OS NEGROS DE GLAUBER: RAÇA, MÍSTICA E IDENTIDADE NO CINEMA NOVO.

glauber rocha

Por Carlos Eugênio Libano Soares

 Glauber Rocha foi um dos mais prolíficos cineastas da história do Brasil.1 Autor de vasto acervo cinematográfico, apesar do relativo pouco tempo de trabalho2 Glauber revolucionou o debate sobre estética no cinema brasileiro, e foi autor de uma marca nunca igualada na trajetória cinematográfica do país. Este pequeno artigo busca discutir o lugar do negro na estética cinematográfica glauberiana, enfocando fragmentos de seus principais filmes – Barravento, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro e Idade da Terra – e buscando analisar os personagens negros e seus significados.

A obra de Glauber é das mais estudadas no campo das ciências cinematográficas.3 Mas um dos detalhes mais interessantes é o lugar dos personagens negros em sua filmografia. Longe dos estereótipos, eles representam a leitura revolucionária e estética tão patente na sua obra daquela parcela da população mais vilipendiada pela vocação colonial da formação brasileira.4

Em Barravento, filme inaugural de sua carreira (apesar do roteiro não ter sido escrito originalmente por ele, mas por Luiz Paulino dos Santos, que seria o diretor e acabou destituído), Glauber fala de uma comunidade de pescadores da região de Buraquinho, periferia de Salvador, nos primórdios da década de 1960. Eles praticam uma pesca artesanal, mas dependem de um grande fornecedor da cidade, de redes e de outros implementos. Firmino, personagem de Antonio Pitanga em começo de carreira, volta depois de anos para a sua comunidade de pescadores e tenta libertá-los da dependência estrita que têm daquele negociante e também transformar a mentalidade da gente do povoado, seu “fatalismo mítico” na visão do próprio Glauber.

Firmino representa aquele que, na cidade, teve não apenas acesso a novas oportunidades, mas a novas relações e a um horizonte de mudanças sociais, impossíveis para os moradores da aldeia. O candomblé, longe de um lócus de exotismo, comum no imaginário turístico forjado sobre a Bahia, é visualizado por Glauber com intimidade, como parte integrante da visão de mundo da comunidade de Buraquinho, e participante ativo da trama. Quando o líder, O Mestre (Lídio Silva), protegido de Iemanjá, é substituído, devido a sua idade avançada, por Aruá (Aldo Teixeira), Firmino encontra uma oportunidade para convencer a comunidade a romper os laços de vassalagem com os fornecedores da cidade. O duelo final de Firmino com Aruá (em golpes de capoeira) é a luta do negro revolucionário, lutador da liberdade, contra o defensor da tradição, apadrinhado de Iemanjá.

Vemos assim o reflexo da nova agenda política do início dos anos 1960, após 15 anos de regime democrático, com as reformas de base de um lado e o processo revolucionário iniciado em Cuba, e a situação de opressão e subordinação dos descendentes de escravos ainda presos aos grilhões do analfabetismo e da miséria.

Em Barravento Glauber ultrapassa as leituras folclóricas da época e demonstra o quanto o impasse vivido em sua época, inclusive dentro das tradições religiosas afro-brasileiras, centrais ainda mesmo na visão de Firmino, que tenta provar para a comunidade que seu adversário (Aruá) não é o protegido de Iemanjá, segundo alguns dizem.

O negro concretizado na figura de Firmino representa as novas possibilidades e ao mesmo tempo a complexidade do imaginário mítico brasileiro. Como diz o crítico Ismail Xavier, Glauber estava longe da visão rasa de “cultura popular” expressa pela maioria dos intelectuais de classe média de sua época.5 O negro nesta ótica era portador do desafio mais difícil: abraçar as mudanças sociais sem perder seus vínculos atávicos com a ancestralidade.

