Por Guilherme Sarmiento
Um dos maiores mistérios da dramaturgia contemporânea é o sucesso e longevidade dos filmes conhecidos como multiplots, ou multitramas, ou, como gosta de intitulá-lo um dos seus artífices mais competentes, Robert Altmann, filmes corais. Isto porque, a depender de grande parte daqueles que se dedicaram a legitimar a dramaturgia desde a antiguidade clássica, uma história, para não se perder o fio, deve focar as peripécias de um eleito virtuoso conhecido genericamente por “herói”. É sobre as pegadas deste ser prototípico que os escritores de manuais de roteiro cravam suas estacas para indicar o caminho aos iniciados. Conforme esta criatura calca mais fortemente o peito dos pés na areia fina e branca de onde brotam as ficções, mais se evidencia para os especialistas a marcação de uma vontade; os curtos repiques no fim da orla indicam a sua última carreira em direção ao clímax; a impressão mais profunda dos calcanhares talvez reforce a notação de uma crise. Mas certamente tais interpretações possíveis a uma jornada única não caibam em uma praia logo após o réveillon. Sobre a superfície remexida pela passada de inúmeras personagens só restarão duas alternativas: apontar a impossibilidade de se encontrar uma unidade dramática (degeneração do drama) ou reivindicar uma nova poética, no caso, uma hiperpoética, que dê conta de todas estas relações divergentes e instáveis. Dessa forma evasiva perpetua-se o mistério do porquê as narrativas múltiplas, degeneradas e extemporâneas, satisfazem tão imediatamente o desejo do espectador médio por drama.
Mesmo em se considerando que um autor multiplot nunca necessitou que chancelassem suas extravagâncias narrativas, ambas as considerações sobre seu trabalho expostas acima servem somente para criar em torno destas histórias uma aura de rebeldia ou novidade muitas vezes injustificadas. Pois nem os multiplots refletem, a priori, um total desconhecimento das bases da dramaturgia clássica, nem são frutos de uma resposta automática, ou mesmo de um devir arrastado através das interfaces digitais, cujo resultado seria a perda do centro e o lançamento de vetores em torno de um vazio dramático inominado. Se a afirmação de que a ampliação do escopo de personagens degenera o drama só prejudicou, durante todos esses anos, os fundamentos de um arcabouço teórico que desse conta da poética multiplot, não menos nociva foi a tentativa de resgatá-lo do limbo relacionando-o a novos meios de recepção e produção de narrativas, ignorando uma genealogia cujas ramificações protejam-se em direção a regiões muito remotas.
Em seu artigo Quando a narrativa perde o centro, Cléber Eduardo vai apontar como herança direta dos Multiplots a “narrativa panorâmica do século XIX”. Sabina R. Anzuategui em Multiplot cinematográfico da década de 90:funções dramáticas das cenas de morte, encontrará nas comédias de Shakespeare, como Sonhos de uma noite de verão, as bases das ações desintegradas, porém, podemos considerar este recuo no tempo tímido se observamos o modelo menos como a sedimentação de um estilo e mais como a irrupção de camadas muito arcaicas, móveis, soterradas debaixo da organização aparente de um sintagma. Um dos primeiros romances Europeus, Decamerão, de Boccaccio, multiplicava as histórias a partir de uma ancoragem espacio temporal bem marcada: uma igreja onde um grupo de mulheres, acuadas pela peste, intercala-se na contação das mais escabrosas histórias. O mesmo podemos dizer de As mil e uma noites, cujos contos nascem ao redor da imensa criatividade de Sherazade. Estas fissuras narrativas delimitam uma pulsão imemorial que constitui, ao risco de desintegrar, a própria busca da unidade de ação aristotélica. “É necessário que haja substâncias simples, visto que há compostos; pois o composto outra coisa não é que um amontoado ou aggregatum dos simples”, diz Leibniz em seu Tratado de Monadologia, escrito em meados do século XVII. Ele parece indicar o procedimento estilístico dos multiplots: nos amontoados de histórias, no aggregatum de criaturas ficcionais, subjaz desde logo o concílio de um só organismo falante.
Neste sentido, comparar a poética de uma narrativa multiplot com a da aristotélica seria como se utilizar dos mesmos princípios através dos quais Levi-Strauss delimitou o pensamento selvagem, mítico, do científico, conceitual.
