Entrevista realizada por Juliana Barreto Farias e Mariza de Carvalho Soares
Ele frequentou as primeiras aulas de Cinema e História ministradas pelo francês Marc Ferro na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, na Paris dos anos 1970. E também se embrenhou no cinema com luxuosos “professores particulares”, como os documentaristas Joris Ivens, Chris Marker e Jean Rouch. Quando retornou ao Brasil, em 1977, inaugurou curso pioneiro de Cinema e História na Pontifícia Universidade Católica (PUC), do Rio de Janeiro, onde ainda continua dando aulas. De lá para cá, a História tem sido a principal fonte de inspiração para o cineasta Sílvio Tendler. E ainda hoje os documentários desse carioca de 64 anos figuram entre os principais recordistas de público do cinema brasileiro: em 1980, Os Anos JK conquistou cerca de um milhão de espectadores; nos anos seguintes, O Mundo Mágico dos Trapalhões (1981) alcançou 1,8 milhão, e Jango (1982), 800 mil. No início deste ano, numa tarde ensolarada com uma visão panorâmica da praia de Copacabana, Tendler recebeu as historiadoras e professoras Juliana Barreto Farias e Mariza de Carvalho Soares em seu apartamento no Rio de Janeiro. Na conversa especialmente realizada para este dossiê da Cinecachoeira, falou dos “perigos” da memória e reafirmou seu compromisso com a História e com uma certa maneira de fazer documentários. “Tenho meu ponto de vista nos filmes. E quando uso a narração não é a voz oficial, mas é um ponto de vista meu que amarra os depoimentos, relaciona com os espectadores”, assinala.
Cinecachoeira: Em seus filmes, há muitas entrevistas e relatos orais, sobretudo de personalidades e políticos de esquerda, como, por exemplo, nos depoimentos de Utopia e Barbárie (2010). Como lidar com as lembranças pessoais sem escorregar na construção meio ficcional da memória?
Sílvio Tendler: Sempre defendi a história audiovisual. Quando começou a história oral, era uma época em que não havia equipamentos. A partir do momento que passaram a existir as pequenas câmeras, lembro que participei de um cursinho por cinco horas no CPDOC e falei que a história deveria ser audiovisual. Na verdade, as pessoas faziam pesquisas monstruosas e já ouviam as pessoas com o ponto de vista próprio. Na história audiovisual, você não consegue mentir com a passividade com que mente na história oral. Tem os gestos: move a boca, pisca o olho; atitudes que podem contradizer aquilo que se está falando. Por exemplo, entrevistei uma vez uma pessoa que falava sobre quem a levou ao partido comunista. Perguntei: “quem foi?” E ele fez aquele gesto para mim: “corta”. Ficou registrado. Ele queria cortar no som, mas não cortou para a câmera, então foi registrado que, naquele momento, haviam pedido para não revelar o nome. Depois, quando ele contou que foi o Tarcísio Ribeiro, falei: “isso é segredo de polichinelo, todo mundo sabe que o Tarcísio foi do partido”. Por isso acho que a história audiovisual é diferente da história oral. Não estou imune a comer gato por lebre, mas procuro checar muitas histórias que conto. E trabalho muito com o contraditório, até porque a melhor homenagem não é a chapa branca, não é o filme como a vida de santos, é o que conta as contradições. Não ouço sempre só a esquerda, a não ser que queira dar um pau na direita mesmo. Se você pegar o Utopia e Barbárie como exemplo relativo à luta armada, tem a versão da Dilma, defendendo a luta armada; o Sérgio Santeiro e o Luiz Carlos Maciel, a contracultura; o José Celso, defendendo a loucura. E o Ferreira Gullar que é contra a luta armada. Não tem uma versão só.
Cinecachoeira: Mas o cinema pode ter algum tipo de licença? Há, neste caso, alguma diferença entre o cinema e a história escrita?
