Por Cyntia Nogueira
O cinema experimental encontrou um terreno fértil em Salvador a partir do final de 1960. A vivência de um ambiente marcado pela contracultura, pelo tropicalismo, na música, e pelas vanguardas artísticas de forma mais abrangente, emolduraram filmes que expressam as contradições do período pós AI-5 no Brasil, adotando a perspectiva de jovens inseridos no contexto de uma revolução comportamental que se contrapõe frontalmente ao acirramento das ditaduras militares na América Latina.
Diferentemente das produções do Ciclo Baiano de Cinema, realizadas entre 1959 e 1965, marcadas pelo diálogo com o cinema realista de cunho social – e, ao mesmo tempo, com o gênero policial, como é o caso dos filmes de Roberto Pires, o mais importante diretor do período, tendo dirigido Redenção (1959), A Grande Feira (1961) e Tocaia no Asfalto (1962) –, os filmes do final da década focalizam a classe média e, em especial, os jovens, a questão da família e dos valores morais, as dinâmicas relacionadas a uma nova sensibilidade urbana, com consolidação da indústria cultural vinculada a uma intensa repressão política e artística.
A violência, a experiência com as drogas, o sexo, surgem como formas de subversão dessa realidade e, ao mesmo tempo, como reflexo de um desencanto latente em relação às possibilidades de futuro – restaria a celebração do presente e a reflexão sobre o próprio fazer cinema. O humor irônico e a paródia serão algumas das estratégias narrativas adotadas por essa produção de viés anárquico, realizada com poucos recursos, mas com grande liberdade de criação.
Meteorango Kid, o herói intergaláctico (1969), de André Luiz Oliveira, e Caveira my friend (1970), de Álvaro Guimarães, são dois filmes representativos do período, além do desaparecido Akpalô (1971), de Deolindo Checcucci e André Frazão, e numa outra chave, sob o viés da afirmação da cultura negra, O anjo negro (1972), de José Umberto.
Ao longo dos anos 70, a geração superoitista atualizará essa tradição experimental, numa produção vigorosa e ainda pouco estudada. No final dos 80, um de seus principais expoentes, Edgar Navarro, retoma algumas das mesmas estratégias narrativas em um filme que se torna mítico para o cinema na Bahia, o média-metragem Super-Outro (1989). Essa herança pode ser identificada, ainda, nas produções de videoartistas, que despontam na segunda metade dos anos 90 e início dos 2000, como Marcondes Dourado (Ogodô ano 2000, 1996), Danillo Barata (Capitália, 2002) e Daniel Lisboa (O Fim do homem cordial, 2004).
Chama atenção em Meteorango Kid, Caveira my friend e O anjo negro, o enfrentamento dos personagens em relação à câmera, a denúncia do dispositivo cinematográfico através do ato deliberado de apontar uma arma para o espectador, o que sinaliza o rompimento do contrato com o cinema clássico, baseado na invisibilidade da câmera. Ao atirar contra a quarta parede herdada pelo cinema do teatro burguês do século XVIII, seus personagens falam diretamente para o espectador e reivindicam outra posição em relação ao fluxo de imagens.
Esses filmes dialogam diretamente com o chamado Cinema Marginal Brasileiro, etiqueta atribuída a um conjunto de curtas, médias e longas experimentais, undergrounds ou údigrudis, como preferia Glauber Rocha, realizados de forma independente entre o final de 1960 e a primeira metade de 1970.
O rótulo “marginal” encontra ressonância no elenco de personagens desajustados ou marginalizados socialmente que essa produção apresentou; na Estética do Lixo que radicaliza a Estética da Fome glauberiana, agora a partir da colagem ou reciclagem de subgêneros do cinema industrial, do gosto pelo grotesco e pelas matérias orgânicas; na perspectiva de desesperança frente ao futuro de um país que se moderniza a ferro e fogo; no ponto de vista assumido por seus personagens, sempre a partir das bordas da cidade, ou seja, das margens de espaços urbanos que se expandem empurrando o “lixo” para a sua periferia; e, por fim, no diálogo com as artes visuais e com o lema irônico de Hélio Oiticica: “seja marginal, seja herói”.
São características que aparecem em dois filmes marcantes do período, A Margem (1967), de Ozualdo Candeias, e O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, este último um filme que atualiza Godard, Welles e a chanchada brasileira para a realidade cinematográfica terceiro mundista pós 1968, criando uma narrativa complexa e polifônica que oferece novos contornos ao cinema moderno no Brasil e na América Latina.
