Por Juliana Barreto Farias
Quando se fala nas relações entre Cinema e História, a obra do historiador francês Marc Ferro é praticamente obrigatória. Mesmo se a intenção é criticar suas conclusões e propostas. Afinal, Ferro foi pioneiro no tratamento dos filmes como fontes de pesquisa, numa época em que novos métodos, temas e objetos se incorporavam ao “fazer histórico”. Embora o também francês Marc Bloch já tivesse, em 1929, conclamado os historiadores a saírem de seus gabinetes e farejarem a “carne humana” onde quer que ela estivesse, muitos seguiam acreditando que a História se fazia sobretudo a partir de documentos escritos, especialmente aqueles tidos como “oficiais”.
Não por acaso, portanto, o cinema só começaria a ganhar um novo “estatuto” historiográfico no final dos anos 1970. E justamente a partir dos problemas e reflexões lançados por Marc Ferro. Em 1971, ele publicou seu artigo de maior repercussão na revista Annales. Economies, Societés, Civilizations: “O filme: uma contra-análise da sociedade?”. Reeditado sucessivamente em outras coletâneas e revistas, só chegou ao Brasil cinco anos depois, na coletânea História: novos objetos, organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora.
No texto, Ferro procurava demonstrar como os filmes são testemunhos singulares do seu tempo, fontes reveladoras de crenças, intenções e do próprio imaginário do homem. Mesmo sem querer, eles trazem uma informação que “vai contra as intenções daquele que filma, ou da firma que mandou filmar”. É certo que esses “lapsos” também podem ser encontrados nos documentos escritos. Contudo, no cinema, eles são uma constante, “porque a realidade que se quer representar não chega a esconder uma realidade independente da vontade do operador”. O que também acaba trazendo à tona elementos para uma análise da sociedade diferente daquelas propostas tanto pelos poderes constituídos, como pela oposição.
Além disso, o cinema
“destrói a imagem do duplo que cada instituição, cada indivíduo tinha se constituído diante da sociedade. A câmera revela o funcionamento real daquela, diz mais sobre cada um do que queria mostrar. Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros, tira as máscaras, mostra o inverso de uma sociedade, seus ‘lapsos’ […]”. (FERRO, 1992)
Por isso mesmo, é visto ainda como um contrapoder, com autonomia frente aos mais diversos poderes sociais. Sua força residiria justamente nessa possibilidade de expressar uma ideologia nova, independente, até mesmo nos regimes totalitários, em que o controle das produções artísticas é tão rigoroso, quando não violento. Sobre esse último aspecto, apontado nessas primeiras análises, Ferro faria uma reavaliação em artigo da década de 1980, admitindo que nem sempre essa potencialidade pode se desenvolver plenamente. Nos regimes de exceção, a vigilância chega a tais níveis que o cineasta acaba perdendo o “direito à palavra, a menos que ele não se identifique completamente com a ideologia que a instituição encarna”. (MORETTIN: 2011, 41).
De um jeito ou de outro, para o historiador francês, a contra-análise da sociedade produzida pelo cinema pode se tornar visível de diversas maneiras. Ora através de gestos, objetos ou comportamentos sociais, ora de “estruturas e organizações sociais, essencialmente nos filmes não documentários que não têm a função de informar”. Sendo assim, caberia ao historiador revelar os atalhos e portas que conduzem a essas regiões inexploradas, ressaltando os “lapsos” deixados pelo diretor e sua obra, descobrindo “o latente por trás do aparente, o não-visível através do visível”.
E nesse percurso, Ferro elege um tipo de filme como “forma privilegiada de contra-história”, uma verdadeira “arma de combate”: aquele feito com poucos recursos e por grupos “marginalizados” socialmente. Como não participam de suas representações e nem dos poderes constituídos, ou seja, representam o “inverso” da sociedade, quando eles se tornam produtores de imagens, ocorre, enfim, uma possibilidade real de “revelação” do “inverso dessa sociedade”. Embora, neste momento, Marc Ferro deixe um pouco mais evidente a forma pela qual o cinema pode concorrer para uma contra-análise, ele também nos coloca, conforme assinala o historiador Eduardo Morettin, um outro problema:
Se pensarmos de acordo com o seu referencial teórico, as imagens cinematográficas fornecidas por esses grupos não forneceriam elementos para a sua própria contra-análise, pondo abaixo a representação que fazem de si e da própria sociedade? (MORETTIN, 2011: 43)
A esse questionamento poderíamos incluir outros tantos. E o próprio Ferro, em diferentes artigos e coletâneas, também propõe mais questões e discussões. O que não quer dizer, é certo, que demonstre plenamente a eficácia de suas análises e metodologias (MORETTIN, 2011: 46). De qualquer maneira, o problema lançado por Eduardo Morettin é o ponto de partida para a reflexão que pretendo desenvolver neste artigo: em que medida os chamados “grupos marginalizados”, ao “tomarem a palavra” e se tornarem autores de suas representações fílmicas, produzem de fato “contra-análises” de suas sociedades ou épocas?