“o pensamento mítico, esse bricoleuse, elabora estruturas organizando os fatos ou o resíduo dos fatos, ao passo que a ciência, “em marcha”, a partir de sua própria instauração, cria seus meios e resultados sob a forma de fatos, graças as estruturas que fabrica sem cessar e que são suas hipóteses e teorias” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.35)
Enquanto a narrativa aristotélica, e a reboque, todas as teorias formalistas do século XX, buscam conceitos gerais e funcionais que expliquem o drama narratologicamente, a poética multiplot coleciona histórias, juntando-as por semelhança, através de um sentido de bricolagem que as tornam indomáveis, centrífugas, mas ainda assim complementares ao desejo por unidade dramática esboçado pelas formas consideradas “inteiras”.
Pode-se apontar a montagem cinematográfica como a prova cabal destas tensões entre o fragmento e a unidade presentes em todo formalismo estético: conforme o cinema se descobria como narrativa, suas imagens se desprendiam da frontalidade e da acondicionabilidade espacio-temporal da amostração para se apresentarem simultaneamente a um olhar ubíquo, que atingiu sua maturidade através do domínio da bifurcação, da alternância, entre duas ou mais cenas. O que se considera como uma etapa primitiva da história do cinematógrafo, suas relações mal digeridas com o teatro, nada mais foi do que o silêncio antes do salto: a avaliação de uma queda cujos resultados seriam catastróficos para a arte de narrar, ou seja, o medo do esfacelamento suicida, da inarticulação e da afasia. Porter, Griffith, e outros pioneiros libertaram o olhar desta imobilidade tão traumática para o enredo quanto o desenfreio da imaginação. Como Jacques Rancière mesmo notou em seu estudo, “a vida não conhece ações orientadas para fins, mas somente situações abertas em todas as direções”(RANCIÈRE, 2013, p.8) E a sétima arte encontrou sua vocação no momento em que soube ir em todas as direções sem o risco de se perder. Tornou-se mais formalmente coesa, mais viva, e, também, mais narrativa quando assumiu o relato de sua própria incontinência.
A Saga e o Filme de Episódio: proximidades e diferenças com o multiplot
Uma maneira interessante de se entender a poética Multiplot é compará-la com outros tipos de narrativas com as quais faz fronteira, sendo, em alguns momentos, difícil delimitar o território em que se pisa devido a semelhança com que se compõe o entrelaçamento ou a autonomia de cada um dos muitos enredos colocados em jogo. Podemos, por exemplo, notar que o Multiplot se traduz numa geografia intermediária entre uma mera compilação de histórias, no cinema denominada filmes de episódios, e a elaboração da confluência de inúmeras tramas para um fim ou um objetivo comum, aqui, nesse breve estudo, chamado de Saga. Nem tão autônomas a ponto de se tornar um conjunto de curtas-metragens unidos por um tema, nem tão dependentes de uma urdidura comum, capaz de alinhavar protagonistas, antagonistas e adjuvantes numa jornada única, as histórias em um filme multiplot coloca os fragmentos de vida em simultaneidade uns com os outros, confrontando sistematicamente, seja através da montagem, seja através de reverberações temáticas e metafóricas, as cenas em suas relações paradigmáticas.
Se pegarmos o filme 5 vezes favela – agora por nós mesmos veremos que, muito embora todas as histórias sejam ambientadas numa comunidade carioca, o Morro do Vidigal, nenhuma abre mão de sua autonomia narrativa dentro do filme. O espectador frui um curta após o outro e, de certa forma, nada obriga que suas intercalações imprimam um sentido de simultaneidade às histórias. Este tipo de experiência cinematográfica, muito próxima, na literatura, ao livro de contos, é a ideal como estratégia de lançamento para aqueles cuja atração por projetos coletivos não desfaz por completo a afirmação de um estilo próprio, algo impensável quando se pensa em um filme multiplot. Como dito anteriormente, aqui a busca por unidade age constantemente sobre as histórias implicadas, deformando as linhas de ação de modo a que se rossem, se toquem, reverberando constantemente uma cena sobre a outra, um tema sobre o outro, como se com as imagens se pudesse elaborar uma fuga.