O outro filme, este escrito totalmente por Glauber, é Deus e o Diabo na terra do Sol de 1964.6 Premiado em Cannes e no México e na Itália, Deus e o Diabo representou a pedra de toque da estética glauberiana e trouxe uma multidão de admiradores.7 A mística do negro no filme falou pelo padrinho Sebastião, o místico líder religioso negro de Monte Santo, sequencia do Conselheiro de Canudos, e também odiado pela igreja oficial e os coronéis. Agora o negro é um líder religioso, portador da mensagem da salvação dos flagelados da seca, contra a “república corrompida” e profeta da nova era que se iniciaria. Traçando um panorama fulminante, com o matador de cangaceiros Antonio das Mortes (Mauricio do Vale), o vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey) e o temido Corisco (Othon Bastos), Glauber desenha um painel devastador da épica nordestina. O beato negro ao mesmo tempo protetor e místico é também cruel e desapiedado, como se o humilde líder da vila de pescadores de Barravento (o mesmo ator) se tornasse instrumento da ira divina e da revolta de sua própria raça. O sacrifício dos inocentes é a demonstração da ambígua face do profeta, e também de como os paladinos da liberdade podem facilmente se transformar em instrumentos da opressão.8

Terra em Transe é talvez o mais discutido filme de Glauber.9 Em um painel épico claramente refletindo os anos antes do golpe de 1964, projeta as crises da geração carioca de classe média frente aos impasses do populismo em crise e a perplexidade dos marxistas diante do derrumbe da democracia de massa. Empunhando uma metralhadora giratória, ele dispara sobre todos os grupos políticos que atuaram naquele palco, em uma visão ácida que começou a erodir o seu prestigio conseguido com os intelectuais de esquerda.

Onde esta o negro na Terra em Transe? Os espaços privilegiados ocupados em Barravento e Deus e o Diabo se esfumaram e, na democracia popular de Vieira, ele é o sindicalista (Jerônimo) que não sabe o que fazer frente à crise e espera as ordens do “grande líder”. Longe da Bahia o negro pode ser também o silencioso fotógrafo Zózimo Bubul que testemunha a tragédia da história, mas pela mudez do que pelo protagonismo. Parece que a modernidade de Eldorado condena os afrodescendentes à fotografia da criança acorrentada que leva Paulo Martins a pedir um “líder político”.

Na cidade moderna o negro está condenado à periferia, à marginalidade, ou ao espetáculo do Nacional Popular dos comícios. Reunindo um dos mais brilhantes e lendários elencos do cinema brasileiro, Glauber desfila “a expressão mais forte e mais complexa daquela dialética do seu cinema, entre a fragmentação e a totalização, entre a busca do conceito capaz de pensar o grande teatro da política brasileira”, no dizer de Ismail Xavier.10

Terra em Transe conseguiu o Premio da Crítica Internacional de Cannes, apesar das sabotagens do regime militar. Após a instauração da ditadura, Glauber passa a sofrer todo tipo de dificuldade do governo militar, o que o leva para o exílio. Mas antes ele realiza uma de suas películas de maior efeito de público: O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro.

Antonio Gusmão é o São Jorge guerreiro, paladino da cultura popular, matador do latifúndio, inimigo dos pérfidos sequazes do coronelismo e do atraso, o herói negro que ao lado de Iansã, protetora das divindades, portadora da ambiguidade, no meio do canto do povo de Piranhas. São Jorge, “Santo Guerreiro” vingador tal como o padrinho Sebastião, mas desta vez vitorioso, conseguira desferir a lança contra o dragão do coronelismo/latifúndio (Jofre Soares) e lidera a bandeira da reforma agrária (corajosamente e abertamente falada no filme). Lado a lado com Antonio das Mortes, cansado de ser braço armado do poder, apoia o professor (Othon Bastos) no tiroteio com os macacos da polícia, o Santo Guerreiro passa a ser o professor, mas será São Jorge/Gusmão que salvará a Iansã do cerco das forças do mal.

O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro forja uma pantomima de um combate místico entre a tradição e a exploração, e traz uma visão otimista do futuro (ausente nos filmes anteriores), onde o mais das vezes o negro transita entre o Firmino solitário e trágico profeta Sebastião, o passivo Jerônimo (líder do sindicato). Agora vemos um negro/São Jorge vitorioso, como a lenda do santo guerreiro, libertador do sertão, uma profecia dos dias difíceis de 1969.