Sílvio Tendler: Não acho que nem a ficção, nem o documentário têm a licença poética de mexer na história. A história é a história. Sei que os roteiristas não têm muito respeito por isso. Quando o Leopoldo Serran, por exemplo, fez O que é isso companheiro?, deveria ter sido, pelo menos, fiel à versão do Gabeira, à versão do livro que ele estava adaptando. Mas a memória também trai. É muito seletiva; escolhe o que quer lembrar, o que quer esquecer. Utopia e Barbárie abre com um grande professor, Ivan Izquierdo, que fala disso. Inclusive, vou para o Uruguai, pegar um personagem que foi um tupamaro e ficou preso por treze anos na solitária. Quando saiu, tinha perdido completamente a memória. Foi morar na Suécia, estudou medicina e recuperou a memória. Hoje é um dos maiores especialistas em Alzheimer. Vou entrevistá-lo para o [novo filme] Sonhos Interrompidos. Não sei se para vocês, historiadores, é bom, mas, para mim, a história é muito boa.
Cinecachoeira: E qual a importância do narrador nos seus documentários?
Sílvio Tendler: Ele traz o ponto de vista do autor. Isso é uma briga muito grande dentro do cinema, porque existe um americano que virou ícone das novas gerações, o tal do Bill Nichols. Ele inventou que a narração, ou voz over, como eles chamam, passou a ser uma voz autoral, uma voz do céu. Na verdade, sou cria do Chris Marker, um poeta que sempre fez filmes com narração e sempre colocou um ponto de vista. Aprendi com ele e faço isso: tenho meu ponto de vista nos filmes. E quando uso a narração não é a voz oficial, mas é um ponto de vista meu que amarra os depoimentos, relaciona com os espectadores. Porque, nesses filmes em que só o personagem fala, o pretexto é mentiroso, porque todo entrevistado é um ventríloquo das minhas ideias. Faço as perguntas, e depois monto e escolho o trecho que ele vai falar, tiro o que não quero. O narrador é o personagem mais honesto e realista do documentário. O entrevistado apenas colabora, dá a opinião que o diretor tem. O ângulo em que você coloca a câmera é uma forma de escolher. A montagem já determina o filme. Aí acabo com vocês. Os historiadores adoram as pessoas falando… E eles falam: “ah, seja o mais honesto comigo”…
Cinecachoeira: Os historiadores também são narradores da sua história. A maneira como escrevem, que documento selecionam, o que destacam… Mas, voltando aos documentários, quando surge seu interesse por esse tipo de filme?
Sílvio Tendler: No curso que fiz na França com o Marc Ferro, nos anos 1970, escolhi o cineasta Joris Ivens como tema de monografia: a relação do cinema e da história através de sua obra. Alguém que nasceu em 1900, e filmou guerra entre a China e o Japão, guerra civil da Espanha, guerra no Vietnã, filmou Cuba… Então, chego nos anos 1970 com quem atravessou o século filmando história. Também trabalhei com Chris Marker, que fez grandes filmes políticos. Convivi pessoalmente com Chris Marker, Joris Ivens, o cubano Santiago Álvarez e o Richard Leacock, que é do grupo dos americanos que fizeram Primary, sobre a história da candidatura do Kennedy. Tive uma formação autodidata com grandes professores particulares.
Cinecachoeira: Nesse momento então o documentário tornou-se quase inevitável?
Sílvio Tendler: Foi um caminho escolhido. A França, naquela época, era muito aberta e generosa. O cara que me recebeu era ligado à ficção, o Pierre Castel, que era muito ligado ao Brasil. Se tivesse dito para ele, invés de dizer “quero conhecer o Jean Rouch”, “me apresenta o Costa-Gravras”, ele teria me apresentado. Mas escolhi o documentário. Eu tinha até, para falar a verdade, equivocadamente um certo desprezo pelos filmes do Costa-Gravras. Achava meio cinemão. Mas estava errado. Hoje vejo como um baita cinema. Voltando a julho de 1973. Fui passar férias no Chile e, em setembro, ocorre o golpe de Estado. Quando volto de lá, o Chris Maker me convida para fazer A Espiral, um filme sobre o Chile. Aí entro profissionalmente no cinema na França.