Da mesma forma, quando se compara o multiplot com a Saga emergem diferenças bastante significativas e expressivas desta poética elaborada pelas repulsões entre o esfacelamento e o apaziguamento da forma, entre a superfície lisa de um emboço bem feito e os tijolos internos que a sustentam, placas tectônicas móveis capazes de, a qualquer movimento difuso, abalar as estruturas – e aqui o terremoto final de Short Cuts, filme emblema do formato multiplot, mostra-se uma metáfora poderosa. Consideramos Saga uma história com inúmeros personagens, porém, ao contrário do multiplot, todos eles compartilham da mesma premissa dramática. No cinema norteamericano proliferam as sagas, sendo o Senhor dos anéis um exemplo deste modelo capaz de orquestrar uma jornada múltipla em direção a um objetivo comum: o anel mágico. Dentro do cinema brasileiro, Cidade de deus responde a estes apelos ao reconstruir a disputa pelo poder, individualizando cada um dos traficantes, por uma boca de fumo. Apesar de multiplicar as criaturas ficcionais, uma Saga pode facilmente ser reduzida por um esquema actancial, algo impensável na poética multiplot, pois as tramas aqui exigem propulsões centrípetas que mantenham intactas os enredos e suas motivações individuais. Por isso, dificilmente se encontrará um multiplot de natureza épica, haja vista que tantas vozes emitidas com objetivos tão distintos se não descaracterizam completamente o drama, assassina a possibilidade de se emitir qualquer experiência vivida. Um multiplot épico é a ladaínha fúnebre de qualquer narrativa. Seu canto de morte.
Definição de Multiplot
Multiplots são filmes onde duas ou mais tramas se alternam com autonomia (conflito próprio), mas com pontos de convergência dramáticos e figurativos que alinham todas as histórias em um mesmo sentido de construção dramática.
Unidade narrativa do multiplot
Quem assiste um filme multiplot, a princípio, é vítima da desorientação produzida pela entrada e saída de inúmeras personagens, tem a atenção toda mobilizada para memorizar as tramas e, obviamente, quanto maior o número de “plots”, maior será a dificuldade de se acompanhar o andamento da história. Consideramos esta uma estratégia narrativa própria do formato: dar a impressão de espaços incomunicáveis, cujas regras internas sejam refeitas a cada corte. Conforme a atenção vai se deprimindo entre os lapsos, entretanto, vem a seu socorro um conjunto de recursos narrativos capazes de sincronizar todas as linhas de ação e, ao final, reconduzir a espectador a um sentido de linearidade multipolar ao invés de, simplesmente, deixá-lo cego em meio a uma nuvem de conflitos divergentes e aleatórios. Existem certas prerrogativas que desde a escritura do roteiro impelem a diegese a varrer subterraneamente os inúmeros acontecimentos privados, como, por exemplo, o achado de certos eventos denominados por alguns de “catalizadores”. Sabina R. Anzuategui prefere chamá-los de “eventos de reunião”:
“Em Short Cuts, helicópteros pulverizando inseticida no começo, e um terremoto no final; em Magnólia, uma chuva de sapos no clímax; em Rio 40 Graus, um jogo de futebol conecta vários personagens. Não são fatos que movem a ação, mas costuram os vários personagens, inserindo-os num mesmo espaço, sujeitos às mesmas regras” (ANZUATEGUI, 2003, p.430)
Conforme a definição de multiplot dada no verbete anterior, estes eventos são definidos aqui como “pontos de convergência”, na verdade, muitas vezes, o artifício não visa a produção de uma convergência ou reunião de personagens, mas o que Barthes – ao discorrer sobre as relações paradigmáticas entre os signos – chama de homologia1, e que aqui servem para relacionar as muitas tramas dispostas em alternância. As ações somente se deixam ecoar uma sobre as outras como se vibrassem através de uma energia similar ou se tocassem tenuamente numa dimensão ainda assim virtual, pois suspensa diante de um pano de fundo cuja função primordial é riscar as latitudes de uma localização. Estas imagens comuns, eleitas para unificar as histórias, chamarei aqui de figurativas. São mais ou menos o que em literatura chamamos de topoi. Além de construir a coerência do discurso com topoi estabilizadores, sejam eles espaciais – representativos de uma cidade( Rio 40 graus), de uma casa ( No meu lugar) –, sejam de ordem temática – relação do homem com seu cão (amores perros) ; a insegurança das grandes cidades (O som ao redor) – , a figuratividade do multiplot age no eixo de construção de correspondências e choques entre os fotogramas, criando analogias internas às cenas. Espalham tanto um forro sobre o qual as histórias são costuradas, como desfraldam as figuras nos intertícios das cenas, metamorfoseando-se para dar um sentido poético à montagem.
