Por Julio Bezerra
Como o conhecimento é possível? Como podemos ter acesso à transcendência? Como o sujeito é capaz de se referir ao mundo? É através da formulação dessas questões que nasce a fenomenologia. Embora a palavra venha diretamente da filosofia kantiana e Hegel tenha sido o primeiro a usá-la para com ela indicar o conhecimento que a consciência tem de si mesma através dos demais fenômenos que lhe aparecem, é com Edmund Husserl que a fenomenologia se perpetua como corrente filosófica que visa esclarecer de que maneira a possibilidade de conhecer eventos e objetos mundanos se funda nas estruturas da consciência. Uma investigação centrada no conceito de “intencionalidade”.
Oriunda de Brentano, de quem Husserl foi aluno, o conceito de intencionalidade sugere que a característica essencial da consciência é a sua qualidade de se referir sempre a algo que não ela mesma: ter consciência é sempre ter consciência de alguma coisa. Em outras palavras, a consciência é uma atividade constituída por atos (percepção, imaginação, especulação, volição, paixão, etc.), com os quais visa algo. Para Husserl, como para Brentano, os fenômenos mentais ou subjetivos são intencionais. A percepção é percepção de um percebido, o desejo é desejo de um desejado, a imaginação é imaginação de um objeto imaginado… Não há distinção entre o papel atuante do sujeito que conhece e a influência do objeto conhecido. O que não quer dizer que o objeto está contido na consciência, mas que só tem seu sentido de objeto para uma consciência, que sua essência é sempre o termo de uma visada de significação. A consciência só é consciência estando dirigida para um objeto. Assim como o objeto só pode ser definido em sua relação com a consciência.
Graças a este conceito, Husserl entrevê entre sujeito e objeto, ou consciência e mundo, uma correlação mais original que a dualidade sujeito-objeto cartesiana. O que está em jogo é portanto evidenciar um método de cognição que, enquanto mantém a análise “imanente” aos conteúdos da consciência, ainda poderia chegar a um conhecimento “absoluto” e “universal”. O filósofo queria identificar o que era essencial no mundo da experiência dentro do ato de percepção: o “pensamento-ato” em sua forma “pura”. Os pensamentos sempre foram “sobre alguma coisa”, mas seus conteúdos podiam ser concebidos, ele insiste, como dados-em-si, sem recurso aos objetos do mundo natural, “lá fora”. O mundo fenomenológico é composto pelos modos de doação dos objetos em correlação com os atos de consciência. É por isso que a investigação husserliana partilha do idealismo transcendental. A tentativa, no entanto, de nos colocar, antes de todo raciocínio, no mesmo plano da realidade, no nível das “coisas mesmas”, como diz Husserl, marca seu projeto de longo alcance.
Esse lema – “volta às coisas mesmas” – ressoou em um café da Rue Montparnasse, em Paris. Raymond Aron havia passado um ano no Instituto Francês em Berlim, e, de volta à capital francesa, encontrava-se com o casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Era o ano de 1933, e aquela era uma França dominada pelo “espiritualismo” da Universidade da Terceira República, em um misto de positivismo e neokantismo. Os amigos pediram a especialidade da casa, coquetéis de abricó, e Aron se referia de maneira entusiasmada e entusiasmante às ideias de Husserl. “Estás vendo, meu camaradinha”, diz a Sartre, apontando seu copo, “se tu és fenomenologista, podes falar deste coquetel, e é filosofia” ( apud BEAUVOIR, 1984, p. 138).
Falar das coisas do mesmo modo como as tocava! Era justamente essa possibilidade de uma filosofia do cotidiano concreto que a geração francesa dos anos 30 tanto buscava. A geração dos “descontentes” ou dos “3 H” (em referência às iniciais dos nomes de três filósofos alemães, Husserl, Heidegger e Hegel), como foi chamada, já questionava a filosofia ensinada nos liceus e universidades tradicionais, cujos cursos seguiam até Immanuel Kant. A filosofia precisava tratar dos problemas de sua época, das novas descobertas da psicologia e da psicanálise, da iminência da guerra, da luta de classes, do movimento surrealista e da pintura impressionista. Esta era a promessa da fenomenologia, uma corrente que não negava nem a existência do mundo exterior (ao contrário, afirmava que ele já está aí antes de qualquer reflexão) nem a do “mundo interior”. Husserl, Heidegger e Hegel (ignorado pela academia francesa até os anos 30) representavam a própria modernidade filosófica para a geração de Sartre e Maurice Merleau-Ponty.