Cinecachoeira: De lá para cá, o que mudou no papel do documentário, na sua visão sobre como fazer um documentário?
Sílvio Tendler: Foi a própria história. 1989 é um ano muito forte para mim, porque eu tinha 39 anos e votava pela primeira vez para Presidente da República. Deveríamos ter votado, se a história tivesse seguido seu curso, em 1970, quando eu tinha 20 anos. Só que em 1964 veio o golpe, as eleições foram canceladas, e a primeira eleição foi em 1989. Foram 19 anos sem poder votar. E tinha 12, 13, candidatos. De todos os tipos: Lula, Brizola, Mário Covas, Ulysses Guimarães, Aureliano Chaves. Da corrente política que você quisesse. E o Brasil escolheu o pior. Foi uma grande frustração. Entre o primeiro turno e o segundo turno, cai o Muro de Berlim. E aí eu fiquei sem pé, sem rumo. Pensei: “preciso falar disso”. Aí nasceu o Utopia ou Barbárie. Tinha o trabalho daquele grego, Cornelius Castoriádis, Socialismo ou Barbárie…Mas, para mim, não era utopia ou barbárie, era utopia e barbárie, os dois coexistem. As utopias geram barbáries que geram utopias. Comecei a trabalhar em 1989. Mas a minha conta de dezenove anos para concluir o filme é mentirosa, ele ficou pronto em 2010. Foram vinte e um anos. 19 é um número simpático…
Cinecachoeira: A memória é isso!
(risos)
Sílvio Tendler: A memória é isso.
Cinecachoeira: E o senhor pensou esse filme para sua geração ou para um público novo, mais jovem?
Sílvio Tendler: Acho que essa questão fica mais evidente com [o filme] Glauber, que comecei a fazer em 1981, quando ele morreu. Era uma homenagem a um companheiro. Gostava dele, respeitava, mas tinha medo da pessoa. Quando comecei a fazer o filme, a família dele se empolgou. Mas, quando retomei, nos anos 1990, passaram quase vinte anos, e só conclui em 2004. Já era outra geração, que não tinha conhecido o Glauber, então o filme era outro. O que seria um curta-metragem simbólico teve que virar uma explicação sobre o Glauber. Utopia tem esses dois públicos, que viveu a época e se lembra das coisas e o de hoje, para quem a história mudou. O cinema vai mudando à medida que é projetado. Em 2001, quando ele estava pronto, caíram as Torres Gêmeas. Tive que reabrir o filme, porque não podia terminar ali. Mas então vem a maior crise da economia capitalista, quando os Estados Unidos quebram, e os defensores da economia de mercado são obrigados a estatizar bancos e salvar companhias seguradoras, porque senão o mundo inteiro quebraria. E impensável também para minha geração: os Estados Unidos elegem um presidente negro tão cedo. Termino o filme em 2010, com a foto do Chávez apertando a mão dele e dando de presente As veias abertas da América Latina.
Quando estive em Cuba, como sou diabético, uma coisa me tocou: fotografei uma faixa que dizia que, se suspendessem o bloqueio de Cuba por um dia, 60 mil diabéticos teriam acesso a sua insulina. Termino dizendo isso. Mas era um coisa minha, pessoal. Aconteceu nada disso, deu tudo errado. E não é que o danado do Obama agora vai lá…[risos] Vão dizer: “esse cara é um mago”…
Cinecachoeira [Juliana Farias]: Sou professora de História da África numa universidade estadual na Bahia e, por dois semestres seguidos, ministrei um curso sobre cinemas africanos. No primeiro dia de aula, perguntei aos alunos sobre os últimos filmes que tinham visto. A maioria nem sequer já tinha ido ao cinema. Na cidade, existia um cinema de rua, mas agora apenas sala em shopping. E apesar da proximidade com Salvador, também não tinham o hábito de ir até lá. Como fazer então para atraí-los, mesmo para cineclubes ou outros espaços, se muitos jovens nem têm interesse em saber o que é exatamente o cinema?
