Por Ricardo Lessa Filho
Introdução
Por que a escolha do termo testemunho para sobrevoar nesse artigo alguns dos melodramas filmados na década de 1950 por Douglas Sirk? O que o termo, a palavra mesma carrega consigo ao ponto de, inferida uma estética, convidá-la a preencher uma ideia de cinema – um cinema que nos deslumbra, que nos atinge pela “realidade”, mas sobretudo, que nos atravessa pela potência do seu discurso, pela força abismal da mise en scène – que reflete para além das distâncias (o filmar de espelhos por Sirk) e das aporias (sociais, afetivas, sexuais, raciais etc), a noção inabalada da necessidade de amar? O testemunho no cinema melodramático de Sirk deixa os rastros evidentes de um amor e de todas as suas imensas – e minúsculas – ressonâncias nos personagens que por esse sentimento são atingidos: já não é mais possível sobrepor a matéria sobre o abstrato, o corpo social sobre o corpo humano, e inclusive, a própria família sobre a pessoa amada. Assim, emerge como uma evidência cristalina a legitimação do termo testemunho no cinema sirkiano, mas é ao mesmo tempo necessário complementá-lo: o melodrama em Douglas Sirk é, de fato, um testemunho do amor.
E “testemunho do amor” exige naturalmente que, para existir, as testemunhas apresentem-se, que elas estejam vinculadas aquilo que as legitimam como tal. Portanto, os personagens-testemunhas de Sirk fundamentam suas vidas à luz de uma busca de natureza dual: do amor e de uma geografia possível onde esse amor possa, finalmente, florescer, cuja metáfora esplendorosa ocorre, por exemplo, através do jardineiro Ron Kirby (Rock Hudson) em Tudo o que o céu permite (1955), quando esse diz a Cary Scott (Jane Wyman) que a árvore chamada Koelreuteria, conhecida também como a “árvore da chuva dourada”, só pode florescer em um lugar onde existe amor – e essa árvore floresce, justamente, no jardim da casa de Cary, lugar em que ambos os personagens se conhecem e conversam pela primeira vez, lugar onde ambos se apaixonam, embora nesta cena essa paixão esteja elidida pelo enigma do primeiro encontro.
Abre-se, assim, a possibilidade de tentarmos encontrar no melodrama sirkiano da década de 1950 aquilo que Yi-fu Tuan chamou de topofilia, que se encaixa, justamente, na cena de “Tudo o que o céu permite” acima relatada, já que o personagem de Hudson fala do lugar onde existe amor para que a árvore floresça, e topofilia é esse “amor humano pelo lugar” (1980, p.106), ou seja, para a topofilia existir o lugar tem de estar vinculado, marcado pela questão amorosa.
O lugar reage para nós em sentido duplo ao analisarmos o cinema de Douglas Sirk: tanto para o lugar do testemunho em que trabalharemos, quanto para o lugar onde existe esse amor do homem ao local que ele habita – ou como em muitos filmes de Sirk, pela geografia que ele sonha em habitar, o que pode caracterizar uma perspectiva de fuga dos personagens. Assim, o testemunho do amor no cinema de Sirk também pode ser entendido como uma confissão topofílica, pois se corpo e espaço em seus melodramas tornam-se entidades indissociáveis, é porque a mise en scène mesma clama pela luz e pelos reflexos espelhados, pela presença do homem e do espaço que ele habita.
Dos pequenos testemunhos: a fuga, o retorno, a feminilidade
Em Chamas que não se apagam (1956) o amor parece ressurgir como uma possibilidade de fuga da realidade vigente, mas mesmo nessa fuga, o personagem que tenta fugir o faz porque se torna testemunha da sacralidade do amor quando uma antiga paixão retorna à sua cidade, o abalando no seu mais íntimo, desestabilizando todas as relações familiares. Como introduz Fred Camper ao dizer que com uma trama de telenovela familiar com Clifford Groves (Fred MacMurray), casado e com três filhos, que se apaixona por Norma Miller (Barbara Stanwyck) que ele conheceu quando era muito mais novo, embora ela tenha deixado a cidade por causa de seu amor não declarado por ele. Clifford se (re)apaixona por Norma, continua Camper, e por um momento ele está prestes a deixar sua família, e diz a ela que a realidade do seu amor é tudo o que importa, no que Norma responde dizendo que a única realidade é aquela que ele há vinte anos suporta: a de ser um marido e pai1. Esse amor não pode existir, ela diz, e então a senhorita Miller retorna à cidade de Nova Iorque e os confrontos geográficos para a legitimação do amor, mais uma vez em Sirk, eclodem, assumem o sentido de uma aporia: o (retorno do) amor para Clifford como uma confissão testemunhal para si mesmo, confissão fissurada e agônica, porque para concretizar-se exigiria o abandono da luz sagrada da família; as duas sacralidades (do amor por Norma e do respeito pela família), no âmago de Clifford, confrontam-se e parte de Norma a racionalização da impossibilidade deles permanecerem juntos.