O alcance da fenomenologia de Husserl não se restringiria somente ao campo da filosofia. Ela jamais esteve confinada a uma ciência particular, espalhou-se por todas as artes. Isto porque em um sentido mais elementar, a fenomenologia não é apenas uma corrente de pensamento que prioriza determinadas ideias e princípios, mas um modo de reestruturação da maneira de posicionarmos os problemas teóricos como um todo, não colocando o ente em seu ser, e sim procurando acompanhá-lo em seu próprio campo de manifestação. Se nos atermos à etimologia da palavra, “qualquer um que trate da maneira de aparecer do que quer que seja, qualquer um, por conseguinte, que descreva aparências ou aparições, faz fenomenologia” (RICŒUR, 1953). Ou como observou Heidegger, o essencial da fenomenologia não consiste em “realizar-se como ‘movimento’ filosófico. Acima da atualidade está a possibilidade. Compreender a fenomenologia quer unicamente dizer: captá-la como possibilidade” (HEIDEGGER, 1979: 301).
A reflexão sobre a sétima arte se desenvolveria no pós-guerra em perfeita sintonia com a ambiência intelectual da França. Inspirada pelo movimento italiano, a teoria cinematográfica se voltava então com afinco para a metade realista da imagem cinematográfica. A relação intensa do espectador com o mundo visado pela câmera passa a ser favorecida, assim como a noção de experiência é privilegiada. O cinema como expressão e/ou revelação do mundo. Neste cenário, a fenomenologia, atendendo ao desejo por uma discussão sobre a imagem dentro de suas relações com o objeto do qual é imagem, provaria ser uma rica base a partir da qual emergiriam variadas análises a respeito do cinema ao longo dos anos 40 e 50. A corrente filosófica de Husserl levaria ao cinema nomes como Maurice Merleau-Ponty, André Bazin, Amédée Ayfre, Michel Mourlet, Roger Munier, Jean Mitry, entre outros, sempre em uma discussão sobre a imagem dentro de suas relações com o objeto do qual é imagem, sobre o que essa relação seria capaz de manifestar e que significados ela irradiaria.
Merleau-Ponty seria um dos pioneiros deste diálogo. O fenomenólogo se aventuraria pelo cinema no início e, posteriormente, no fim de sua trajetória, interessado, primeiro, em investigar a tensão que o veículo era capaz de produzir entre mente e corpo, consciência individual e realidade exterior, um se expressando no outro, e, depois, incorporando, ainda que timidamente, a sétima arte em seu projeto de reformulação de uma nova ontologia. A seguir, vamos passear por estes dois momentos.
“O cinema e a nova psicologia” é o título da conferência de Maurice Merleau-Ponty proferida no IDHEC (Institut des Hautes Études Cinématographiques, em Paris) em 13 de março de 1945, mesmo ano de publicação de sua obra mais famosa, “Fenomenologia da percepção”. Neste ensaio, o interesse pelo cinema está associado à noção do filme como um “objeto de percepção”, capaz de revelar ou tornar explícitas certas características fundamentais que marcam o nosso comércio com o mundo. Para Merleau-Ponty, a imagem cinematográfica, enquanto “Gestalt temporal”, demonstra o elo natural entre o interior e o exterior, e afirma o olhar como constituição de um sentido anterior à inteligência. Para ele, fenomenologia e cinema convergiam em particular no que se refere aos temas de nossa relação com o mundo e com os outros.
O cinema definiria, em suas linhas gerais, as condições que faziam da sétima arte lugar privilegiado da expressão de uma “visão do mundo”, em que contingência, ambiguidade, e a concepção do homem como ser-em-situação constituem elementos chave. Este é o argumento por trás de “O cinema e a nova psicologia”. É nesta direção que o filósofo vai explorar semelhanças entre a sétima arte e a psicologia da forma (Gestalt), inserindo o cinema em sua crítica à concepção clássica da percepção, em uma interrogação sobre a herança deixada pelo racionalismo moderno, sobre a cisão entre o corpóreo e o pensamento reflexivo, sobre o abandono do ver e do sentir em nome do pensamento do ver e do sentir.
