Por Cláudio Marques
Na noite de encerramento do 46º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 25 de setembro de 2013, o longa Depois da chuva, dirigido por Marília Hughes e por mim, recebeu três prêmios: Melhor Ator, Melhor Trilha Sonora e Melhor Roteiro.
Cerca de cinco anos antes, numa manhã de setembro de 2008, estávamos, Marília e eu, em nossa casa em Brotas. Nós estávamos um tanto abatidos, pois um projeto de longa de um amigo, do qual éramos produtores, não mais aconteceria. Essa seria a nossa primeira experiência num filme de ficção de longa duração.
Até aquela data, ainda não nos víamos com desejo de realizar o nosso primeiro longa como autores-diretores. De fato, nós estávamos muito à vontade realizando curtas, um formato que, particularmente, nós gostamos muito até hoje. Bobagem dizer que curta-metragem é escola para longa! Curta é filme.
Não sei por qual motivo, mas, naquela manhã, eu comecei a contar, como já havia feito algumas outras vezes, detalhes sobre alguns fatos pelos quais eu passei nos anos 80. Eu narrei, entre outras coisas, a minha participação na Semana de Arte Moderna do Colégio Nobel, aqui em Salvador. Naquele episódio, eu me vesti com roupas femininas e compusemos, o meu parceiro de encenação e eu, uma música agressiva à escola, professores e alunos. A vingança da minha professora foi me dar uma nota baixa pela peça, apesar do sucesso dela junto aos demais alunos.
Marília, como em outras ocasiões, escutava a tudo com muito interesse. Eu entrecortava a narrativa desses momentos alegres com os mais árduos, de um período muito difícil tanto para o país quanto para a minha família. Eu, um adolescente classe média, vivenciei a tudo com muita curiosidade e intensidade. Eu experimentei um pouco de tudo, era ativista em um grupo anarquista com amigos em incríveis bandas punk e fusion (jazz com hardcore). Eu ia atrás das coisas, num momento de muitas descobertas, após vinte anos de ditadura militar.
Foi durante aquela conversa que Marília observou pela primeira vez que ali estava o nosso primeiro longa. Eu fiquei em silêncio, não a levei a sério. Foram necessárias mais conversas entre nós, nos dias seguintes, para que eu entendesse que poderíamos, inspirados em minhas vivências dos anos 80, falar da transição política do país e assim nos debruçarmos sobre um período importante, formador para os dias atuais, mas que quase não foi tratado pelo cinema nacional.
Em 2008, já tínhamos passado mais de vinte e cinco anos daquele momento e tornava-se importante tecer novos pontos de vista sobre aquela transição que para mim foi mal feita e enganosa, com base em alianças políticas absurdas. Uma estrutura absolutamente antidemocrática foi mantida e continua a existir em nossa sociedade até hoje. Vale lembrar que a “Nova República” teve início com José Sarney na presidência. Justamente aquele que durante anos esteve a frente da Arena, partido diretamente ligado aos militares no poder. Contava, ainda, com ACM e Marco Maciel como ministros, símbolos da direita no poder, nos anos 70. Foi um momento de forte desilusão, no final das contas, mas que é contado pelos políticos e demais no comando do país, desde então, como uma transição positiva, democrática e boa para a população.
Falar sobre isso passou a nos interessar, sobretudo ao lembrarmos que tudo começou, em 1984, de forma eufórica e heróica, quando toda a população foi às ruas acreditando ser possível modificar para melhor a vida no país. Naquele momento, nos sentíamos vivenciando a história, construindo algo para o futuro. Éramos seres potentes, capazes de tudo. Logo, no entanto, surgiram os obstáculos. Os políticos dominaram completamente a situação e convenceram a população que mesmo que as eleições fossem indiretas, todos seriam contemplados. Ao final, como já escrito, a sensação de impotência e orfandade tomou a todos. Vale dizer que alguns grupos discordantes da alegria geral existiam e profetizaram a frustração daquele processo. Estávamos nos anos 80, marco final das grandes utopias, incluindo aqui Anarquistas e Socialistas Revolucionários.
Mas, como contar tudo isso sem ser didático e maniqueísta? Como fazer com que essa história interessasse não apenas aqueles que a vivenciaram, mas também aos mais jovens? A brasileiros e estrangeiros? Como ser local e, ao mesmo tempo, universal? Como ser político através do cinema? Aí estavam os desafios do roteiro e do projeto como um todo que estávamos para começar a desenvolver.