A vida de Clifford com sua esposa e filhos é mostrada como uma série constante de interrupções. A privacidade, o romance que ele gostaria de manter com a sua mulher é negado pela intrusão contínua de seus filhos. Como o próprio Clifford diz, ele está “morto” e “anda e fala como um robô”. Nesse contexto, seu amor por Norma não desenvolve uma típica promiscuidade da meia-idade, senão um símbolo para a única escapatória possível, a única possibilidade de felicidade, a única chance que ele tem de ter em sua vida um “sentimento real”2. Clifford testemunha, depois de vinte anos, o retorno do amor que invade e surra o corpo, debilitando-o, e a alma, rasurada pela angústia, já não consegue mais travar a batalha pelo afeto de Norma.
O filme Desejo atroz (1953) apesar das semelhanças da trama e de contar com a mesma atriz de Chamas que não se apagam, Barbara Stanwyck, constitui-se em diversos momentos numa espécie de negativo do filme de 1956: a personagem interpretada por Stanwyck (Naomi Murdoch) abandonou o marido Henry Murdoch (Richard Carlson) e os três filhos para viver como uma atriz bem-sucedida em Nova Iorque.3 Mas ao receber a carta de uma de suas filhas em que ela dizia que queria seguir os passos da mãe e transformar-se em uma atriz, Naomi em um átimo redescobre no desvelar daquela carta, daquela pequenina escritura de sua prole, o perfume da terra finalmente revelado, que talvez para os colegas do teatro onde ela atua não seja nada senão um pedaço de papel, mas talhou para ela um afeto nunca esquecido, ao mesmo tempo essa carta abrira os gomos do tempo e, assim, Naomi decide retornar ao lar, reencontrar, finalmente, a(s) outra(s) vida(s) por ela abandonada dez anos antes.
A cena, talvez a mais bela de todo o filme, em que Naomi retorna ao seu lugar de origem, para além de um dos mais delicados testemunhos do amor no cinema de Sirk, é um momento de irrefutável deslumbramento entre o espaço, a câmera, o corpo humano e de suas fulgurações estelares, ou seja, a mise en scène sirkiana. A sombra de Stanwyck preenchendo toda a calçada da entrada de sua verdadeira casa, o rápido travelling que após pegar o sombreamento do corpo da atriz filma o pequeno muro de madeira pontuda que separa o jardim da rua, e visualizamos a ansiedade, recoberta por um rosto de uma Stanwyck entre o sorriso e o choro ao abrir a pequena porta que complementa o pequeno muro. Sirk vai ao mais profundo do significado, e no mesmo travelling engloba a casa da família Murdoch, este espaço originário do amor. Um corte. O rosto de Stanwyck é então devorado por um devastador close, e descobrimos ali as lágrimas de uma mulher prestes a confrontar aquilo tudo que ela mais ama, que é, ao mesmo tempo, aquilo tudo que ela ousou abandonar. A cena continua, Naomi passa pelo jardim e vai em direção ao alpendre, na diagonal através da porta podemos ver os três filhos e o marido sentados à mesa, jantando; Naomi para em frente a uma pequena caqueira que está pendurada na parte superior do alpendre, e é quando Sirk transforma em ouro o frame mais banal: ela avista a chave que nunca deixou de estar lá (a chave dela!) mesmo depois de tanto tempo. É a genealogia do gesto que jamais pode extinguir-se, porque essa chave representa um testemunho inabalável do amor, mostra-nos que a porta daquela casa jamais esteve fechada à Naomi, mas no máximo, encostada e ao mais singelo dos toques (o seu retorno) a abriria – é como se a família, sobretudo o marido, a esperasse, não no tempo, mas em um outro lugar atemporal, inominável.