O ensaio se divide em duas partes. Na primeira, Merleau-Ponty descreve o que ele chama de “psicologia clássica” opondo-a à “nova psicologia” (Gestalt). A primeira atribui um papel primário às sensações, entendidas como efeitos pontuais de excitações locais que o intelecto e a memória teriam que compor sucessivamente em um quadro unitário. A segunda mostra, ao contrário, que o que deveria ser tomado como originário é a percepção concebida como apreensão sensível de um fenômeno no seu todo. Para Merleau-Ponty a percepção não pode ser vista como promotora de uma separação entre a sensação e a inteligência organizadora, e sim como uma atividade organizada que marca a relação corporal com o mundo, uma decifração estruturada, anterior ao intelecto. Logo no primeiro parágrafo do texto, ele diz:
A psicologia clássica considera nosso campo visual como uma ‘soma ou um mosaico de sensações, onde cada uma delas dependeria, de modo estrito, da correspondente excitação retínica local. A nova psicologia, logo de início, faz notar que, mesmo tomando em conta nossas sensações mais simples e imediatas, não podemos admitir esse paralelismo entre elas e o fenômeno nervoso que as condiciona. Nossa retina está muito aquém de ser homogênea; ela é cega, por exemplo, em algumas de suas partes, para o vermelho ou para o azul e, no entanto, quando eu olho para uma superfície vermelha ou azul, não vejo, nela, qualquer zona incolor. É porque, desde o nível da simples visão das cores, minha percepção não se limita a registrar aquilo que lhe está prescrito pelas excitações da retina, porém reorganiza-as em função de restabelecer a homogeneidade do campo (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 103).
Ou seja: para Merleau-Ponty, o que chega antes de tudo à nossa percepção, não são elementos individualizados justapostos, mas conjuntos. É o que nos faz ver constelações no céu, por exemplo, ou que nos leva a agrupar letras grafadas separadamente, emparelhando os pontos de acordo entre elas. O aspecto do mundo, sublinha o filósofo, seria tumultuado caso víssemos como coisas os intervalos entre as coisas. O mesmo vale para as percepções do ouvido, embora neste caso, estejamos lidando não mais com formas no espaço e sim com formas temporais.
Aos poucos é possível perceber que as críticas de Merleau-Ponty não se direcionam apenas ao que ele chama de psicologia clássica. De fato, em alguns momentos, o próprio autor troca o termo “psicologia” (clássica) por pensamento (clássico). Descartes é sem dúvida um dos grandes alvos deste ensaio. Pois o filósofo das Meditações funda a unidade do campo perceptivo em uma operação intelectual. Se digo que vejo homens andando pela rua é porque captei, através de uma análise da inteligência, aquilo que pensava ter visto. Os objetos à minha frente não são propriamente vistos e sim visualizados, e, dessa maneira, a percepção se torna uma espécie de decifração intelectual dos dados sensoriais. É contra esta noção de percepção que Merleau-Ponty se levanta. Para ele, a percepção não pode ser concebida como uma espécie de “ciência em embrião” ou como um exercício “inaugural da inteligência”. Ao contrário: é preciso reencontrar uma “reversibilidade” com o mundo, mais antiga que a própria inteligência.
É neste sentido que Merleau-Ponty enxerga uma proximidade entre o cinema e a nova psicologia. Esta evidencia o caráter cinestésico da percepção. O cinema assim como a nova psicologia reivindicam um novo olhar para o mundo e nos fazem ver no homem não uma inteligência que constrói o mundo, mas um ser que se encontra lançado nele. Merleau-Ponty pensava que as reflexões mais interessantes em relação ao cinema convergiam com as novidades trazidas pela nova psicologia, algo que o autor tentará evidenciar com a concepção de um filme como um objeto a percepcionar, “não uma soma de imagens, mas uma forma temporal” (MERLEAU-PONTY, 1983: 110). Estas noções mostram-se aliadas a um elogio à montagem, especialmente ao efeito-Kulechov (referido por Merleau-Ponty como sendo “efeito-Pudovkin” ).