Na Bahia, a idéia de um “inventário das descontinuidades históricas do ponto de vista dos vencidos”, como define Ismail Xavier em O Cinema Brasileiro Moderno (1995), pode ser observada já em um das primeiras produções do ciclo baiano de cinema. Em A grande feira (1961), Roberto Pires focaliza o universo popular dos feirantes de Água de Meninos a partir do ponto de vista de personagens “marginais”, tendo no centro da narrativa, que opõe desenvolvimento e inclusão social, o bandido Chico Diabo (Antonio Pitanga) e sua companheira, a prostituta Maria da Feira (Luiza Maranhão).
A expressão “cinema marginal”, no entanto, se impôs muito mais como um estigma, refletindo tanto a censura oficial quanto o conservadorismo da ideologia nacionalista de esquerda da época. Numa direção oposta ao Cinema Novo, que àquela altura passava a ocupar uma posição de hegemonia no campo cultural brasileiro, produzindo filmes com valores de produção maiores, com vistas à institucionalização do cinema brasileiro via financiamento estatal, o “cinema marginal” reafirmava a condição periférica do país.
Em Marginais, lixo e chanchada, João Luiz Vieira observa que “muitos desses filmes organizam uma espécie de colagem de materiais achados, promovendo a noção de que o Terceiro Mundo só herda as migalhas do Primeiro”. Através de uma “redescoberta da chanchada”, negada pelo Cinema Novo e tida como sinônimo de baixa cultura, os filmes “marginais” utilizam-se da paródia como elemento estruturante da narrativa. Só que dessa vez, observa João Luiz, os filmes vão tomar não apenas “o cinema estrangeiro como alvo satírico, como havia sido na chanchada, nos anos 50, mas o respeitável Cinema Novo”.
Seria mais correto dizer, assim, que os filmes foram “marginalizados” pelo discurso oficial que se construía em torno do cinema brasileiro, embora nem sempre o tenham sido pelo mercado exibidor, como muitas vezes se supõe. Basta lembrar que tanto o O Bandido da luz vermelha (1968) quanto A mulher de todos (1969), de Sganzerla, tiveram grande retorno de bilheteria. Da mesma forma, os filmes de Zé do Caixão, realizados também no ambiente da Boca do Lixo, região do Centro de São Paulo que concentrou a maior parte dessa produção. Fora de São Paulo, apenas Rio de Janeiro, Minas Gerais e Salvador produziram filmes sintonizados com essa experiência.
Bicho interessa? Heróis “marginais” baianos
Na Bahia, o filme Meteorango Kid (1969), de André Luiz Oliveira, retoma o caminho já apontado no início dos anos 60 por Roberto Pires ao criar uma representação distópica do processo de modernização da cidade, através de um elenco de personagens “desajustados” socialmente. Agora, no entanto, o foco não é mais a luta de classe, nem a questão do popular, nem o realismo social.
Claramente influenciado pelo filme Bandido da luz vermelha, de Sganzerla, André Luiz Oliveira vai se apropriar da Estética do Lixo em uma narrativa fragmentada, feita de colagens e humor corrosivo, sobre um jovem de classe média alta, amoral e sem projeto de futuro.
Em Meteorango Kid, o herói intergaláctico, André Luiz Oliveira cria uma imagem infernal da cidade de Salvador e das perspectivas que se colocam para jovens como Lula. Apresentado no início e no final do filme em sua crucificação, o martírio de Lula tem como pano de fundo um coqueiral, numa representação paródica. A paisagem tropical é transformada em ambiente inóspito pela luz estourada e pelos riffs agonizantes de guitarra substituídos na sequência seguinte, à noite, pelo intenso barulho de carros, sirenes, e uma movimentação de câmera (na mão) vertiginosa, que revela o ponto de vista do personagem que se desloca rapidamente por ruas e galerias da cidade, sendo preso logo em seguida.
Tanto em Meteorango, quanto em Caveira, My Friend (1970), de Álvaro Guimarães, é principalmente a montagem sonora que posiciona a narrativa em relação a seus personagens, conferindo densidade a seus comportamentos “condenáveis”. Nos dois filmes, a música, com forte presença de Moraes, Pepeu e Paulinho Boca de Cantor, os futuros Novos Baianos, além de Caetano Veloso, inclusive de sua imagem como ícone pop, tropicalista, tem um papel estruturante na narrativa, compondo, assim como as citações e letreiros, uma montagem polifônica, feita de colagem de canções, poesias recitadas, diálogos, ruídos.
