Por Cristian Borges
“Passamos à poesia; passamos à vida.
E a vida, tenho certeza, é feita de poesia.
A poesia não é alheia – a poesia, como veremos,
está logo ali, à espreita.
Pode saltar sobre nós a qualquer instante.”
Jorge Luis Borges
Como tratar de poesia no cinema? Haveria um cinema de prosa distinto de um cinema de poesia? Como termos oriundos da literatura, supõe-se que seu uso deveria se restringir a um emprego meramente adjetivo. Mas, nesse sentido, como distinguir um filme mais poético de outro mais prosaico?
Ao tratar do documentário, o teórico Bill Nichols define o “modo poético” como aquele que “enfatiza associações visuais, qualidades tonais ou rítmicas, passagens descritivas e organização formal (…) muito próximo do cinema experimental, pessoal ou de vanguarda”. Em seguida, ele dirá que:
“O modo poético sacrifica as convenções da montagem em continuidade, e a ideia de localização muito específica no tempo e no espaço derivada dela, para explorar associações e padrões que envolvem ritmos temporais e justaposições espaciais. (…) As pessoas funcionam, mais caracteristicamente, em igualdade de condições com outros objetos, como a matéria-prima que os cineastas selecionam e organizam em associações e padrões escolhidos por eles”. (NICHOLS, 2008, p.62).
Percebe-se que, mesmo em um tipo de cinema acostumado a voltar seu olhar para os chamados “atores sociais” ou “naturais”, como o documental, podem ser encontrados desvios poéticos que os tornem equivalentes, por exemplo, aos acontecimentos banais provocados por uma chuva de verão caindo sobre Amsterdã (A Chuva, Joris Ivens, 1929), às máquinas e aos elementos que entram na fabricação do plástico (O canto do estireno, Alain Resnais, 1958), ou ainda que os retirem de um contexto histórico específico a fim de incluí-los em um fluxo formal determinado pela vontade estética dos cineastas (Terra Bárbara, de Angela Ricci Lucchi e Yervant Gianikian, 2013). Para Nichols, esse tipo de documentário “enfatiza mais o estado de ânimo, o tom e o afeto do que as demonstrações de conhecimento ou ações persuasivas”.
Voltando nossa atenção para a ficção, encontraremos no cineasta Pier Paolo Pasolini talvez o teórico mais bem sucedido na exploração conceitual de um viés poético para o cinema. Para ele, a vida pode ser considerada como “cinema in natura”, enquanto que o próprio cinema consiste na “língua escrita da realidade”. E a questão a se desvendar seria (pelo menos em 1965, quando o texto foi escrito): “como a ‘língua da poesia’ pode ser teoricamente explicável e praticamente possível no cinema”? (PASOLINI, 1976, p.24)
A poesia, em geral, parece ter uma dívida, através do uso de metáforas,1 com a memória e o sonho. E é justamente à memória e ao sonho que Pasolini recorre ao definir os im-signos: o conjunto de imagens, naturais e intrínsecas à experiência humana, distintas dos lin-signos (as palavras relativas à linguagem convencional verbal), e “fundamento ‘instrumental’ da comunicação cinematográfica”. Contudo, ele ressalva: enquanto que na linguagem verbal, o poeta parte de um instrumento restrito, regulado e limitado pelo dicionário, na linguagem das imagens o cineasta encontra-se diante de um universo ilimitado e “selvagem” de elementos possíveis. Para Pasolini, “o instrumento linguístico sobre o qual se funda o cinema é, portanto, do tipo irracional: e isso explica a profunda qualidade onírica do cinema, bem como sua natureza, digamos, objetual, absoluta e necessariamente concreta.”(PASOLINI, p.17) Assim, enquanto o escritor intervém diretamente sobre as convenções da língua, de maneira estética, a intervenção do cineasta consiste em uma dupla operação: antes, linguística, e só então estética, pois
Primeiramente, ele deve retirar do caos o im-signo, tornando-o possível e inserindo-o em um dicionário de im-signos significativos (gestos, ambientes, sonho, memória); para fazer, em seguida, um trabalho de escritor, ou seja, adicionar a esse im-signo puramente morfológico uma qualidade expressiva individual (PASOLINI, p.18)