A explanação do fenomenólogo visa sublinhar que a arte de um filme não consiste em descrever didaticamente as coisas ou expor ideias, mas em criar uma “máquina de linguagem” com o intuito de instalar o espectador em um certo estado sensível. O sentido de uma fita está incorporado a seu ritmo, assim como o sentido de um gesto vem, nele, imediatamente legível. O filme não deseja exprimir nada além do que ele próprio. A ideia fica, aqui, restituída ao estado nascente, ela emerge da estrutura temporal do filme, como, num quadro, da coexistência de suas partes. Trata-se do privilégio da arte em demonstrar como qualquer coisa passa a ter significado, não devido a alusões, a ideias já formadas e adquiridas, mas através da disposição temporal ou espacial dos elementos (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 115).
Para Merleau-Ponty, um filme significa da mesma maneira que uma coisa significa. Tanto um quanto outro não se dirigem a uma inteligência isolada, mas ao nosso poder de “decifrar tacitamente o mundo e os homens e de coexistir com eles” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 115). O cinema não nos oferece os pensamentos de um personagem. O que vemos são gestos, olhares, mímicas. Um personagem se faz visível por meio de seu comportamento, seu modo singular de estar no mundo, de lidar com aquilo que o cerca. Se um diretor deseja nos mostrar um personagem tomado pela vertigem, ele não deveria tentar conferir a visão interior da vertigem, e sim apreciá-la exteriormente, contemplando um corpo desequilibrado, contorcendo-se à beira de um precipício.
O espectador, por sua vez, está numa relação de imediatismo com o mundo através do filme. Ver um filme não é ler, nem sequer compreender, mas, acima de tudo, sentir, aceitar que me mostrem algo cujo sentido não me é dado. Ou seja: um filme não deve ser considerado como um suporte para determinadas ideias ou temas, nem apenas como uma obra plástica, e sim como um composto de forma e sentido ao qual só podemos aceder por meio do exercício da percepção. Daí a famosa fórmula merleaupontyana: “um filme não é pensado e, sim, percebido” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 115).
Não deixa de ser curioso: em nenhum momento Merleau-Ponty se aproxima de uma crítica à decupagem clássica e, muito menos, de uma defesa do uso da profundidade de campo ou do plano-sequência. Ao contrário, o fenomenólogo celebra a convergência de sua filosofia com as reflexões dos teóricos da montagem, algo que será debatido apenas como negação em outros autores importantes como Bazin, Ayfre e Michel Mourlet. “O cinema e a nova psicologia” é um dos primeiros ensaios a travar um diálogo entre cinema e fenomenologia. Sua originalidade, como observa Fernão Ramos (2012), se manifesta inclusive por uma ausência: o neorrealismo. Se, por um lado, podemos dizer que o texto de Merleau-Ponty é anterior à explosão desse movimento pela Europa, por outro, não é lá muito difícil enxergar a pouca familiaridade do filósofo com a produção cinematográfica contemporânea.
Na verdade, o alvo de Merleau-Ponty nunca foi o cinema, e sim a nova psicologia, tema que abriria caminho para sua obra mais famosa, “Fenomenologia da percepção”, publicada naquele mesmo ano. O cinema neste ensaio é sempre tratado em sua generalidade, e Merleau-Ponty cita poucos filmes, sem jamais travar embates mais francos com eles. Embora a noção de que a sétima arte decifra tacitamente o mundo e os homens tenha criado alargadas raízes, é nítido o “balanceamento desigual que leva o cinema a servir como contrapeso, numa brilhante análise da psicologia contemporânea” (RAMOS, 2012: 54). É o que Gilles Deleuze comenta em entrevista à revista Cahiers du Cinéma:
É muito curioso. Tenho a impressão de que as concepções filosóficas modernas da imaginação não levam em conta o cinema: ou elas creem no movimento, mas suprimem a imagem, ou elas mantêm a imagem, mas suprimem dela o movimento. E curioso que Sartre, em L’imaginaire, considere todos os tipos de imagem, exceto a imagem cinematográfica. Merleau-Ponty se interessava pelo cinema, mas para confrontá-lo às condições gerais da percepção e do comportamento (DELEUZE, 1992: 64).
