Marcas identitárias nas telas estrangeiras de ficção
Por Tunico Amâncio
O Brasil filmado pelo cinema estrangeiro industrial de ficção segue um rigoroso ranking de atrações de interesse internacional, no tocante às metrópoles do país. Em primeiro lugar está o Rio de Janeiro, depois Brasília e Salvador, finalmente vem a Amazônia, nomeada como região.
Sem que este seja o resultado de uma investigação aprofundada e baseada em uma recompilação exaustiva, é nesta ordem que o Brasil parece ser mais percebido lá fora, se considerarmos alguns exemplos de filmes que esporadicamente iluminaram nossas telas. E não é apenas uma curiosa coincidência que a ordem de visibilidade de nossas metrópoles no cinema estrangeiro se submeta ao peso da história, organizadas pelo estatuto de cidades-capitais, funções determinantes na constituição do Brasil como nação/estado da modernidade. Em 1549 Salvador foi declarada capital do Brasil pela coroa portuguesa. O título valeu até 1763, quando o Rio de Janeiro tornou-se a sede do Vice-reino do Brasil e a capital da colônia. Em 1960, a capital foi transferida para Brasília. As implicações político-sociais dessas institucionalizações reverberam na evidência do papel dessas cidades no imaginário coletivo, não fossem elas também três exemplos da pluraridade cultural brasileira e de diferentes processos de consolidação de suas singularidades.
Ao pensarmos a Bahia, devemos considerar sua importância como pólo diferenciado de cultura e como potência no campo das artes, capaz de trazer ao cinema marcas muito específicas, pautadas pela atualização da herança africana, pela composição étnica, pelo sincretismo religioso, pela absorção musical e culinária, pelo registro arquitetônico, pelo forte esteio turístico e, naturalmente, pela atividade dinâmica de seus componentes científicos, políticos e sociais.
O que é absorvido pelo cinema estrangeiro de ficção, entretanto, como em toda a clicheria a serviço das gestões dramatúrgicas que alimentam a matriz hegemônica, são reduções que tocam apenas superficialmente o real social. Sem deixar de ter, mesmo assim, certo encanto.
Vamos tentar aqui, em um vôo panorâmico (bastante compatível com a extensão do olhar do cinema estrangeiro sobre o Brasil), perceber alguns desses momentos e, neles, alguns fenômenos.
Nos anos 40, como esforço de guerra dos EUA para a defesa do continente, criou-se uma super agência chamada Birô de Assuntos Interamericanos, gerida por Nelson Rockfeller. Uma das principais armas da Política de Boa Vizinhança americana foi o cinema, conhecido como setor estratégico capaz de sensibilizar multidões e moldar mentalidades. Promoveu-se o intercâmbio de artistas e a feitura de alguns filmes, entre eles The three caballeros, uma animação produzida em 1944, que recebeu aqui o título de Você já foi à Bahia? Trata-se de um périplo pelo sul do continente empreendido pelo Pato Donald, numa concepção multiculturalista de Walt Disney, responsável pelo projeto. Na parte brasileira, informada pela louvação à Baía (sic), tomamos contato com a “terra de romance”, com a canção Na Baixa do sapateiro (de Dorival Caymmi) e com a baianinha Yayá, a dos quindins, uma Aurora Miranda em trajes típicos, cheia de ginga e cercada de malandros. Cantando, ela seduz o pato, antes que o carnaval transforme tudo em movimento, um desfile de formas que abarca de sobrados coloniais ao elevador Lacerda. Assim, em marcada policromia e marcante percussão, o mundo se move e vemos desfilar um conjunto de figuras que define certa imagem de Bahia: o registro colonial, o traço da mestiçagem, a virtuosidade musical do povo, o ritmo contagiante, a dança, o frenesi tropical. Estas imagens cristalizam um determinado imaginário, ainda que em diapasão semi-abstrato (pela técnica de animação utilizada, misturando desenhos com imagens colhidas ao vivo) e vão sintetizar, em certa produção cinematográfica estrangeira, um ideal edênico, marcado pela vivacidade das gentes e o colorido dos costumes, apontando para a enganosa utopia de uma sociedade sem vestígios do seu duro processo de colonização.
