Por Guilherme Sarmiento
Há poucos dias da virada do ano, uma notícia desconcertante veio à baila nas redes sociais, deixando a classe artística de Salvador estupefata como quem atravessa uma densa nuvem da gás lacrimogênio para chegar, de forma imprevisível, até uma mesa cheia de petiscos. Segundo o texto jornalístico, ACM Neto, no dia anterior, saíra ovacionado pela intelligentzia soteropolitana ao cancelar o Réveillon e anunciar investimentos que melhor promovessem a cultura do município. O autor da miragem: Cláudio Marques. Imagino o cineasta entregando o factoide a Marília Hughes antes de postá-lo na web e, após os reparos de sua companheira, liberar a falsa reportagem sem saber ao certo sobre as consequências de sua ousadia. Este ato singelo e bombástico ilustra muito bem a elaboração de uma marca. O cinema de Cláudio Marques e Marília Hughes almeja atuar sobre o presente como um elemento físico, material, ao invés de simplesmente transportar ideias que se evaporam em contato com o olhar escapista. Talvez o equilíbrio precário entre o documento e a construção dramática seja a melhor maneira de se produzir as palpitações decorrentes de um jogo perigoso. Um cinema atuante, sobretudo político e, por isso mesmo, arriscado, obriga a um controle muito grande não somente do que se quer dizer, mas, sobretudo, de como se deve dizer, implicando com isso em tortuosos questionamentos éticos muitas vezes desdobrados sobre a própria forma narrativa. Neste sentido, Depois da chuva, o primeiro longa do casal, é um prolongamento de questões reiteradas nos curtas produzidos durante os pouco mais de cinco anos de uma notável cumplicidade artística.
Num primeiro momento, Depois da chuva coloca-se como um projeto que foge à tendência ao documentário trabalhada nos filmes anteriores da dupla. A dramaturgia dos curtas Carreto e Nego fugido, por exemplo, produz-se a partir de uma ambientação tão mais importante que tornou o drama uma espontânea travessia, conduzida ao sabor de encontros cuja potência reajusta constantemente a ação às necessidades do presente. Pela primeira vez houve com o longa a meta de se elaborar uma construção dramática rigorosa, com marcações ajustadas a um projeto prévio. Esse desejo pode ser percebido no empenho do roteirista Cláudio Marques de aprimorar o texto fílmico através de inúmeros tratamentos, que aos poucos foram depurando as incontornáveis referências autobiográficas de vida, atenuando as elocuções de um diário para que a voz das personagens fosse mais altissonante do que as memórias juvenis do autor. Aqui, ele foi obrigado a narrar, pois voltava para o passado recente e, ao fazê-lo, desmobilizava a ação de sua atualidade para o terreno da História. (Ler depoimento do autor aqui http://www.cinecachoeira.com.br/2013/11/depois-da-chuva-a-historia-de-um-roteiro-premiado/) Porém, esta “História”, dentro da perspectiva de um cinema “atuante”, não se faz imobilizada como um projeto de natureza pedagógica, ainda que o filme, muitas vezes, se preste a este papel ao organizar, como em uma enciclopédia, alguns bens simbólicos reconhecíveis da década de 1980. Temos aqui a percepção de que o revisionismo histórico promovido pela dramaturgia serve muito mais para definir os dilemas atuais, ou melhor, para suspender o tempo em sua possibilidade de fruição linear do que oferecer uma mitologia estabilizadora de épocas muito bem demarcadas e, por isso mesmo, exauridas em seu contexto estagnante.
Considero o artifício narrativo de Depois da chuva muito parecido com o utilizado em A alegria, filme que aborda o universo juvenil através de certos deslocamentos temporais que oferecem uma abertura, uma fresta, através da qual o presente se vê replicado desde regiões aparentemente longínquas. Porém, o longa de Marina Meliande e Felipe Bragança, outro jovem casal de nossa cinematografia recente, avança em direção ao futuro para refletir sobre o hoje e, certamente, este deslocamento antinatural dá ao filme conotações proféticas e, por isso, torna suas imagens enigmas a serem decifrados. Já o longa baiano volta-se para o passado afirmando-se a partir de um documento, ainda que este registro sirva para suspender o tempo e, a partir deste estado de espírito forçado por uma espera, forjar uma angústia que se perpetua até os dias de hoje. Por isso, mesmo sendo histórico, a temporalidade em Depois da chuva prolonga-se levando consigo as expectativas sentidas diante da morte de Tancredo Neves, arrastando-as por décadas, para entregá-las cruamente aos olhos lívidos dos que testemunham a prisão de José Genoíno e José Dirceu, baluartes da geração utópica, vendo cair por terra os sonhos de um governo de esquerda no Brasil. 1986, assim como 1968, foi um ano que não terminou pelo simples fato de que o Brasil ainda espera o triunfo de seu futuro predestinado. Se em A alegria a protagonista direciona seus superpoderes luminosos em direção ao anticristo da Guanabara, Caio, o herói da abertura política brasileira, tem as ações condicionadas por uma espécie de maldição cíclica e, de certa forma, emblemática, que se manifesta através de um projeto sempre em vias de se concluir.
Isto quer dizer que Depois da Chuva seja um filme pessimista? Acredito que esta suspensão ideológica produzida ao fim da projeção funcione menos como a notação de uma impotência do que como o chamado para um outro nível de liberdade. Este vazio é menos uma frase decaída em uma reticência do que o silêncio à espera de uma resposta. Estamos diante de um filme político e, portanto, este hiato nada mais é do que o espaço necessário para que o espectador, em estado presente, perceba a farsa e encontre, diante da distopia, um outro caminho para se afirmar o novo. Neste momento em que o filme se livra das falsas linearidades da História, presentificando o drama recorrente, torna-se um libelo para a juventude e um belo manifesto de uma primavera que se inicia.
a esquerda marxista e morfética tenta mais uma vez se apropriar, reescrever a história. até gostaria de ver um filme sobre a cena punk e ANARQUISTA de Salvador, mas com esse filme já sei que vou me decepcionar. punks odeiam esquerda e direita de igual forma! “entre ser uma base militar russa, ou um bordel americano, é a liberdade que o povo clama”. Inocentes, Salvem El Salvador.