ST: Já que estamos falando de historiadores, acho que o drama é ainda maior. Estamos vivendo na era da morte da memória. Quando Fukuyama escreveu O Fim da História, naquele final dos anos 1980, começo dos 1990, na verdade ele estava plantando uma semente ideológica de, como diriam os franceses, du passé faisons table rase. Vamos destruir o passado, não podemos deixar as pessoas terem vínculos com a história. Este é o grande drama que vivemos hoje com tudo. E o cinema talvez seja a marca mais importante. Mas se vocês acompanharem, por exemplo, o drama que aconteceu com o atentado ao Charlie Hebdo, se fosse há dez anos atrás, os jornais, quase todos, teriam um departamento de pesquisa que faria um levantamento de atos semelhantes, de ataques a lugares públicos que aconteceram nesses últimos anos na história francesa de ataque. Mas ele foi considerado o mais importante dentre outros quarenta. Sem pretender desvalorizar a violência do ato e a coisa horrorosa que foi – era um leitor assíduo do jornal, gostava muito do humor cáustico deles – quero dizer que desses anos todos têm havido atentados horríveis na França e as pessoas simplesmente têm uma necessidade de criar uma descontinuidade entre eles. Vão esquecendo a história e varrendo a história da história. E isso não é diferente com o cinema contemporâneo. A garotada continua vendo coisas, mas passa a desconhecer o cinema soviético, o neorrealismo italiano, a grande história do cinema. Não acho que seja uma coisa gratuita, proposital. O papel do historiador hoje é fundamental para criar laços e vínculos das pessoas com as próprias raízes. Você está falando de cinema africano. A gente vive num país com uma imensa parcela da população negra e as pessoas daqui não conhecem esse cinema. E por que não conhece? Por que são ignorantes? Não! Porque elas não são informadas. A culpa é nossa. No dia em que estava acontecendo o atentado ao Charlie Hebdo, estava fazendo fisioterapia, com um fisioterapeuta novo, e perguntei: “você está vendo o que está acontecendo”? Ele não sabia de nada. Vai perguntar sobre cinema africano? Ele não sabia nem o que estava acontecendo naquele minuto no mundo.
CineCachoeira: E como caracterizar então o público do cinema atualmente?
Sílvio Tendler: Na verdade, hoje mudou a natureza do espetáculo. Nossa geração vivia num país com cinco mil salas de cinema. Qualquer cidade do interior tinha uma. Eu passava as férias em Teresópolis, tinha três, quatro cinemas. Hoje Teresópolis não tem cinema. E é assim no Brasil inteiro. Só 9% do território tem cinema, e 99% destes ficam em shoppings, o que determina a natureza do espetáculo. A minha briga hoje é para que o público que se contabilize como público de cinema seja em qualquer espaço onde haja uma projeção pública. Na laje, no cineclube, na escola, na universidade… Meus filmes nem entram em cinema, agora faço muito sucesso pelo Youtube. Nos camelôs que vendem os clássicos, estou ao lado do Eisenstein, do Orson Welles…
CC: Mas qual é o impacto que a ausência da tela provoca na nova maneira de fazer filmes, de construir uma narrativa fílmica?
ST: A tela continua existindo. Não morreu a necessidade do espetáculo coletivo. Uma coisa é assistir o [documentário sobre o geógrafo] Milton Santos na televisão, outra é assistir com seus alunos. E outra ainda é poder assistir com seus colegas no cineclube. A natureza do espetáculo coletivo não morreu. Nos shoppings, morreu o espaço nos cinemas para temas políticos, sociais… Ninguém vai a shopping comer fast food, comprar roupa de marca e ver um filme papo cabeça. As salas de cinema já não são representativas do espetáculo cinematográfico. A sala de hoje, de shopping, está restrita a um tipo de cinema, reduzida a um tipo de público. O que era legal na nossa época era justamente a diversidade: cinemão americano, faroestes, dramas, romances, muito cinema italiano, comédia, realismo socialista, neorrealismo… E hoje o espetáculo chega às salas dos shoppings filtrado pelas grandes distribuidoras. A natureza do espetáculo modificou, mas os bons filmes continuam existindo.