Para tanto, buscarei examinar comparativamente dois filmes brasileiros realizados em períodos distintos, mas com um mesmo propósito: Cinco vezes favela, de 1962, produção do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE), e 5x favela – Agora por nós mesmos, de 2010, dirigido coletivamente por jovens moradores de favelas cariocas. Antes de prosseguir, porém, é indispensável uma advertência: nos limites desta publicação, não se trata aqui de uma análise à maneira de Ferro, que extrapolaria os aspectos puramente cinematográficos, envolvendo o exame tanto de seus componentes narrativos – cenário, figurino, atores, etc; – como de “elementos extrínsecos ao filme”: o autor, a produção, o regime de governo, a recepção do público, as considerações críticas da imprensa, etc. (FERRO, 1992). Ainda que brevemente então, vejamos, de início, como e quando essas obras foram feitas.
Cinco vezes favela
No começo dos anos 1960, jovens da zona sul carioca subiram os morros Cantagalo, Pavão, Cabuçu, Borel e Morro da Favela para retratar a vida de seus moradores. Com recursos obtidos junto ao governo federal – graças a instâncias de Ferreira Gullar, um entusiasta do projeto – e também de seus próprios bolsos, decidiram transformar algumas histórias ali ambientadas no filme Cinco vezes favela. Nascia aí o primeiro – e único – longa-metragem do CPC da UNE. Criado em 1961 por iniciativa de Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, Chico de Assis e Carlos Estevam Martins, o Centro logo iniciou uma frenética produção artística e cultural, especialmente em teatro, ganhando a adesão de universitários, intelectuais, jovens artistas e trabalhadores.
Em pouco tempo, novos CPCs foram se multiplicando pelo Brasil, acompanhando as caravanas volantes da UNE que percorriam o país mobilizando estudantes para reformas universitárias e a criação de novos centros culturais. Mesmo que não houvesse uma linha única de pensamento dentro do próprio CPC, ou tampouco em suas “filiais”, os grupos ali reunidos pretendiam “despertar as massas” para luta política usando a arte e a cultura como “armas”. Com uma pena ou uma câmera na mão, valorizavam o nacional-popular e assim acreditavam que “conscientizariam” o povo das condições de alienação e exploração em que viviam e os guiariam até sua libertação.
Não foi diferente em Cinco vezes favela. Primeira experiência cinematográfica daqueles jovens, alguns dos quais logo seriam expoentes do Cinema Novo, como Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, cinco episódios compunham o filme, que contou com a participação de atores não profissionais e moradores das próprias comunidades. Ainda que desiguais, traziam um mesmo tema em comum: a pobreza nas favelas, em contraste com a opulenta vida burguesa e da elite carioca. No primeiro, “Um favelado”, com direção de Marcos Farias, vemos um pai de família nordestino, sem dinheiro para pagar o aluguel e ameaçado pelos capangas proprietários da favela. Como não consegue arranjar um emprego, aceita participar de um pequeno assalto. Mas o plano não dá certo e ele acaba levando uma surra de um grupo que assistiu à cena. Já em “Couro de Gato”, de Joaquim Pedro de Andrade, um grupo de meninos desce o morro para roubar gatos nos bairros e casas de famílias ricas. Era carnaval, e o couro dos bichanos seria vendido para os fabricantes de tamborins. Entre correrias de bichos, meninos e policiais, só um animal não consegue escapar e acaba se afeiçoando ao pequeno ladrão. Mas acaba vendido, porque seu novo “dono” não tem como alimentá-lo. O último curta, “Pedreira de São Diogo”, dirigido por Hirzman, mostra uma favela localizada em uma pedreira, que se encontra na iminência de desabar por conta das explosões detonadas para destruir as rochas. O que não aconteceu, graças à mobilização popular – unindo moradores das favelas e operários. Finalmente, o povo vencia a burguesia.