É importante notar, como salientamos desde o início deste texto, que “O cinema e a nova psicologia” pertence a um determinado momento da trajetória do fenomenólogo, ainda marcado por uma filosofia da consciência transcendental que erige em norma a “percepção natural” e suas condições. O campo perceptivo, ao qual Merleau-Ponty visa aproximar o cinema, se organiza em função de uma consciência intencional em situação. É isto que mais incomoda Deleuze. Para ele, Merleau-Ponty vê o cinema como um aliado ambíguo. O cinema surgiria na contracorrente da ancoragem do sujeito percipiente do mundo. Dessa forma, ao erguer em norma a “percepção natural”, a fenomenologia constituiria um foco estático, baseado em uma consciência intencional em situação. É o que o filósofo contesta em Cinema I – a imagem-movimento:
Ora, por mais que o cinema nos aproxime ou nos distancie das coisas, e gire em torno delas, ele suprime a ancoragem do sujeito tanto quanto o horizonte do mundo, de modo tal que substitui por um saber implícito e uma intencionalidade segunda as condições da percepção natural. Ele não se confunde com as outras artes, que visam antes um irreal através do mundo, mas faz do próprio mundo um irreal ou uma narrativa: com o cinema, é o mundo que se torna sua própria imagem, e não uma imagem que se torna o mundo (DELEUZE, 1985: 77).
Esta noção privilegiada da percepção natural faria com que o fenomenólogo visse o movimento como “poses” sucessivas que variariam de acordo com o sujeito fundador percipiente e em situação. Para Deleuze, a fenomenologia se atém a condições “pré-cinematográficas”. O que justificaria seu embaraço e ambiguidade em relação ao cinema, ora denunciando o movimento cinematográfico como infiel às condições da percepção, ora o exaltando como uma narrativa nova, capaz de aproximar o percebido e o percipiente, o mundo e a percepção.
Deleuze tem razão em chamar nossa atenção para o aspecto fundacionista que embaraça a fenomenologia inicial de Merleau-Ponty. Este embaraço, contudo, não põe em risco as asserções do fenomenólogo sobre o caráter cinestésico da percepção. Em nenhum momento, seja em “O cinema e a nova psicologia” ou em Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty faz ressalvas à arte cinematográfica ou denuncia seu movimento como infiel às condições da percepção. Tampouco concebe o movimento no cinema como uma sucessão de poses. Ao contrário, assim como Deleuze, Merleau-Ponty considera inseparáveis a imagem e o movimento. A imagem cinematográfica, diz o fenomenólogo, é uma forma temporal em movimento, uma “realidade nova” que não se reduz a uma simples soma dos elementos utilizados. É ainda preciso sublinhar que a premissa de que o cinema “suprime a ancoragem do sujeito tanto quanto o horizonte do mundo” é de Deleuze. Merleau-Ponty jamais a menciona ou a ataca. Ademais, a crítica e a conclusão deleuziana de que a fenomenologia só poderia ver com ambiguidade o cinema é afirmada a partir de uma leitura das primeiras obras de Merleau-Ponty.
Pois por ocasião da sua morte , o fenomenólogo trabalhava em uma obra que permaneceria inacabada. O visível e o invisível, cuja apenas a primeira parte e algumas notas se encontravam redigidas, testemunham um esforço para dar uma nova expressão ao seu pensamento. Se em Fenomenologia da percepção, a análise do fenômeno perceptivo permitia a Merleau-Ponty descrever a experiência assinalando o acoplamento entre sujeito e objeto, entre o corpo e o mundo, partindo da dualidade entre estes polos para reconciliá-los na unidade do campo experiencial, em O visível e o invisível a experiência é descrita como deiscência. Pensar nossa relação com o ser como deiscência é não mais concebê-la como acoplamento, fusão ou coincidência, mas como fissão que, a partir da unidade primordial da carne, faz surgir, um para o outro, corpo e mundo, observador e observado, eu e outro.
Merleau-Ponty compreende não se ter conseguido em suas duas primeiras obras se desprender completamente do ponto de vista da filosofia transcendental que concebe a primazia da consciência em face de seu objeto. Mesmo no nível da linguagem persistia a dificuldade de se destacar dos termos utilizados pela filosofia tradicional que ele pretendia combater. À medida que as notas de trabalho avançam, o fenomenólogo vai se tornando cada vez mais severo em relação especialmente à Fenomenologia da percepção. A anotação “retomar FP” torna-se mais e mais frequente. Em determinado momento, ele diz: “os problemas postos na ‘Fenomenologia da percepção’ são insolúveis porque eu parto aí da distinção ‘consciência’ – ‘objeto'” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 189).