A multiplicação das informações sonoras se associa ao preto-e-branco da imagem e à movimentação de câmera que percorre os espaços urbanos da cidade em crescimento, transitando entre suas construções modernas e a velha e decadente cidade da Bahia.
Em Caveira, entretanto, a paródia como forma de sátira à indústria cultural, inserida num fluxo de imagens que não faz distinção entre realidade e delírio, cede lugar ao registro quase documental, vivencial, do cotidiano, dos conflitos e aspirações do grupo de Caveirinha, líder de uma espécie de gangue que transgride a ordem social realizando assaltos. O filme se estrutura como um work in progress, em que os atores falam de suas histórias “reais”, em depoimentos improvisados, que se superpõem e abordam o próprio desejo de cinema, afirmam a vida “artística”, as relações de amizade, a celebração do presente. O humor é restabelecido através da narração e dos letreiros que comentam as ações através de citações irônicas.
O filme praticamente lança o primeiro disco dos Novos Baianos, Ferro na Boneca, editado pela RGE no mesmo ano, e conta com a participação de Baby Consuelo como atriz, além de músicas de Caetano Veloso, como a emblemática Cinema Olímpia.
O Anjo Negro (1972), de José Umberto, assim como Akpalô (1971), de Fernando Checcucci e José Frazão, foi realizado em cores, um traço que diferencia esses filmes da maior parte da produção normalmente identificada sob o rótulo Cinema Marginal. No entanto, no que se refere a O Anjo Negro, que permanece acessível à crítica atual, podemos identificar diversos pontos de contato com essa produção e, diretamente, com Meteorango e Caveira.
Nos três filmes, a discussão sobre a família ocupa um lugar central, a figura materna sendo questionada em seus papéis tradicionais, assim como os valores burgueses. A mesa de jantar, assim como na canção ícone dos Mutantes, surge como emblema do conflito geracional. A deambulação dos personagens pelo espaço urbano e, em especial, por suas margens, é outra característica marcante nessas produções, assim como a narrativa fragmentada, não-linear, a colagem e a paródia.
Em O Anjo Negro, que conta com a presença performática do ator cachoeirano Mário Gusmão, no papel de um exu que chega misteriosamente e se instala na sala de jantar de uma família em crise de valores, a discussão em torno do projeto de modernização se dá sob o viés do embate entre a religiosidade de matriz afro-baiana e os valores cristãos, entre a urbanização e as raízes negras da população. A partir da mitologia do candomblé, compõe uma narrativa alegórica, carregada de simbologias, que explora a viscosidade de matérias orgânicas para produzir o choque, o estranhamento. O recurso à paródia se torna explícito na Semana Épica, em que o exu derruba com sua lança, a cada dia, um herói ícone da indústria cultural internacional.
A construção de heróis marginais através da paródia é um dado recorrente no “cinema marginal baiano” e vai encontrar sua melhor síntese em Super-Outro, média de Edgar Navarro que faz a ponte entre o Pires de A Grande Feira e o André Luiz Oliveira de Meteorango Kid, retomando a questão social ao acompanhar o cotidiano miserável de um louco pelas ruas de Salvador, com interpretação incrivelmente realista de Bertrand Duarte.
O filme de Navarro, embora marcado pelo humor cáustico, a escatologia e o grotesco, diferencia-se pelo profundo lirismo, pelo desejo de afirmação radical de toda e qualquer alteridade, expresso pelo solene pronunciamento do personagem em praça pública, vestido de Super-Outro em contraposição ao Superman do cartaz afixado no antigo Cine Glauber Rocha: “Brasileiros e brasileiras: o Brasil espera que cada um cumpra o seu dever. E o meu dever é voar”. Produzido vinte anos após Meteorango, já não se trata da denúncia de uma geração sem rumo, mas de outro tipo de alerta. Acorda humanidade!, grita e apita o nosso louco vestido de uniforme do Bahia no meio da noite.
Cyntia Nogueira é Professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. Mestre em Comunicação, Imagem e Informação pela Universidade Federal Fluminense (2006). Tem atuado principalmente com o tema história e crítica do cinema brasileiro.