Desde o início da produção, a ideia era exibi-la para um público bem amplo. Só que o filme acabou mesmo restrito ao Rio de Janeiro e a sessões nos estados visitados pelas caravanas volantes da UNE. Num relatório de atividades do CPC de 1963, alguns integrantes do grupo questionavam a experiência, apontando as dificuldades de circulação e também alguns problemas de linguagem. Conforme destacaram no texto,
“Cinco vezes favela, como realização tanto artística como econômica, foi fruto da ingenuidade do CPC da UNE em sua fase inicial. […]. é um filme com linguagem, praticamente um filme conceitual, ‘de mensagem’, como se diz, sem que a ‘mensagem seja encarnada numa simbologia humanamente reconhecível’ ”.
Ainda assim, tinha lá seus “aspectos positivos”. Além de ter lançado novos técnicos, atores, diretores e argumentistas, “postulou o filme de baixo custo de produção como única forma de libertação do cinema brasileiro” e também “despertou agudamente a consciência do cineasta para a representação social da nossa realidade”. (BARCELOS, 1994: 452)
5x favela – Agora por nós mesmos
Quase cinquenta anos depois, um daqueles jovens diretores, o agora tarimbado Cacá Diegues, resolveu retomar o antigo projeto. O ponto de partida foi uma série de oficinas de roteiro, direção, arte, figurino, edição e câmera realizadas por diferentes ONGs nas comunidades cariocas da Maré, do Vidigal, de Cidade de Deus, Parada de Lucas e Linha Amarela. Dos 600 inscritos, 240 foram selecionados para participar desses cursos – ministrados por “grandes nomes” do cinema brasileiro. Destes, 90 foram escolhidos para trabalhar na produção, a partir de critérios estabelecidos pelos supervisores de cada área – direção de fotografia, de arte, trilha sonora, produção-executiva, pós-produção, todos profissionais que não eram das comunidades e já tinham larga experiência cinematográfica.
Nas oficinas de roteiro, foram eleitos por votos os melhores argumentos, que depois passaram por adaptações. Os setes diretores dos curtas – todos moradores das favelas, que já haviam trabalhado ou tido algum contato com cinema – foram diretamente selecionados por Cacá Diegues. Na “área técnica”, operadores, técnicos e assistentes também compunham essa turma da comunidade. Entre os 22 atores, apenas sete eram amadores, e o restante já participara de filmes, novelas ou séries na TV Globo.
Coproduzido pela Luz Mágica (produtora de Diegues) e pela Globo Filmes, o longa teve um custo total de 4 milhões de reais (quase 20 vezes mais que o Cinco vezes favela da década de 1960), obtidos através de financiamentos públicos e privados, do BNDES, Light, Ambev, MMX, OGX (empresa de Eike Batista), Riofilme e da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro. Embora contando com muito mais recursos que o filme do CPC, seus objetivos também eram os mesmos: retratar a vida nas favelas cariocas. Mas a versão de 2010 anunciava um diferencial já em seu título: 5x favela – Agora por nós mesmos. Como destacou o produtor Cacá Diegues numa reportagem da Folha de São Paulo de 27 de julho de 2009, o filme não devia ser tomado como uma “contestação do que já foi feito sobre a favela”. Mas como a “afirmação de uma nova visão”, “a favela como porta-voz de si mesma pela primeira vez”.
E tal qual sua fonte de inspiração, esse longa também reuniu – e igualmente com resultados desiguais – cinco episódios. No primeiro deles, “Fonte de Renda”, dirigido por Manaíra Carneiro e Wagner Novais, acompanhamos a trajetória de um rapaz pobre que passou no vestibular para a faculdade de Direito, mas tem que se virar para conseguir permanecer estudando. Em “Deixa voar”, quarto – e mais interessante – episódio, com direção de Cadu Barcelos, Flávio, um garoto do Complexo da Maré, está com um grupo empinando pipas, e uma delas vai parar numa favela vizinha, dominada por uma facção rival. Mesmo assim, o dono da pipa obriga Flávio a buscá-la de qualquer maneira. Meio a contragosto, mas sem muita resistência, ele atravessa a ponte e enfrenta o desafio. Para encerrar, “Acende a luz”, de Luciana Bezerra, mostra, de forma mais leve e bem-humorada, o que pode ocorrer numa favela quando falta energia justamente na véspera do Natal. Num clima que está presente em boa parte do filme, como resumiu uma das diretoras em depoimento no documentário que integra os extras da obra em DVD:
“Eu não tô aqui para contar história. Tô aqui para discutir o mundo. Tem que questionar? Tem, mas sempre com leveza. Ninguém vai me ouvir se eu falar gritando, colocando o dedo na cara, mas se eu disser sorrindo, aí me ouvem melhor”. (CORRÊA NETTO, 2012)
E o 5 x favela dos anos 2000 foi exibido nos cinemas de todo o país, numa estratégia de divulgação coordenada pela Globo Filmes, que incluiu críticas e reportagens em diversos noticiários da empresa de comunicação. Bem de acordo com os objetivos do produtor Cacá Diegues. Conforme apontou à Folha em julho de 2009, a ideia era que ele coordenasse e “emprestasse nome” ao projeto para entrar no mercado, trazer “uma forma de cultura que estava na margem para o centro”. Para ele, o “cinema feito pela favela” já existia “de forma talentosa”, mas “os filmes fica[vam] entre eles”.
