XIII PANORAMA INTERNACIONAL COISA DE CINEMA – DIA 6

As sessões do dia 14/11 contaram com três longas e dois curtas-metragens. Apesar das temáticas bastante variadas, os filmes parecem ligar-se pela forte crítica social que reúnem. Seja a uma sociedade do trabalho compulsivo, ao enclausuramento das massas ou ao preconceito racial. Direta ou indiretamente, nascem de certa inquietação social que os precede.

A MOÇA DO CALENDÁRIO

A moça do calendário (2017), sétimo filme de Helena Ignez, abriu o sexto dia do 50º Festival de Brasília este ano. O mix de gêneros cinematográficos que compreende reflete logo em sua estrutura o tensionamento ideológico que o filme carrega. Inácio (André Guerreiro Lopes), um mecânico e dublê de dançarino que sofre de frequentes dissociações com a realidade, apaixona-se pela moça que estampa o calendário da oficina em que trabalha, interpretada por Djin Sganzerla, e a encontra recorrentemente em seus cochilos-delírios diários. Contrapõem-se aqui dois espaços majoritários na trama. De um lado, a oficina mecânica, espaço onírico de um rígido preto e branco, como um lugar de silenciamento – fragmento de cinema noir – onde o personagem é interrompido pelas repetidas ordens para voltar ao trabalho, não reclamar, tomar uma novalgina e permanecer engrenagem da máquina, que é o sistema capitalista. De outro, o oposto, um campo aberto, na companhia da moça do calendário, uma clara personificação dos ideais que o personagem gostaria de estar vivendo. Deitada em seu jipe, ela cobra reação, posicionamento, fala. O sonho domina cada vez mais forte, e invade progressivamente a realidade que Inácio habita. Tudo isso na caótica metrópole de São Paulo, “palco de atores dos mais diversos”, do proletariado às figuras de poder financeiro e intelectual.

O filme não segue a linearidade narrativa do cinema clássico. Mantém uma postura mais libertária em relação a sua forma, fincando raízes na herança deixada pelo Cinema Marginal a que Helena Ignez sempre esteve próxima. Os diálogos, que ora fincam o pé na realidade, transformam-se em alegorias, coreografias, monólogos, com longas retóricas a respeito de arte, política e cultura. A importância dada ao automóvel, a extrema plasticidade dos sistemas que cuidam da saúde pública, o sebastianismo em relação à política brasileira e a misoginia que se camufla no cotidiano são só algumas das muitas críticas sociais nada sutis que A moça do calendário traz ao espectador. Segundo Helena, o roteiro original de Rogério Sganzerla foi adaptado em busca de empoderar os personagens femininos e trazer a trama para os dias de hoje. Apesar disso, ao tentar englobar muito, o discurso perde potência, não fazendo o espectador refletir de fato a respeito de nenhum dos assuntos tratados. A dualidade na ironia ao amor narcísico do homem em relação ao próprio falo, seja nas relações de Inácio com os espelhos ou no som de trovões que desencadeia quando tem um orgasmo, é um claro exemplo disso, uma vez que o filme, na prática, não chega nem perto de passar no teste de Bechdel.

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GUARNIERI

Em Guarnieri (2017), Francisco Guarnieri busca reconstituir o multifacetado Gianfrancesco – seu avô, escritor, roteirista, ator e pai – como forma de preencher o espaço que existia na relação entre os dois, uma relação marcada justamente pela não relação. Para isso, Francisco realiza um riquíssimo trabalho de pesquisa revisitando os rastros que Gianfrancesco deixou no tempo. Pequenas pistas de alguém que teve sua vida exposta na esfera pública da sociedade. Passado e presente encontram-se, então, por meio da mídia, nas notícias de jornais e entrevistas televisivas, intercalando-se com encenações de trechos de peças e fragmentos de fala dos filhos de Guarnieri no presente. Não é por acaso que os aspectos físicos e materiais de reconstituição do avô são majoritariamente arquivos da esfera pública e não privada, diferente do que ocorre em Elena (2012), nos relato da irmã-diretora, ou em A Paixão de JL (2015), nas gravações pessoais em fitas-cassete de José Leonilson. Essa escolha em relação à forma do filme acentua ainda mais a sensação de distância, que é trabalhada progressivamente pelo discurso ao longo da narrativa. Apesar de construir, por vezes, um tom irônico por meio da montagem, o diretor mostra-se no geral terno e compreensivo, até enaltecedor demais, homenageando a trajetória de vida do avô com muito saudosismo.