O último filme de Glauber, A Idade da Terra, foi o mais combatido. Após a entrevista de 1974 em que elogia Geisel e principalmente Golbery (“gênio da raça”), ele passa a ser hostilizado pela intelectualidade brasileira. Seu retorno ao país em 1976 foi no momento da morte do pintor Di Cavalcanti, cujo enterro filmado por ele foi alvo de uma saraivada de críticas e um processo na justiça aberto pela família (que ainda não terminou). A Idade da Terra é um mergulho na mística religiosa do país a partir de três cidades arquétipas da formação da nação: Salvador, Rio de Janeiro e Brasília; e de quatro cavaleiros do apocalipse na forma de Jesus Cristo: o do rio, um Tiradentes/Dom Sebastião profeta da catástrofe ambiental; o cristo guerreiro Ogum de Lampião, na pele de Geraldo Del Rey (profetizando Rambo de Stallone); o Cristo Pescador Gigante da América, Jece Valadão; e o cristo negro de Brasília, Antonio Pitanga. Este forja um discurso de vocação terceiro-mundista de repúdio da dominação imperialista e profeta da nova civilização implantada no cerrado (Brasília estava fazendo vinte anos naquele momento), num misto de Padrinho Sebastião de Deus e o Diabo e São Jorge de Dragão da Maldade.

Neste momento Glauber larga toda narrativa linear e faz um cinema já absurdamente gongórico e simbolista, barroco, buscando não mais uma estética da fome mas uma estética terceiro-mundista, longa da mídia comercial do ocidental, mas também distante do realismo socialista ideológico de perfil panfletário e conscientizador das massas alienadas.

Neste último filme o negro passa a ser personagem central, algo que não ocorria em nenhuma outra película. Pensamos que se tivesse continuado sua carreira e não falecido em 1981 possivelmente a temática da trajetória negra seria central em sua obra. Mas isto é apenas hipótese.

A obra de Glauber é marcada por várias tensões, mas uma das mais prolíficas é a da cultura com a política. Glauber atravessou os discursos convencionais e construiu uma estética própria que marcou o cinema brasileiro mais fora que dentro do país. O negro aparece em toda sua obra e sempre marcado pelo peso da opressão e o quanto a cultura (e não a política estrito senso) é sua libertação. Sua estética é marcada pelo paradigma religioso como cerne da cultura/mentalidade popular, e esta dialética atravessa todo seu trabalho.

Carlos Eugênio é formado em História pela UFRJ em 1988 (onde estudou também antropologia) e é mestre em História pela UNICAMP (1993) e doutor em História também pela UNICAMP em 1998. Sua dissertação de mestrado foi publicada pelo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (A negregada instituição: os capoeiras na Corte imperial do Rio de Janeiro, 1850-1890. Premio Biblioteca Carioca 1993, Rio de Janeiro, AGCRJ, 1994. Sua tese de doutorado foi publicada pelo CE CULT da UNICAMP em 2001 (A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro, 1808-1850, Campinas, Cecult, 2001).

BIBLIOGRAFIA

BENTES, Ivana (org.). Glauber Rocha – cartas ao mundo. São Paulo, Martins Claret, 1987.

CARDOSO, Mauricio. “História do Brasil, um filme de Marcos Medeiros e Glauber Rocha” in CAPELATO, Maria Helena. (org.) História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo, Alameda Editorial, 2007.

GOMES, João Carlos Teixeira. Glauber Rocha, esse vulcão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997; PIERRE, Sylvie. Glauber Rocha. Campinas, Papyrus, 1996;

MACIEL, Luis Carlos. Geração em transe. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996.

MONZANI, Josette. A gênese de Deus e o Diabo na Terra do Sol. São Paulo, Annablume, 2006.

MOTTA, Nelson. A primavera do dragão: a juventude de Glauber Rocha. Rio de Janeiro, Objetiva, 2011.

Revista Cult, ano 14, 2011, “Dossiê Glauber Rocha”pp.51-53.

ROCHA, Glauber. Senhor dos Navegantes (Roteiro Cinematográfico). Salvador, Edições Macunaíma, 1987.