Tanto em Chamas que não se apagam quanto em Desejo atroz fica evidente a importância fundamental do signo feminino na composição dos pedaços do melodrama de Sirk, e como consequência os “homens ficam relegados à posição de vítimas ou meros espectadores da ação feminina” (MACIEL GUIMARÃES; STARLING CARLOS, 2012, p.29). Essa vitimização masculina (algo então raro, cujo Sirk foi um dos primeiros a elaborar) vem corroborar com a afirmação de Rainer Werner Fassbinder de que “nos filmes de Douglas Sirk as mulheres pensam”, e até então Fassbinder nunca tinha notado isso “nos trabalhos de outros diretores”, finalizando com é “bom ver uma mulher pensar. Dá esperança” (FASSBINDER, 1988, p.16). Muitos chamam isso de feminismo. De fato, é a feminilidade da alma do homem (que nos melodramas de Sirk não negam o amor, não escondem as lágrimas), atravessando-nos como uma nova vida, cristalizando o teor testemunhal desse sentimento no momento em que despidos do orgulho fálico, entregam-se às pequenas luzes, aos fragmentos que o amor em sua confissão mais íntima – e por isso, testemunhal – é capaz de fazer viver.
Do amor e de seus vestígios da morte
Tanto em Desejo atroz quanto em Chamas que não se apagam fica cristalino o acontecimento da tentativa de retornar ao lar para resgatar, ou simplesmente redescobrir, as marcas de um amor deixado para trás. Não que esse retorno sempre tenha um happy end, mas ele parece nos confessar a natureza arcana do amor, que para existir, os personagens precisam estar em uma situação limítrofe, triscando uma solidão insustentável. São sempre nessas situações extremas que o amor parece ressurgir, refazer as vidas das pessoas dos filmes de Sirk, concedê-las mais uma vez a última e sagrada esperança, transformá-las, novamente, em testemunhas do sagrado. Em filmes como Sublime obsessão (1954) e Tudo o que o céu permite (1955) o amor não é necessariamente surgido por um retorno ao lar originário, à família abandonada ou pelo reencontro de uma paixão nunca esquecida. Nesses dois filmes, a possibilidade de amar é constituída através do signo da morte, isto é, o testemunho do amor nesses filmes só existirá a partir do ponto que, confrontados com a iminente possibilidade da morte, Douglas Sirk faz com que esses homens e mulheres metamorfoseiem as vidas mesmas, que as iluminem mais uma outra vez, e escrevam as cesuras das novas histórias que o amor, ultrapassando a morte, é capaz de instituir.
Em Sublime obsessão, Bob Merrick (Rock Hudson) era um estudante de medicina que, após a morte prematura do pai, também médico, decide jogar tudo para o alto e ir curtir a vida e a sua fortuna, transformando-se em um clássico playboy. Reparemos que essa será a primeira transformação do personagem de Hudson ao longo do filme devido ao signo da morte. Assim, Merrick passa praticamente todos os dias bebendo, andando em altíssima velocidade em suas lanchas e carros de luxo, sem nunca, de fato, criar um vínculo afetivo com nada nem ninguém. Do outro lado da trama existe Helen Phillips (Jane Wyman), uma mulher casada, com uma filha, e cujo relacionamento com o marido, depois de tantos anos, parece estar em um estado de torpor.