Daí o cinema ser um meio de expressão artística que parte essencialmente de imagens concretas – não podendo, segundo Pasolini, lidar com “termos abstratos” nem se configurar como linguagem filosófica –, dotado de uma “violência expressiva” e de uma “materialidade onírica”, o que o leva a concluir que “a língua do cinema é fundamentalmente uma ‘língua de poesia’” – muito embora saibamos que ela se tornou, desde muito cedo, uma “língua de prosa narrativa”.(PASOLINI, p.20)
A esse respeito, o que chama sua atenção é a forma pela qual, no cinema, ao contrário da literatura, não se poder distinguir facilmente entre a linguagem da poesia e a da prosa, a não ser por nuances – pois tudo é cinema. E, na falta de um léxico conceitual e abstrato, o cinema seria “fortemente metafórico”(PASOLINI, p.23). Assim, apesar do peso dado, ao longo de sua história, a uma vertente mais prosaica, o cinema encontraria no análogo cinematográfico do discurso indireto livre literário, que Pasolini denomina “subjetiva indireta livre”, a chave para a instauração de uma “possível tradição da ‘língua técnica da poesia’”:
O “cinema de poesia” (…) tem por característica produzir filmes de natureza dúbia. (…) O autor se serve do “estado de ânimo psicológico dominante do filme”, que é aquele de um herói doente, anormal, para realizar uma mimese contínua que lhe confere uma enorme liberdade estilística, anormal e provocante. Sob esse filme, esconde-se outro, que o autor teria feito sem o pretexto da mimese visual de seu herói: um filme de caráter total e livremente expressivo e expressionista (PASOLINI, p. 31-32)
Desse modo, num cinema cuja máxima seria “fazer sentir a câmera” – em oposição ao cinema clássico, que tenta fazer com que ela passe despercebida –, dentro de um espírito neoformalista bem adequado aos anos sessenta, o uso da “subjetiva indireta livre” funcionaria como pretexto para se “falar indiretamente, através de um álibi narrativo qualquer, na primeira pessoa: logo, a linguagem empregada pelos monólogos interiores dos personagens-pretexto é a linguagem de uma ‘primeira pessoa’ que vê o mundo de acordo com uma inspiração essencialmente irracionalista”( PASOLINI, p.35)
Não por acaso encontraremos uma aproximação semelhante entre irracionalismo e sonho – embebida pelo mesmo esprit du temps e igualmente empenhada na busca pelo poético no/ do cinema – no manifesto “Estética do sonho” (1971), de Glauber Rocha.2 Num texto eminentemente político, o cineasta culpa o racionalismo colonialista burguês pelas mazelas impostas à massa colonizada: “O Povo é o mito da burguesia. A razão do povo se converte na razão da burguesia sobre o povo. (…) A ruptura com os racionalismos é a única saída”(ROCHA, 2004, p.250).3 Associando a revolução à desrazão – e, inversamente, a razão à repressão –, em uma época de ditaduras e contestações em vários países, ele faz o elogio do misticismo popular (como “única linguagem que transcende ao esquema racional de opressão”), do irracionalismo liberador e da obra de Borges, que teria escrito “as mais liberadoras irrealidades de nosso tempo. Sua estética é a do sonho. Para mim é uma iluminação espiritual que contribuiu para dilatar a minha sensibilidade afro-índia na direção dos mitos originais da minha raça”.(ROCHA, p.251)
Em uma brilhante análise desse manifesto, José Carlos Avellar destaca seu caráter fortemente prospectivo, já que encontraremos várias das ideias apenas esboçadas nesse texto refletidas em filmes e textos futuros de Glauber. E através de uma complexa montagem de textos de origens e épocas diversas, ele vai destrinchando as entrelinhas do pensamento glauberiano:
“O cinema, tradicionalmente preocupado em abrir uma janela para a realidade imediatamente visível, deveria debruçar-se para dentro, reagir contra a supremacia do texto sobre a imagem (…). Para liberar a imagem é preciso “desmontar todos os esquemas dramáticos de teatro e cinema”: “(…) o cinema saiu do tempo, da lógica, do drama etc., para ser espaço e luz: O cinema do futuro será luz, som, delírio – aquela linha interrompida desde L’Âge d’or de Buñuel”. O espectador deverá ver o cinema “como se estivesse numa cama, numa festa, numa greve ou numa revolução”, porque este novo cinema é “antiliterário e metateatral, será gozado e não visto e ouvido como o cinema que circula por aí” (AVELAR,1995,P.81).4
Da Idade do Ouro (1930) de Buñuel à Idade da Terra (1980) de Glauber, percebemos que o que está em jogo quando tratamos de um cinema de poesia, pelo menos em relação aos autores aqui citados (e a outros mencionados por eles), é, de um lado, um mergulho para dentro de si – para o mundo dos sonhos, da memória, da autorreflexividade do próprio cinema e da autorreflexão em primeira pessoa ou da transferência para um personagem que funcione como alter ego do autor etc. –, e de outro, uma exploração do sensorial em prejuízo do racional – abraçando-se o que existe de selvagem, livre, louco e ilimitado nas inúmeras possibilidades, ainda tão pouco esmiuçadas, do cinema.
Assim, para além das diferenças entre documentário e ficção, fica a ideia de um cinema desregrado e desmedido, que talvez habite hoje em dia muito mais as galerias e bienais de arte contemporânea do que as salas de cinema ou os aparelhos de televisão, em obras de uma natureza libertária e dúbia, mais descompromissadas em relação aos ditames de mercado e de editais, e talvez mais dispostas a experimentar ou brincar com a tal “língua da poesia”.
Como diria Jorge Luis Borges, que considerava a poesia como “uma paixão e um prazer”, os livros – como, aliás, os filmes – “são somente ocasiões para a poesia”: “Melhor seria, talvez, que os poetas fossem anônimos.” Talvez a internet e a dispersão dos meios e canais de produção e difusão audiovisual possibilitem, mais que nunca, esse anonimato da poesia tão almejado pelo poeta cego.
Cristian Borges é Professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão e do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Universidade de São Paulo. Cineasta, realizou sete curtas metragens (em 16mm, 35mm e S-8mm) em cinco países, exibidos em tevês públicas brasileiras (TVE e TV Cultura) e em diversos festivais no Brasil e no exterior, e foi um dos fundadores do Festival Brasileiro de Cinema Universitário, além de organizar mostras e livros sobre Agnès Varda, Alain Resnais, Novo Cinema Independente Alemão e Harun Farocki.
REFERÊNCIAS
AVELLAR, José Carlos. “A arte antes da vida: Glauber Rocha, a estética da fome e a estética do sonho”. In: A ponte clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, García Espinosa, Sanjinés, Alea – Teorias de cinema na América Latina. Rio de Janeiro/ São Paulo: Ed. 34/ Edusp, 1995.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 3a ed., 2008.
PASOLINI, Pier Paolo. “Le cinéma de poésie”. In: L’Expérience hérétique. Paris: Payot, 1976.
ROCHA, Glauber. “Eztetyka do Sonho”. In: Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 250.
NOTAS
1 Ver, por exemplo, o capítulo que Jorge Luis Borges dedica às metáforas em Esse ofício do verso. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
2 Apresentado na Columbia University (Nova York) em janeiro de 1971, o texto só viria a ser publicado dez anos depois, em Revolução do Cinema Novo (Rio de Janeiro: Alhambra, 1981).
3 Glauber, aliás, é citado por Pasolini como um dos praticantes desse tipo de cinema.
4 As fontes das citações de Glauber são, respectivamente: Folheto de divulgação produzido pela Embrafilme para o lançamento de Cabezas cortadas, setembro de 1978; “Novo filme de Glauber: antiliterário e metateatral”, entrevista a Bruno Cartier Bresson, O Estado de S. Paulo, 9 de setembro de 1979.