Mas estes não são os únicos “pontos de convergência” a selar a união dos componentes multiploting. Tão mais importantes para criar a unidade narrativa dos multiplots do que as intervenções figurativas, responsáveis pelas isotopias e correspondências poéticas entre as histórias, são os pontos de convergência dramáticos pois, ao contrário do que se pensa, existe uma hierarquia que motiva a organização das tramas e as alinha sob determinadas marcações estruturalizantes. Por mais distantes que as cenas estejam uma das outras, este alinhamento serve para que as ações deem a impressão de simultaneidade: por isso a montagem neste formato específico tende, ao invés de evidenciar a discursividade, o sintagma, produzir um efeito de desenvolvimento em cadeia. Geralmente, para precipitá-la, os plot points de cada micronarrativa coincidem para a produção de uma carga dramática, ainda que diminuída, possível de ser identificada conjuntamente. Para sincronizar as ações, o espectador, muitas vezes, é obrigado a efetuar um leve recuo da cena posterior, haja vista que a narrativa sempre avança para frente, recompondo ao fim do ajuste a notação de uma evolução dramática consecutiva de uma apresentação, de um a confrontação e de um desfecho, os três atos do paradigma. Estes reencaixes produzem aquele desnorteamento apontado como característico do modo de contação. Geralmente, as tramas apresentadas no início do filme ajudam a marcar com igual intensidade o desfecho, acentuando estas viradas decisivas que, em maior ou menor grau, ressoam em todas as cordas, uma após as outras.
Seguindo este raciocínio, chamo de tramas nodais aquelas que fornecem os pontos de convergências dramáticos, marcando com maior intensidade os nódulos a partir dos quais as ações se desenvolvem em cadeia. No filme No meu lugar, por exemplo, a história de Jorge, o carregador de supermercado, torna-se a trama nodal do filme por ser aquela onde se encaixará temporalmente a cena obrigatória: o assalto e, consequentemente, o crime anunciado desde o prólogo. Obviamente quando está em jogo a orquestração de várias linhas de ação, estes pontos podem ser distribuídos de modo a que, a cada virada, uma história cumpra o papel de fornecer as marcas de execução da unidade dramática. Em Rio 40 Graus, a trama do jogador de futebol Foguinho, cujo início se dará somente aos 30 minutos da película, terá papel fundamental na metade final do filme, especialmente, na localização precisa do desfecho da obra como um todo. No momento em que supera seus medos e faz dois gols no adversário, abre, em oposição ao atropelamento do jovem vendedor de amendoim, a possibilidade de conclusão de todas as histórias até então encadeadas pela narrativa.
Poderia enumerar outras características que fazem do Multiplot uma construção convencional, apesar de, muitas vezes, ser utilizado como paladino da pós-modernidade ou como a base expressiva das novas mídias. Mesmo se levando em conta a grande palheta de possibilidades – deixarei a classificação dos multiplots para outra oportunidade – abertas por estas narrações fragmentadas, quem escreve um roteiro com estas características não necessariamente objetiva destruir a dramaturgia mais ortodoxa. Isto não se coloca como um fundamento do formato. Sua fruição adéqua-se muito mais a perspectiva de um jogo onde se entrevê o embate permanente entre a inteireza da forma e a precariedade do conteúdo, entre o aceite do mundo como fragmento e o julgo da vontade artística, embate este consequente de toda a experiência estética. Escrever um multiplot, portanto, é mais descortinar do que destruir os artifícios que sustentam a unidade dramática.
Guilherme Sarmiento é Professor Adjunto de Dramaturgia e Narrativas Audiovisuais na UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia). Foi o Coordenador do 1 Festival Brasileiro de Cinema Universitário (FBCU) e co-dirigiu Conceição Ou Autor Bom é Autor Morto, primeiro longa produzido pela UFF.
REFERÊNCIAS
ANZUATEGUI, Sabine R. “Multiplot Cinematográfico na Década de 1990: Funções Dramáticas das Cenas de Morte”. In FABRIS,Mariarosaria et alli III Socine – Estudos de Cinema. 2003.
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007.
EDUARDO, Cleber. “A Narrativa Perde o Centro”. In Filmecultura. n.51/Julho de 2010.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Papirus: São Paulo, 1989.
RANCIÈRE, Jacques. A fábula cinematográfica. São Paulo: Papirus, 2013.
NOTAS
1“A consciência paradigmática define pois o sentido, não como o simples encontro de um significante e um significado, mas, segundo a bela expressão de Merleau-Ponty, como uma verdadeira “modulação de coexistência”, ela substitui a relação bilateral da consciência simbólica (mesmo se essa relação é multiplicada), por uma relação(pelo menos) quadrilateral, ou mais exatamente, homológica”. BARTHES, ROLAND. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.44.
Extremamente esclarecedor. Muito obrigado.