Helen e Bob são vizinhos, mas nunca se viram. O marido de Helen sofre do coração e por isso tem um desfibrilador em casa. Em mais uma manhã de aventuras, o personagem de Hudson, tentando bater todos os recordes de velocidade pessoais em sua lancha, acaba colidindo com violência e precisa urgentemente de um desfibrilador para tentar ser reanimado. Os médicos correm para a casa de Helen, que não se encontrava lá no momento, para pegar o aparelho emprestado. Eles pegam, mas no mesmo instante que Bob necessita do desfibrilador, o marido de Helen também precisa. Tarde demais. Bob Merrick é salvo pelo aparelho pertencente à família de Helen. O marido dela acaba por falecer. O signo da morte aqui é duplamente executado, e toda a morte, no mais íntimo de sua potência, exige a reestruturação completa daqueles que por ela foram afetados. O personagem de Rock Hudson, pela segunda vez na vida influenciado diretamente pela morte, modifica-se de novo. Helen e sua filha Joyce (Barbara Rush), ao chegarem em casa e descobrir que o marido e pai, respectivamente, tinha acabado de falecer, reagem de formas distintas. Joyce entra em desespero, e ao perguntar o porquê do aparelho reanimador não estar em casa, o médico da família diz que ele estava sendo usado para salvar a vida de Bob Merrick. Joyce explode, amaldiçoa veementemente o playboy vivido por Hudson, produz, a partir daquele instante, um ódio que atravessa a sua carne. Sua mãe, Helen, claro, profundamente abalada, mas com maior experiência, reage com mais calma, de um modo mais sereno, que provavelmente seja resquício do torpor de seu relacionamento com o marido.
As vidas de mãe e filha são transformadas. Hudson, descobrindo que o desfibrilador do marido de Helen salvara a sua vida, mas que ao mesmo tempo, foi por salvá-la que o proprietário do aparelho veio a morrer, sente-se culpado e tenta de todos os modos se aproximar da agora viúva Helen. A cada tentativa, muitas vezes insensível por parte de Bob, Helen rejeita-o de modo implacável. A morte do marido, de fato, a tornou uma mulher mais dolorida e menos acessível. Em uma de suas aproximações truculentas, Hudson causa involuntariamente um grave acidente a Helen, que mais uma vez fica circundada pelo signo da morte e acaba por perder a sua visão. Bob, arrasado, não desiste de aproximar-se da viúva, mas agora talvez seja mais fácil, afinal, ela já não enxerga. É a partir dessa cegueira de Helen que Sirk legitima a sacralidade amorosa que se apodera da alma humana, fazendo com que esses homens e mulheres renasçam apesar de toda tragédia que o viver carrega consigo.
Bob vai às escondidas ver Helen na areia da praia, enquanto ela toma sol. Eles conversam, mas Bob nunca revela a sua identidade. Na verdade, modifica-a. É perceptível no tom, na maneira de agir que esse homem, agora, está verdadeiramente mudado. Algo pairou sobre o seu coração. Helen sentiu isso. Eles estão apaixonados. Imaginemos a aporia, então, desse amor: a viúva que se encontra apaixonada pelo homem que indiretamente foi responsável pela morte do Marido, e foi, diretamente, responsável pelo acidente que causou a sua cegueira. Por qual razão Bob não teria um medo sepulcral ao ver a filha de Helen, Joyce, aproximando-se dos dois na areia da praia, aquele reduto secreto onde o amor floresceu? Ele sabe que é odiado. Mas Sirk possibilita que Bob crie o mais profundo dos testemunhos do amor: por Helen, ele volta a estudar medicina. Por ela, ele jura para si que fará tudo o que for possível para devolver a visão da mulher por quem está apaixonado. Ele a leva à Suíça para fazer um tratamento experimental e cujo retorno da visão, caso o tratamento surta efeito, só poderá ser sentido muitos anos depois. E na Suíça, finalmente, Bob revela a sua identidade para Helen, que apenas responde: “eu já sabia”. Logo após essa cena eles vão a um restaurante e dançam, e Helen agradece por sempre, mesmo quando enxergava, ter dançado de olhos fechados O amor, o seu limite, que só “existe na possibilidade mútua de destruição” (NANCY, 2012, p.24), é capaz de mesmo nas fissuras da tragédia, tampar esses buracos, e conceder na chance de amar de novo, a constituição de uma nova vida.
Ou seja, o amor entre Bob e Helen só pôde existir devido as fragmentações da morte que rodearam ambos os personagens. Porque a morte mesma exige um limite absoluto, assim como o amor, ele mesmo, para legitimar-se como tal, não pode exigir menos que o absoluto que a morte exige, ainda que em polos profundamente distantes.