Guarnieri obtém sucesso em transmitir o peso da passagem do tempo para as relações que se perdem e não podem ser recuperadas. Gianfrancesco, ao passo em que milita politicamente por meio de sua arte, tecendo fortes críticas ao sistema capitalista, afasta-se cada vez mais de sua família. Não é por acaso que este e o filme anterior foram colocados em sequência no Panorama Brasil. De certa forma, as mensagens dos dois contrapõem-se e complementam-se. Em A moça do calendário, o personagem principal transcende no final do filme, quando se desvincula de seu casamento e seu trabalho, enquanto que em Guarnieri o trabalho é o principal responsável pelas ausências, mas ao mesmo tempo é visto como algo necessário, no ponto em que luta a favor de uma causa. Afinal, este filme de montagem não falha em nos conduzir a um absoluto sentimento de admiração em relação ao artista, ainda que isto tenha tido um custo. O filme acaba com a sensação de se estar sempre à deriva da escolha, onde se há sempre de perder e ganhar alguma coisa pelo caminho, mutuamente.

NADA, TRAVESSIA E CAFÉ COM CANELA

Nada (2017), novo curta-metragem de Gabriel Martins, teve sua estreia na Quinzaine des Réalisateurs do Festival de Cannes. Apresenta-nos Bia (Clara Lima), uma estudante do terceiro ano do ensino médio, que não quer entrar na faculdade. A pressão para ser colocada logo na cadeia de produtividade capitalista invade a cabeça da personagem. Vê-se claramente a dogmatização de certos meios de vida em detrimento de outros, numa possível tentativa de neutralizar traços desviantes na sociedade. Qual o problema em querer fazer nada? Quando mandam a personagem tirar seu gorro roxo para fazer a prova de vestibular, Bia é literalmente obrigada a perder seu terceiro olho para se encaixar. A belíssima fotografia de Diogo Lisboa e Rick Mello corrobora para construir tal sensação. Os diversos planos fixos, reguladores, contrapõem-se a movimentos de câmera libertadores, momentos de delírio ou observação da protagonista. Um dos planos, um longo plano-sequência, mergulha subjetivamente no espaço em direção a Bia que, extasiada, está deitada de cabeça para baixo, marcando um verdadeiro momento de respiro na trama. Será que somos realmente livres para escolher o que queremos?

Em Travessia (2017), Safira Moreira busca na fotografia, e no próprio filme enquanto registro fotográfico, uma forma de combater o processo de apagamento histórico do corpo negro. Uma vez que tirar e ter fotografias era uma regalia dada majoritariamente às famílias brancas, a diretora utiliza o conhecimento a respeito de seu passado histórico como forma de luta. O conhecimento da própria história como forma de empoderamento.

Por último, o vencedor de melhor longa pelo júri popular do 50º Festival de Brasília, Café com canela (2017), de Glenda Nicácio e Ary Rosa, emana memória de seus quadros. Aborda as coisas que se perdem e que perdemos pelo caminho, e os caminhos de cura que permeiam tais processos. Violeta (Aline Brune) mora em Cachoeira desde sua infância, onde se mantém financeiramente vendendo coxinhas, uma receita secreta de família. Margarida (Valdinéia Soriano), de São Félix, tem alucinações desde que perdeu o filho, e vive enclausurada dentro de seu próprio sofrimento. O destino das duas irá entrelaçar-se adiante, ao atravessarmos a ponte que divide as duas cidades. Em meio à dinâmica de interior que circunda os personagens, o curta encara a dor como parte fundamental da vida e coloca o cuidado com o outro como força motriz para transformações. Como disseram no debate pós-sessão, a experiência do encontro que o filme promove extrapola os limites da narrativa, uma vez que sempre existiu uma preocupação em englobar intimamente a própria equipe e a comunidade no processo criativo do longa-metragem.

Nota-se também uma grande sede de fazer, como primeiro longa-metragem, pelo uso exacerbado de recursos estilísticos. Subjetivas improváveis, montagem descritiva no estilo “Ilha das Flores” (1989) e som interno subjetivo emanando de vários objetos inanimados. Para bem ou mal, o filme é carregado destas marcas. Nesta linha, a fotografia de Letícia Ribeiro assume grande poder simbólico por meio dos enquadramentos. A câmera que rodopia junto com Margarida em sua loucura, invasivamente, é a mesma que se sentará ao seu lado mais tarde para o café da manhã. Além disso, o filme mostra comprometimento em percorrer os espaços, e delimitá-los, descrevê-los, como no plano fixo que une as casas de três dos personagens, do lado de dentro em direção à rua, ou nos planos-sequência de câmera na mão que percorrem grandes corredores. A geografia do espaço, então, ganha também traços de personagem protagonista na narrativa. No geral, para além dos exageros, a união entre essa sensibilidade no olhar e uma ousadia no uso da linguagem cinematográfica marcam Café com Canela, não só em uma transformação enriquecedora para os personagens, mas também para o espectador.

Um exemplo de representatividade negra apareceu forte nos três filmes desta sessão, a Competitiva Nacional. Sobre a discussão acalorada a respeito de “Vazante” (2017), deu-se para perceber que lugar de fala, como projeto, não nos leva a “filmes selfie”, como denominou Daniela Thomas em entrevista, mas a não reproduzir regimes de silenciamento e invisibilidade sobre o outro, como se vem fazendo às pencas no decorrer da história do cinema.

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