Outras duas notas do final dos anos 50 (publicadas como apêndice no livro de Marcus Sacrini A. Ferraz, 2009), vislumbram um caminho alternativo para a constituição de uma nova ontologia: “nossa corporeidade: não colocá-la no centro como eu fiz na ‘Fenomenologia da percepção'” (MERLEAU-PONTY apud, FERRAZ, 2009, p. 307), e, adiante, “partir dos resultados da “Fenomenologia da percepção” e mostrar que é necessário transformá-los em ontologia: 1/ passar da afirmação do ‘percebido’ àquela do Ser bruto, 2/ passar da ideia do corpo como sujeito àquela do ser indiviso” (MERLEAU-PONTY apud, FERRAZ, 2009, p. 308). Merleau-Ponty exprime nestas breves considerações o desejo de rejeitar o papel central atribuído à subjetividade encarnada e avançar em seu projeto de descrição de um campo de ser anterior à cisão entre sujeito e objeto.
O que nos interessa é que nesta redescrição do sensível, neste movimento na direção de uma nova ontologia , Merleau-Ponty esboçou uma reaproximação com o cinema que não pode se concretizar. Em algumas de suas últimas notas de trabalho, é possível identificar o desejo do filósofo por uma abordagem filosófica do cinema, não mais para ilustrar um pensamento pré-elaborado. O cinema como a celebração da presença viva de nossa especular carnalidade, uma forma particular de dizer o Ser, uma estética que subjaz a uma “dialética do visível e do invisível”.
Em notas referentes a “A ontologia cartesiana e a ontologia de hoje”, curso que Merleau-Ponty se preparava para lecionar no Collège de France em 1961, pouco antes de morrer inesperadamente, o fenomenólogo procura atribuir uma formulação filosófica à ontologia contemporânea:
não é história da filosofia no sentido habitual: o que se pensou, é: aquilo que foi pensado no quadro e horizonte do que se pensa — evocado para fazer compreender o que se pensa — Objectivo: a ontologia contemporânea – Partir desta para depois ir de encontro a Descartes e aos cartesianos, depois voltar ao que pode ser a filosofia hoje (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 390 e 391).
Esta contraposição ao que ele chama de ontologia cartesiana, Merleau-Ponty identifica especialmente na literatura de Marcel Proust e na pintura de Paul Cézanne, mas também em outras artes, como o cinema. Em determinado momento, a anotação “(pintura-cinema)” é seguida duas linhas mais abaixo por “André Bazin: ontologia do cinema”, e, em seguida, “Nas artes Cinema ontologia do cinema — a questão do movimento no cinema” (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 391). A questão do movimento no cinema já havia sido citada brevemente em notas de um outro curso, “Le monde sensible et le monde de l’expression”.
O cinema, inventado como meio de fotografar os objetos em movimento ou como representação do movimento descobriu com este muito mais do que a mudança de lugar, isto é, uma maneira nova de simbolizar os pensamentos, um movimento de representação. Pois o filme, seu corte, sua montagem, suas mudanças de ponto de vista solicitam e por assim dizer celebram nossa abertura ao mundo e ao outro, do qual ele faz perpetuamente variar o diagrama (…) O cinema mete em cena não já, como no seu início, movimentos objetivos, mas mudanças de perspectiva que definem a passagem de uma personagem a outra ou o deslizar de uma personagem em direção ao acontecimento (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 19 e 20)
O que se percebe muito claramente é o desejo do filósofo de incorporar o cinema às reflexões que vinha desenvolvendo a respeito da literatura e da pintura, capazes, cada um à sua maneira, de fixar as relações entre o visível e o invisível na descrição de ideias, conceitos e raciocínios que não são o contrário do sensível, mas seu dúplice e profundidade. A citação a André Bazin não poderia ser mais instigante. Existe de fato uma sintonia entre o crítico e o fenomenólogo que mais parece se acentuar ao longo dos anos 50. Bazin e Merleau-Ponty veem no cinema uma nova linguagem imperiosa de dizer o Ser, capaz de refletir sobre nossa promiscuidade com o mundo e as coisas. Ambos se aperceberam desta aposta ontológica que o jogo da imaginação contém: o emergir da imagem envolta em um vai e vem, das coisas à forma, do fato ao sentido, e vice-versa.