Tudo o que o céu permite4, continua essa espécie de ideia sepulcral do amor, de outro modo, a ideia de que o amor em seu limite, aproxima-se consequentemente da sombra da morte. No filme, Cary Scott (Jane Wyman) é uma viúva (a morte, novamente presente) que costuma frequentar eventos destinados aos círculos da alta sociedade. Ron Kirby (Rock Hudson) é o novo jardineiro de sua casa, que outrora era o pai de Ron quem cuidava do jardim, mas que faleceu (a morte, mais uma vez). A cena de abertura do filme – o plano-grua do mais alto de uma árvore a descer lentamente e a testemunhar o outono americano, essa metáfora extraordinária da natureza para o início da morte – já nos sussurra uma necessidade de mudança: as flores que iniciam suas quedas e que esperam as substitutas naturais dentro do ciclo da vida. O mesmo, então, Sirk oferece à viúva Cary e ao jovem jardineiro Ron: quando ela aparece pela primeira vez no filme, Ron se encontra fisicamente a metros da mesma, mas sempre afetivamente distante, filmado por Sirk de costas, longínquo como era, naquele momento, o afeto dos personagens. Mas rapidamente Ron e Cary se conhecem, ele cuidando do jardim da casa da viúva, ela preparando um chá à luz do sol para uma amiga que, com pressa, tem de recusar o convite de Cary, sobrando para Ron as comidas da refeição matinal. Eles conversam, Ron fala da árvore chamada Koelreuteria que, segundo ele, só floresce em um lugar onde existe amor. Amar é então, para Cary e Ron, o destino renovado de suas vidas.
Ambos ultrapassaram a morte de seus entes queridos. Ambos estão, agora, diante da aporia que o amor concedeu-lhes novamente: viver em uma mesma vida, uma nova vida. Não será fácil, já que “o mundo em volta deles é mau” (FASSBINDER, 1988, p.15). Essa maldade explode na festa em que Cary vai já com Ron assumidamente seu namorado (ele, aliás, muito mais novo do que ela): os olhares atravessados dos outros presentes na festa constituem as fissuras de uma sociedade mesquinha, amargurada pela própria fobia ao amor que ela fomenta, que vê no personagem de Hudson não outra coisa além de um prazer carnal por Cary. Isso a destrói. A nova chance de amar de Cary e Rock esbarra nesse mundo mau do qual fala Fassbinder. Os filhos dela, inclusive, a fazem romper por um período com Ron. Sem ele, ela quase morre. No fim, após o reflexo do abandono emulado pelo plano de uma nova televisão que Cary ganhou como presente de seu filho para “acomodar” a sua solidão, ela resolve lutar pelo amor de Ron. Ela precisa, então, visitar novamente o lar que Ron estava construindo especialmente para eles, um lar longe da cidade, um lar longe da maldade do mundo5.
Ron vê Cary chegando e tenta se apressar, mas acaba sofrendo um grave acidente. Diante da iminente possibilidade de perder a chance de viver de novo, Cary doa-se por completo aos cuidados a Ron. Ele inconsciente responde, no silêncio mesmo que complementa o seu amor. Tanto a cena final de Sublime obsessão, quando é o personagem de Hudson que reascenderá a vida na personagem de Wyman, quanto na cena final de Tudo o que o céu permite, que invertendo os papéis, faz da personagem de Wyman a responsável por reafirmar a vida ao personagem de Hudson, Douglas Sirk sacraliza o amor de uma forma tal que é ele, somente ele, a entidade que poderá conceder às vidas machucadas pela morte a chance de viver de novo. É este, portanto, o imenso testemunho do amor, essa forma absoluta onde Sirk concede aos seus personagens, a sua maneira mais brutal e delicada de que o homem tem de retornar a este mundo de verdade, porque os personagens de Wyman e Hudson, nos dois filmes, foram postos à parte, eleitos, sobreviventes à própria morte, e sobreviventes da morte de outros que eles amavam. E esse amor ressurge e os modifica, modificando também a nós. A morte, para Sirk, é o extremo que a vida alcança, e o amor, ele mesmo, é a extremidade que a morte jamais triscará.