Qual “contra-história”?
Num primeiro olhar, poderíamos dizer, seguindo as indicações de Marc Ferro, que 5x favela – Agora por nós mesmos propõe uma contra-história das favelas cariocas. Afinal, seus autores são todos eles moradores de diferentes comunidades do Rio de Janeiro. E nesse sentido também, estariam propondo uma nova ideologia, contrária aos poderes constituídos. Entretanto, como já foi possível entrever, as relações que permeiam as produções cinematográficas podem ser bem mais complexas.
Como vimos, Ferro assinala que essa contra-análise pode ser visualizada nos filmes por meio de gestos, objetos, comportamentos, estruturas ou organizações sociais. Se tentarmos esboçar este exercício com o longa de 2010, observaremos que, esteticamente, ou seja, em termos de organização dos espaços, gestos ou até dos discursos, há uma espécie de homogeneização. Vale lembrar que, embora os sete diretores dos cinco episódios sejam todos moradores das comunidades, os diretores técnicos (de fotografia, arte, edição, som) e o roteirista são os mesmos em todos os curtas, e são profissionais já experimentados nas lides do cinema e moradores de outros bairros. Isso acaba, ao final, conferindo um mesmo “padrão de qualidade” visual e sonora aos curtas, o que, em consequência, também dá uma certa unidade ao longa. Assim, o “agora por nós mesmos” do título refere-se, fundamentalmente, aos sete diretores, tidos então como os verdadeiros “autores” do filme. Mas em que medida a Maré, o Vidigal, Cidade de Deus ou Parada de Lucas são homogêneas? Até que ponto os discursos de seus moradores-criadores podem ser considerados estética e politicamente idênticos ou simplesmente semelhantes?
Essa tentativa de unidade talvez esteja relacionada com os propósitos mais amplos de produção e exibição do filme, como o próprio Diegues anunciou. E neste ponto encontramos mais um nó para uma análise nos moldes de Ferro. Simplificando mais uma vez suas propostas, filmes como contra-história seriam sobretudo aqueles realizados com poucos recursos e por grupos à margem da sociedade. Cinco vezes favela, de 1962, foi feito por jovens da zona sul, brancos, alguns universitários, com um baixo orçamento. Já 5x favela – Agora por nós mesmos contou com um polpudo financiamento, oriundo de empresas públicas e privadas, mas foi feito por diretores que moravam nas próprias favelas, quase todos negros. Dessas equações inexatas, que imagens são apresentadas das favelas e seus moradores?
Para começar, nas duas obras elas aparecem como espaços de carência. Falta dinheiro, comida, luz, acesso ao transporte. Na década de 1960, o personagem principal de “Um favelado”, dirigido por Marcos Farias, não consegue arranjar emprego e por isso decide participar de um assalto. Em “Couro de gato”, os meninos catam gatos pelas ruas para trocar seu couro por dinheiro, porque precisam comer e sobreviver. No longa de 2010, também encontramos, no episódio “Fonte de renda”, um jovem que apela para a ilegalidade – no caso, o tráfico de drogas – para poder continuar cursando a faculdade. Em “Arroz com feijão”, dois amigos encaram malabarismos e ardis para que, pelo menos no dia de seu aniversário, o pai de um deles tenha um almoço mais suculento.
Se os fins são justos, os meios quase sempre não são os mais virtuosos. Os jovens dos anos 1960 trataram de colocar esses “pequenos delitos” cotidianos na conta das gritantes desigualdades de classe. Contrastando a imagem de um menino surrado e faminto com a de uma dondoca da zona sul servida por seu mordomo, como condená-lo pelo roubo de um gato, que poderá lhe garantir o único alimento do dia? Talvez hoje, em tempos de maior preocupação com a proteção aos animais, as condenações fossem maiores. Mas quem faria diferente diante de tanta carência?, os personagens parecem nos perguntar.