A primeira decisão em termos de construção do roteiro é de que a história do país serviria como pano de fundo. A frente de tudo, um adolescente de espírito libertário, curioso, que tencionaria a autoridade instituída. Um jovem em transição, querendo mais e o melhor. Um adolescente parecido comigo, mas não eu, não a minha história. Queríamos falar do Brasil através desse sujeito em formação.
A segunda decisão é de que a narrativa da nosso longa respeitaria os fatos da época e suas fases marcantes, algo aqui já descrito: euforia, obstáculos e impotência.
Eu comecei, então, a escrever, naquele mesmo mês de setembro de 2008. Rapidamente, eu fiz uma escaleta, que nos rendeu grande entusiasmo. Essa energia inicial que todo projeto desperta é incrível. Algo como uma paixão que nos cega, que provoca frio na barriga e que impede de percebermos as imperfeições da criação, naquele momento.
Alguns filmes nos orientavam por diferentes razões. Rosetta, dos Irmãos Dardenne, 1999, nos alimentava particularmente pela forma como a protagonista conduzia aquele fantástico longa do início ao fim. Estávamos interessados no humanismo, a credibilidade e o naturalismo que os cineastas belgas impregnavam esse e outros de seus filmes. Vi e revi Rosetta, além de ter estudado o roteiro do longa.
Um filme bem diferente, mas que também nos ajudava era Amores Constantes, de Philipe Gael, de 2007. Trata-se de um longa que se passa na França, a partir dos eventos de maio de 68 e que recria todo o espírito de uma época, através da convivência entre jovens em velhos sobrados de Paris. Depois da Chuva também era um filme de época, além de contar com jovens em uma cidade antiga. O jogo de luz de Amores Constantes nos interessava muito, mas aí já é outra conversa.
Eu comecei a escrever de forma intensa e em dois meses uma primeira versão já estava pronta. Para que fique claro como trabalhamos, eu escrevia com muita avidez, diariamente, e Marília seguia lendo, opinando em partes específicas e no roteiro, como um todo. Cinema, para mim, só existe graças a essa troca constante, com muita conversa e discussão. Com muitas divergências, que se apaziguam após reiterados argumentos de um lado e outro.
No início de 2009, o MINC abriu edital de roteiro para longas de baixo orçamento. A paixão inicial já havia passado e logo entendemos que o nosso projeto ainda tinha muito a caminhar, mas decidimos inscrevê-lo assim mesmo. Vencemos aquela burocracia toda (é impressionante a quantidade de papel que se imprime nesses editais) e Depois da Chuva enfrentou a sua primeira disputa.
Meses depois tivemos a notícia de que passamos pela primeira fase e ficamos entre os 50 projetos selecionados, entre 200 e tantos inscritos. Mas, paramos por aí. Não chegamos ao pitching final, com 14 projetos. Eu deixei, então, o roteiro “descansar” por um tempo. Não li nem escrevi nada, uma só linha, durante cerca de cinco meses. Quando retomei o trabalho, achei o roteiro desastroso. Resolvemos ir, Marília e eu, para Lençóis, cidade onde o cineasta e roteirista Orlando Senna nasceu, em busca de isolamento e inspiração.
Já na Chapada, nós compreendemos que eu ainda estava muito preso às minhas memórias. Eu precisava me soltar, me desvencilhar de familiares e amigos para que a história ganhasse em força. Ali, em Lençóis, “matamos” alguns personagens que eram importantes na minha trajetória, mas que nada significava quando transpostos ao papel. Fato é que a vida, potente como é, quase sempre perde a força quando colada à ficção. Um detalhe curioso desse primeiro tratamento é que dois grandes amigos daqueles tempos dos anos 80/ 90, Sora e Iuri, eram personagens da nossa história e tinham presença importante no roteiro. Durante essa imersão, na Chapada Diamantina, nós os “matamos”. Eu chamo a atenção desse detalhe simplesmente por serem eles pais de Pedro Maia, que viria a se tornar o protagonista do “Depois da Chuva”.
A verdade é que passamos quinze dias reconstruindo radicalmente a nossa história, partimos quase do zero, diminuindo substancialmente o número de personagens e tentando simplificar muitas das ideias, para que ficassem compreensíveis. Ainda havia texto em excesso e poucas situações verdadeiramente cinematográficas. Após a nossa viagem e imersão, eu trabalhei duro ainda mais alguns meses seguidos.
Em meio a tudo isso, vale lembrar que Marília e eu estávamos pensando, realizando e colhendo os frutos dos nossos curtas: O Guarani (2007), A Infância de Anastácia (2008), Nego Fugido (2009), Carreto (2010), Sala de Milagres (2011) e Desterro (2012). Com esses filmes, fomos selecionados para mais de 170 festivais, no Brasil e no exterior. Esses filmes foram premiados e nós passamos a ser reconhecidos como autores pertencentes a uma nova geração do cinema brasileiro. Isso nos deu ânimo dobrado para seguir em frente fazendo o que sempre desejamos: filmes!