Dos vestígios da topofilia
Nos melodramas de Douglas Sirk há uma necessidade poderosa de estar, voltar ou encontrar um lar que deve ser habitado pelos seus personagens a fim de legitimar o afeto que, após a eclosão, já não pode mais ser negado ou elidido. Esse lar, esse amor humano pelo lugar, tentaremos chamar de topofilia. Para isso essa introdução a este significado é precisa:
A palavra “topofilia” é um neologismo, útil quando pode ser definida em sentido amplo, incluindo todos os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material. Estes diferem profundamente em intensidade, sutileza e modo de expressão. A resposta ao meio ambiente pode ser basicamente estética: em seguida, pode variar do efêmero prazer que se tem de uma vista, até a sensação de beleza, igualmente fugaz, mas muito mais intensa, que é subitamente revelada. A resposta pode ser tátil: o deleite ao sentir o ar, água, terra. Mais permanentes e mais difíceis de expressar, são os sentimentos que temos para com um lugar, por ser o lar, o locus de reminiscências e o meio de se ganhar a vida (TUAN, 1980, p.107).
Os vestígios topofílicos nos melodramas sirkianos aparecem constantemente em suas tramas, e permitem que os personagens redesenhem suas vidas, suas novas histórias. Essa topofilia, no entanto, parece sempre emergir quando algum personagem encontra uma nova possibilidade de amar. Como ocorre em Tudo o que o céu permite, quando o personagem de Rock Hudson (Ron Kirby), ao se apaixonar pela personagem de Jane Wyman (Cary Scott) decide reformar a antiga casa de campo que ele possuía, construir junto da mulher amada um lar que legitime a nova história de amor então constituída. Como disse Tuan, se é o amor humano pelo lugar que legitima a topofilia, então será a busca e o encontro desse novo lar que legitimará o termo mesmo para o caso dos personagens de Tudo o que o céu permite. Ron não quer oferecer apenas um sentido recreacional e campestre à Cary, mas quer mostrá-la a vocação que esse espaço tem, o eflúvio sagrado que emana desse ambiente e que traz consigo uma confissão testemunhal do amor à luz da natureza.
“O que falta às pessoas nas sociedades avançadas (e os grupos hippies parecem procurar) é o envolvimento suave, inconsciente com o mundo físico, que prevaleceu no passado, quando o ritmo da vida era mais lento e do qual as crianças ainda desfrutam” (Ibid., p.110). É essa possibilidade rítmica de uma vida mais lenta, ainda destinadas às crianças, que Ron anseia quando tenta convencer Cary a deixar sua casa de alto padrão no seio da cidade e ir com ele morar numa casa mais simples, mas mais distante do “mundo mau” do qual fala Fassbinder. Ron não é hippie, mas tem a profunda noção de que o amor entre ele e Cary não pode florescer em outro lugar senão naquele espaço de campo, longe de uma sociedade egoísta e preconceituosa. Ele busca uma marcha ré para oferecer para Cary, uma volta à lentidão do cotidiano dela, para sentir a vida que pulsa com mais calor quando é permitido aspirar e inspirar o tempo e suas sombras. A citação que Cary fala de Henry David Thoreau6, no início do filme, durante um jantar com os amigos de Ron, é a definição definitiva da alma dele. Ter um tempo e espaço próprios. Ter um lar, sobretudo, que haverá de testemunhar o amor e o sagrado dessa nova vida.
Em Sublime obsessão a topofilia existe, também, como uma necessidade de um outro lugar em que os personagens devem habitar para que o afeto seja alimentado. No caso desse filme, o lugar é, como em Tudo o que o céu permite, longe da cidade, onde outrora ocorreu o grave acidente e deixara a personagem de Jane Wyman (Helen Phillips) cega, onde o seu marido veio a falecer; essa mesma cidade que presenciou a quase morte do personagem de Rock Hudson (Bob Marrick). Sirk compreendeu que o amor desse casal não poderia nascer numa cidade marcada por esse peso, e é em um local litorâneo, nas areias puras de uma praia, à sombra de uma criança que serve de metáfora para a “lentidão do mundo”, para o retorno mesmo dessa vida mais lenta, que o amor entre Rock e Jane, finalmente, desabrocha, mesmo ele não revelando sua identidade, mesmo ela sem enxergá-lo. O amor é posicionado para além da visão e da identidade, e ele só pode existir nessa nova geografia, nesse espaço ainda virgem da maldade do mundo.