Em 2010, essas faltas também surgem como decorrências quase naturais frente a situações sociais tão difíceis. Só que a intenção aqui não é exatamente apontar o porquê desse estado de coisas. Em geral, o que vemos nos curtas é um discurso de que – apesar de tudo – os “favelados” conseguem resistir e superar essas adversidades, e também se redimir, com inteligência, generosidade e muito bom humor. Um único episódio dissonante é Deixar Voar, dirigido por Cadu Barcelos. Ao decidir atravessar para o lado “dos alemão”, dos inimigos, para buscar a pipa perdida, o menino Flávio não assume um papel heroico ou justo como nos outros curtas. É alguém estranho àquele local, que lhe é opressivo, mas, ainda assim, ele vai adiante sem saber muito bem como e porque.
Não seria o caso, dados os limites deste artigo, de fazer aqui um inventário de como a favela vem sendo representada no cinema e na própria história brasileira. Ainda que este seja um esforço necessário e fundamental. De qualquer forma, quando os jovens do CPC fizeram o seu Cinco vezes favela, em 1961, apenas Nelson Pereira dos Santos havia subido a colina e mostrado a vida de seus habitantes em Rio 40 graus. E tanto ali como nos episódios criados por Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirzsman e seus amigos, as favelas parecem mais áreas rurais, muito marcadas pelas diferenças com as classes que moram nos aparentemente distantes bairros centrais e da zona sul carioca. Quase cinquenta anos depois, essas comunidades estão de tal forma presentes no cinema brasileiro que, segundo a Folha de São Paulo, em reportagem de 2009 sobre as filmagens do novo 5 x favela, já existia até mesmo “rótulo para títulos que retratam o morro, os ‘filmes de favela’, figuras fáceis no cinema nacional desde ‘Cidade de Deus’ (2002)”. Exageros à parte, para além das narrativas fílmicas, a favela de fato ganhou nos últimos anos um lugar decisivo na produção cultural do Rio de Janeiro, e do país como um todo. E mais do que isso, grande parte dessa ebulição musical, literária, cinematográfica e artística é feita por seus habitantes e circula ali e em outros espaços da cidade.
Diante de tudo isso, cabe mais uma vez a pergunta: os moradores-autores de 5 x favela: Agora por nós mesmos – tidos por Cacá Diegues como “marginais” ao mercado do cinema brasileiro – criaram novas ideologias e contra-análises sociais, nos termos propostos por Marc Ferro? Sem apresentar uma resposta definitiva para essa questão, mas levando em conta as breves reflexões que esbocei até aqui, talvez possamos concluir, com Eduardo Morettin, que suas imagens cinematográficas nos fornecem “elementos para sua própria contra-análise, pondo abaixo a representação que fazem de si e da própria sociedade”. E assim sucessivamente.
Com a proliferação de câmeras portáteis, até mesmo nos celulares mais simples, muitas contra-histórias estão sendo produzidas nas favelas e outras áreas “marginais” das cidades brasileiras. Basta lembrar de um episódio recente, quando um jovem morador de uma favela carioca foi assassinado por policiais militares que insistiam em negar a ação. E tudo mudou quando veio à tona o chocante registro em tempo real da cena, gravada pela câmera de um celular. Mais do que carência de contra-análises da sociedade, temos, em verdade, uma questão ainda mais crônica e complexa no audiovisual brasileiro: os labirintos e privilégios das cadeias de distribuição e exibição. Mas essa já é uma outra história. Ou uma contra-história.
Juliana Barreto Farias é doutora em História Social pela USP e professora de História da África na Universidade Estadual de Feira de Santana.
BIBLIOGRAFIA:
BARCELOS, Jalusa. CPC da UNE: uma história de paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
CORRÊA NETTO, Guilherme Balza. “Em busca de um cinema popular: Cinco vezes favela do CPC e das ONGS”. Revista Alterjor. São Paulo, Ano 3, vol. 1, Edição 5, jan-jun.2012.
FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
MILGIORIN, Cézar. “Mundo 100% Favela”. Revista Cinética, Setembro de 2010. Acessado em 20 de junho de 2015: http://www.revistacinetica.com.br/5xfavelacezar.htm
MORETTIN, Eduardo. “O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro”. In: CAPELATO, M. H; MORETTIN, E.; NAPOLITANO, M.; SALIBA, E. T. (orgs.) História e Cinema. 2 ed. São Paulo: Alameda, 2011.