Estas notas e os últimos ensaios do fenomenólogo parecem vislumbrar, ou pelo menos inferir, as orientações através das quais a última fase do pensamento de Merleau-Ponty teria podido desenvolver uma consideração ontológica do cinema, enfatizando, sobretudo, seu caráter não mimético, como uma apresentação de um inapresentável. Esta reaproximação atravessa a questão da visão como a reversibilidade da carne, “essa precessão do que é sobre o que se vê e faz ver, do que se vê e faz ver sobre o que é” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 44), como “encontro, como numa encruzilhada, de todos os aspectos do Ser” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 44).
A análise da visão em ato nos mostra que o trabalho de artista consiste, sobretudo, em uma retomada ontológica do mundo. A pintura, por exemplo, tenta, através do espetáculo do visível que celebra um quadro, expressar, de certa forma, todos os aspectos do Ser. Ao estudar a experiência do pintor, Merleau-Ponty se detém aos instantes em que ver, ouvir ou falar atravessam a camada do instituído e desnudam o originário de um mundo visível, sonoro e falante. Cézanne, por exemplo, como insiste Merleau-Ponty, dizia querer fazer do impressionismo “algo de sólido como a arte dos museus”. Para Merleau-Ponty, esta missão se configura como um paradoxo. O pintor visa a realidade e proíbe os meios correntes de alcançá-la: “buscar a realidade sem abandonar a sensação, sem tomar outro guia senão a natureza na impressão imediata, sem delimitar os contornos, sem enquadrar a cor pelo desenho, sem compor a perspectiva nem o quadro” (MERLEAU-PONTY, 2004, p.127). Cézanne acreditava não ser necessário escolher entre uma ou outra, separar as coisas fixas que aparecem ao nosso olhar e a maneira fugaz de elas aparecerem. Ele “quer pintar a matéria em via de se formar, a ordem nascendo por uma organização espontânea” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 128).
Dessa maneira, a questão da representação objetiva ou subjetiva do mundo, que tanto atravancou um novo pensamento da imagem e do imaginário é radicalmente revista, restituindo-se à visão seu poder fundamental de manifestar mais que ela mesma. Para Merleau-Ponty, a visão é a metamorfose das próprias coisas em visão, visibilidade e também vidência. Ser ou não ser visto são atributos das coisas, de seu tornar-se presente. O que se vislumbra é a compreensão do filme não como pura representação. Ao filmar uma paisagem, o cineasta não a copia ou reproduz. É impossível separar sujeito de objeto, o ver do que é visto, ambos constituem-se nessa relação de equivalência. Ao mesmo tempo em que a paisagem sugere e o cineasta a filma, sua obra compõe-se buscando na paisagem o que falta à imagem para alcançar sua plena expressão. Não temos aqui uma relação de causa e efeito. Assim como não podemos considerar o cinema como mera fabricação segundo a vontade do artista.
Merleau-Ponty comenta:
A arte não é nem uma imitação, nem, por outro lado, uma fabricação segundo os desejos do instinto ou do bom gosto. É uma operação de expressão. Assim como a palavra nomeia, isto é, capta em sua natureza e põe diante de nós, a título de objeto reconhecível, o que aparecia confusamente, o pintor, diz Gasquet, ‘objetiva’, ‘projeta’, ‘fixa’. Assim como a palavra não se assemelha ao que ela designa, a pintura não é um trompe-l´oeil, uma ilusão da realidade (…) O pintor retoma e converte justamente em objeto visível o que sem ele permanece encerrado na vida separada de cada consciência: a vibração das aparências que é o berço das coisas. Para um pintor como esse, uma única emoção é possível: o sentimento de estranheza, e um único lirismo: o da existência sempre recomeçada (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 130-133)
Julio Bezerra é Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense -UFF, desenvolve pesquisa de pós-doutorado sobre o corpo no cinema contemporâneo na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – ECO-UFRJ. Jornalista e crítico de cinema, contribuiu para uma grande variedade de publicações e sites, como Bravo!, Revista de Cinema, Cinética, Globo Online, Programa, etc. É autor do livro Documentário e Jornalismo: Propostas para uma Cartografia Plural (Garamond, 2014). Assinou ainda a curadoria das retrospectivas de Abel Ferrara e Samuel Fuller (CCBB) e da mostra “Trônica” (Caixa Cultural), além da produção executiva de “O novo cinema Pernambucano” (CCBB). Mantém o blog Kinos (www.cinekinos.blogspot.com). É um dos diretores da série Esquinas (GloboSat/Canal Brasil).
Bibliografia
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