A topofilia nos dois filmes saltam aos olhos. Sirk, mesmo sem conhecer o termo cunhado por Yi-fu Tuan na década de 1970, colabora com o pesquisador chinês para, ao seu próprio modo, cristalizar aquilo que o amor (pelo homem, pela geografia, pela natureza mesma dessas entidades) tem de mais bonito e insuperável: a possibilidade de dar o seu testemunho, de modificar as vidas e as paisagens daqueles tocados pelo privilégio de amar.
Considerações Finais
Os poucos filmes de Douglas Sirk por nós abordados nesse trabalho buscaram de algum modo uma semelhança, um vestígio, uma rasura daquilo que escolhemos como o tema central: um testemunho do amor, bem como a possibilidade de sentir e de avaliar a questão da topofilia em alguns desses filmes. Como o próprio termo testemunho indica no mais íntimo da sua natureza, o trabalho em nenhum momento buscou um teor absoluto, uma ideia irrefutável, mas antes, ele buscou as fissuras, os rastros que o amor, o sagrado e seus respectivos testemunhos possuem ao serem percebidos nos filmes de Sirk.
Soprados com a suavidade de uma confissão, o testemunho do amor nesses melodramas de Douglas Sirk desfolha as criptografias mais complexas da alma humana, expõe com uma dor pura os preconceitos, o racismo, e a fobia que o amor causa em almas maculadas pelo egoísmo. E por uma questão de tempo e de espaço, não nos foi possível abordar outros melodramas absolutos de Sirk, como Almas maculadas (1957) e Imitação da vida (1959), este último, aliás, uma obra sobre o racismo, e como o amor mesmo trespassa toda e qualquer condição racial. Assim, esperamos que o artigo consiga alcançar a sua proposta originária de oferecer uma certa ideia aos que o lerem sobre a questão do amor e do seu testemunho. O que, de fato, não é fácil de ser alcançado.
Ricardo Lessa Filho é mestrando em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Linha de pesquisa: Estética e Cultura da imagem e do som. É um dos editores da revista alagoana de crítica de cinema Filmologia.
BIBLIOGRAFIA
CAMPER, Fred. The films of Douglas Sirk. In: Screen: Douglas Sirk, v.12, n.2, p.44-62, jun./set., 1971.
FASSBINDER, Rainer Werner. A anarquia da fantasia. Rio de janeiro: Zahar, 1988.
MACIEL GUIMARÃES, Pedro; STARLING CARLOS, Cássio (orgs.). Douglas Sirk: O príncipe do melodrama. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2012.
NANCY, Jean-Luc. Amor: o que é, como se faz. São Paulo, Loyola, 2012.
TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo de percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: DIFEL, 1980.
NOTAS
1 CAMPER, 1971, p.44-45.
2 Ibid., p.45.
3 Mais uma vez os personagens de Sirk necessitam retornar às geografias menores, isto é, que depois de condecorados em uma grande capital (geralmente a escolhida é Nova Iorque), esses personagens, impossibilitados de desenvolver um afeto pela cidade grande, sentem o dever de voltar ao lar, ao local onde o amor floresceu, ou ao local em que ele poderá florescer. Mais adiante veremos essas questões geográficas com maior cuidado quando trabalharemos à luz da topofilia a importância que o lar tem nos melodramas de Douglas Sirk.
4 Esse filme foi realizado tendo em mente o sucesso estrondoso de “Sublime obsessão”, não por menos o casal protagonista do filme de 1954 (Rock Hudson e Jane Wyman), são também os protagonistas de “Tudo o que o céu” permite, lançado um ano depois.
5 Essa cena da necessidade de encontrar um lar para o amor, que mais a frente trataremos com mais cuidado ao usar o termo topofilia, é utilizado por Fassbinder em seu filme homenagem a Sirk (“O medo devora a alma”), quando a personagem de Brigitte Mira diz ao seu amado sob os olhos de uma sociedade alemã ainda zumbificada pelo racismo: “Eu queria ir para um lugar aonde só existisse nós dois e ninguém mais”.
6 “A massa humana vive uma vida de angústia silenciosa. Por que apressar-se tão desesperadamente por triunfar? Se um homem não anda ao mesmo passo que seus companheiros, talvez seja porque ouça um compasso diferente. Deixem-no andar ao compasso da música que ouça, por mais lenta ou distante que esta pareça.” A citação ocorre entre o vigésimo oitavo e o vigésimo nono minuto do filme.