No final de 2009, nós já estávamos com o segundo tratamento do roteiro em mãos e o Governo do Estado da Bahia lançou um edital para a produção cinematográfica. Um único longa seria contemplado. Confiantes com relação ao que tínhamos, nós não apenas decidimos participar como ainda trabalhamos de forma ensandecida durante o período de final de ano, 2009-2010, para aprimorar roteiro, justificativa e demais itens demandados. Toda a burocracia dos editais em meio aos fogos de artifício que pipocavam por todo o Brasil.
Trabalho feito, eu me recordo que fizemos uma leitura do roteiro no mesmo dia da inscrição do Depois da Chuva no edital e entendemos, mais uma vez, que o projeto tinha um imenso potencial, mas ainda estava aquém do que seria necessário para executar um bom filme. Mesmo assim, não deixamos de inscrevê-lo. Dois meses depois, inscrevemos o mesmo projeto, sem nenhuma mudança, no edital de Baixo Orçamento do MINC.
Em maio daquele ano, saiu o resultado do edital da Bahia: nós estávamos entre os três projetos selecionados, juntamente com A Coleção Invisível, de Bernard Attal, e Café, Pépi e Limão, de Pedro Léo. Fizemos uma bela defesa oral do projeto, mas ficamos em segundo lugar, sendo que Bernard Attal, com A Coleção Invisível, foi o vencedor. Conhecíamos o projeto de Bernard, acreditávamos nele e o resultado nos pareceu justo. Alguns poucos meses mais tarde, saiu o resultado do MINC e nós estávamos entre os 14 selecionados. Uma nova defesa oral para nós, desta vez em São Paulo. Encontramos amigos queridos nessa disputa, alguns muito nervosos. Todos queriam fazer seus filmes e esse processo todo, de defesa oral, nunca me pareceu tão difícil e insano. Um amigo cineasta passou mal, outro tomou uma dose forte de calmante e saiu oferecendo aos demais…
Antes que eu resolvesse tomar um, chegou a nossa vez e as coisas não pareciam ter sido tão boas. Saímos do pitiching um tanto inseguros, acreditando que a defesa feita no edital da Bahia tinha sido muito melhor. Exercitamos um pouco do sadismo contra nós mesmos durante o dia todo, perambulando por São Paulo e lembrando as respostas que não demos, até que a noite chegou e veio a notícia de que Depois da Chuva havia sido contemplado! Mal conseguimos deitar e dormir, de tanta alegria e dor no corpo, resultado de toda a tensão do dia. Aquele momento, do anuncio dos vencedores, jamais me escapará.
No início de 2011, retomamos o trabalho. Sabíamos que tínhamos que caminhar, cada vez mais rápido, para aprimorar o roteiro, que ainda não era bom o suficiente. Importante dizer que nunca acreditamos que um roteiro tenha que estar perfeito e completamente fechado, sem espaço para respiros durante as filmagens. Buscamos sempre um roteiro potente, que nos deixe livres e dê espaço, em muitos momentos, para a criação no set de filmagens.
Foi nessa retomada do trabalho que percebemos que um dos personagens que mais gostávamos, Ana, amiga e parceira inseparável de Caio, atrapalhava o desenvolvimento do protagonista, tirava o seu brilho. Ela dizia coisas que Caio deveria dizer. Ela se posicionava e tinha atitudes que Caio deveria ter. Tomamos a decisão de “matá-la” e isso fez um bem danado ao nosso personagem principal.
A essa altura, já estávamos em busca dele, do nosso protagonista. Começamos a procurá-lo no final de 2010. Até meados de 2011, nada feito, nenhuma notícia, após muitas entrevistas e conversas com jovens da Bahia, São Paulo, Paraíba e Pernambuco.
Em maio de 2011, o nosso roteiro foi selecionado pelo “Laboratório Novas Histórias”, promovido pelo SESC/ SENAC, em modelo implementado anos antes em parceria com Instituto Sundance. Fomos para Campos do Jordão, em São Paulo, e ficamos alguns dias novamente em imersão total, em um belo hotel, discutindo com pessoas diferentes e desconhecidas sobre o nosso roteiro. Foi uma experiência incrível, que fez com redesenhássemos algumas situações, mas que confirmou que já estávamos próximos do que buscávamos.