NOTAS

1 Este artigo é baseado inicialmente no livro de MOTTA, Nelson. A primavera do dragão: a juventude de Glauber Rocha. Rio de Janeiro, Objetiva, 2011.

2 Desde 1961 Glauber dirigiu onze filmes entre 1961 e 1980: Barravento (1961) Deus e o Diabo na terra do Sol (1964) Terra em Transe (1967) Câncer (1968) O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969) Cabeças Cortadas (1971) O Leão de Sete Cabeças (1975) e os curtas Amazonas Amazonas (1965) Claro (1975) História do Brasil (1974) Ninguém Assistiu ao Enterro de sua Última Quimera Somente a Ingratidão Esta Pantera foi Sua Companheira Inseparável (Di) (1976) Jorgeaamado no cinema (1979) e Idade da Terra (1980).

3 Entre aquelas analises de nível mais biográfico temos GOMES, João Carlos Teixeira. Glauber Rocha, esse vulcão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997; PIERRE, Sylvie. Glauber Rocha. Campinas, Papyrus, 1996; BENTES, Ivana (org.). Glauber Rocha – cartas ao mundo. São Paulo, Martins Claret, 1987.

4 Para uma análise da visão histórica do Brasil de Glauber a partir de seu filme “História do Brasil” ver CARDOSO, Mauricio. “História do Brasil, um filme de Marcos Medeiros e Glauber Rocha” in CAPELATO, Maria Helena. (org.) História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo, Alameda Editorial, 2007, pp. 149-170.

5 Para uma visão de Ismail ver revista Cult, ano 14, 2011, “Dossiê Glauber Rocha”pp.51-53.

6 MONZANI, Josette. A gênese de Deus e o Diabo na Terra do Sol. São Paulo, Annablume, 2006.

7 Para o making of de Deus e o Diabo ver MOTTA, Nelson. A primavera do dragão…pp. 290-321.

8 Sobre a produção do filme ver MONZANI, Josete. A Gênese de Deus e o Diabo na terra do Sol. São Paulo, Annablume, 2006. AVELAR, José Carlos. Deus e o diabo na terra do sol. Rio de Janeiro, Rocco, 1995.

9 Sobre a repercussão de o filme ver MACIEL, Luis Carlos. Geração em transe. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996.

Carlos Eugênio é formado em História pela UFRJ em 1988 (onde estudou também antropologia) e é mestre em História pela UNICAMP (1993) e doutor em História também pela UNICAMP em 1998. Sua dissertação de mestrado foi publicada pelo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (A negregada instituição: os capoeiras na Corte imperial do Rio de Janeiro, 1850-1890. Premio Biblioteca Carioca 1993, Rio de Janeiro, AGCRJ, 1994. Sua tese de doutorado foi publicada pelo CE CULT da UNICAMP em 2001 (A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro, 1808-1850, Campinas, Cecult, 2001). Publicou também Zungu: rumor de Muitas vozes. Premio Memória Fluminense 1998, Rio de Janeiro, APERJ, 1998; No labirinto das nações: africanos e suas identidades no Rio de Janeiro(século XIX) (Rio de Janeiro, Premio Arquivo Nacional de Pesquisa, 2003,escrito conjuntamente com Juliana Barreto e Flávio Gomes); A Pequena África. Rio de Janeiro, Cadernos Ceap, 2011; Porto de Memórias: A Pequena África. Rio de Janeiro, Prefeitura Municipal, 2014.

Um comentário sobre “OS NEGROS DE GLAUBER: RAÇA, MÍSTICA E IDENTIDADE NO CINEMA NOVO.

  1. Ronaldo Rego

    Não viveu o suficiente para entrar numa briga feia com o comunismo, conforme ficou claro em seus elogios aos militares e declarações de 1974. Os artistas-intelectuais inteligentes não se deixam engessar pela demagogia delirante dos marxistas. Recentemente, antes de morrer Ferreira Goulart fez o mesmo e denunciou a miséria dos intelectuais marxistas brasileiros. Se os dois vivessem em Cuba, apodreceriam na prisão e na URSS teriam sido fuzilados. A obra dos dois supera qualquer desvio de caráter.É o que vai ficar.

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