Lembro de ter levado para Campos do Jordão um filme que o amigo e também cineasta, Fellipe Barbosa, havia indicado para a gente: Água Fria (1994), de Olivier Assayas. Era um filme que deveríamos ver, ele nos disse. E ele tinha razão: Água Fria tem a pulsão incendiária que buscávamos. Um filme de época, que traz a potência e a desilusão da juventude. Esse longa tornou-se a principal referência para Depois da Chuva. Vimos e revimos o primeiro longa desse cineasta francês que sempre admiramos uma pá de vezes.
Poucos meses depois, o roteiro de Depois da Chuva foi selecionado para um segundo Laboratório, o BRLAB. Novamente, tivemos contato com alguns consultores que trouxeram opiniões realmente importantes para nós. Não houve nenhuma grande reviravolta durante esse segundo laboratório, mas nos sentíamos cada vez mais seguros com o roteiro.
Também em 2011, nós fomos convidados para tomar parte do Fundo de Desenvolvimento de Roteiros em Amiens, na França. Lá, alguns consultores leram o roteiro e nos deram suas opiniões. Em Amiens, pela primeira vez, nós sentimos algo que agora ganha força com o filme pronto, que é a estranheza em representar a Bahia de uma forma diferente do que vem sendo feito normalmente. Um dos consultores reparou: “Eu conheço a Bahia. Onde está a música de Carlinhos Brown no filme de vocês?”. Um segundo consultor nos reprovou por termos em Água Fria, de Olivier Assayas, uma forte referência ao filme. O que eles nos diziam, no fundo, era: há um lugar para o cinema do terceiro mundo nos principais festivais do mundo. Esse lugar diz respeito ao que devemos falar e COMO devemos falar sobre esses temas. É um jeito de nos dizer qual o nosso lugar, sobre o quê e como devemos tratar a vida. Aquela experiência não nos desanimou, pelo contrário. Passamos a ter maior convicção dos rumos que tínhamos assumido e a importância de romper com aquele ciclo vicioso. Se fossemos bem sucedidos, poderíamos elaborar uma obra importante para nós e para a nossa cidade.
De volta ao Brasil, estávamos perto de terminar o ano. Estávamos contentes com o roteiro, tínhamos convicção que poderíamos filmar em meados de 2012, mas ainda não tínhamos encontrado o nosso protagonista. Sabíamos que se errássemos no protagonista, não teríamos filme. Por melhor que fossem roteiro, fotografia, cenários….
Já tínhamos feito entrevistas com quase mil jovens, mas nada. Conhecemos garotos geniais, mas não encontramos o nosso personagem principal. Fomos, então, ao Colégio Oficina, aqui de Salvador. Essa, talvez, seja a única escola a manter um grupo de teatro em Salvador. Tínhamos marcado outras vezes de ir lá, mas sempre algo nos atrapalhava. Para a nossa alegria, não apenas fomos mas nos deparamos com jovens interessantes, talentosos e, entre eles, Pedro Maia, que tinha muito do espírito do personagem. Mais do que isso: ele não era afetado, mantinha uma postura sóbria, mesmo quando provocado. Conseguia demonstrar um misto de frieza e paixão, absolutamente importantes para o trabalho que iríamos propor. Entendemos ali mesmo que poderíamos moldá-lo à imagem do nosso personagem, Caio.
A partir de janeiro de 2012, começamos a trabalhar de forma intensa com Pedro, o que nos levou a aprimorar situações e diálogos do roteiro. Muito do que eu escrevi soava mal quando dito por ele e logo eu corria para reescrever sequências inteiras. Muito do que ele falava, de forma espontânea e sem pretensões, eu “roubava” para a história. Pedro e Sophia brincavam: “Cuidado, eles estão nos escutando. Vai virar fala dos nossos personagens!”
A chegada da equipe ainda nos ajudou a dar o retoque final. Marcelo Caetano (assistente de direção) e Ivo Lopes Araújo (fotografia) são cineastas e, mais do que isso, pessoas absolutamente comprometidas com o projeto em que trabalham. Lemos juntos algumas vezes o roteiro todo e ali, também, alguns aprimoramentos se sucederam.
Parecia um processo interminável, esse de “mexer” no roteiro, mas um dia teve fim. Foi na segunda semana de filmagens, em que unimos duas sequências distintas e modificamos algumas das falas.
Depois das cinco semanas no set, vieram os dez meses de montagem. E vejo que o premiado roteiro no Festival de Brasília nos deu base sólida para construir um filme que admiramos e temos orgulho de termos feito.
Cláudio Marques é um cineasta baiano, idealizador e curador do Panorama Internacional Coisa de Cinema. Ganhou inúmeros prêmios nacionais e internacionais com os curtas que co-dirigiu com Marília Hugues, destacando-se Nego fugido e Carreto.