É a Europa do pós-guerra, entretanto, que vai procurar estabelecer um novo olhar sobre a Bahia, baseado em outro tipo de informação. E o primeiro sintoma desse interesse é a fundação da coleção Croix du Sud, em 1952, pela Gallimard, responsável pela difusão da literatura latinoamericana na França[1]. A obra de Jorge Amado vai ser lançada, junto com a de outros autores, disponibilizando de modo intensivo um imaginário que atualizava o exotismo dos países do Sul para os leitores europeus, numa chave mais temperada com preocupações sociais.
Em 1951, a revista Paris Match tinha publicado a matéria As possuídas da Bahia, sobre a iniciação no candomblé, com fotos do prestigiado cineasta Henri-Georges Clouzot, feitas como parte de um longa metragem chamado provisoriamente Brésil, a ser filmado no país como um diário de viagem. Clouzot era casado com Vera Amado, filha do embaixador Gilberto Amado, primo de Jorge, o que não foi suficiente para lhe garantir acesso imediato aos terreiros para flagrar algumas cerimônias afro-brasileiras. Suas imagens fotográficas provocaram intensa polêmica no Brasil, envolvendo a revista O cruzeiro, José Medeiros, Pierre Verger, Roger Bastide e Alberto Cavalcanti, mas o filme nunca chegou a ser feito. Clouzot anuncia depois à Paris Match que queria fazer um novo filme somente interpretado por atores negros,[2] prova da forte impressão que lhe causara a cultura baiana.[3] Enquanto isto, a Bahia começa a viver uma grande efervescência cinematográfica, da crítica à produção.
Em agosto de 1958 chega a Salvador Roberto Rosselini, convidado por Assis Chateaubriand e ciceroneado por Di Cavalcanti, para fazer locações para um documentário colorido baseado na Geografia da fome, de Josué de Castro. Em Di/Glauber, o cineasta baiano conta que Rosselini saíra pela rua Chile, com uma câmera 16 mm, filmando rapidamente uns sarcófagos e outros batuques das ruínas portuguesas barrocas da Bahia, com uma rapidez impressionante. Ali Glauber teria percebido o que era o pressuposto de uma ideia na cabeça e uma câmera na mão. Do filme, não teríamos traços, mas o lema emblemático ali anunciado correria mundo nas formulações do Cinema Novo.
O também italiano Leonardo Racanelli, assim como o americano Frank Capra teriam estado na cidade tratando da filmagem do mesmo livro de Jorge Amado, Gabriela, cravo e canela, em 1958. E Hal Bartlett pretendeu filmar Capitães de Areia em 1960.[4] Nenhum desses filmes foi realizado e mesmo a versão brasileira do consagrado romance entre a mulata e o turco foi realizada em Paraty.
Quem filma então na Bahia é o francês Marcel Camus que, mesmo depois de ter sido laureado com a Palma de Ouro e oscarizado por Orfeu Negro, é desqualificado por Glauber Rocha no suplemento dominical do Jornal do brasil. Ele implica com a personalidade romântica de Camus e critica o filme Os Bandeirantes (1960) por ser uma colcha de retalhos de um Brasil primitivo, uma mera empreitada comercial, realizada em conluio pelos vilões Jean Manzon e Luis Severiano Ribeiro[5]. O filme trata de uma perseguição movida pelo francês Jean Morin e seu amigo negro (e baiano) Beija-Flor ao alemão Curd, depois que este os rouba em um garimpo em Rio Branco. Descendo o país, da Amazônia até Brasília, os amigos vão enfrentar toda sorte de vicissitudes, passando pela floresta, pelo sertão, pelo litoral, até chegar ao cerrado. No meio de uma profusão de imagens de garimpeiros, jangadeiros, vaqueiros e pescadores, de danças folclóricas e de crepúsculos, a dupla vai fazer uma parada na Bahia, para que Beija-Flor encontre Hermínia, sua noiva, interpretada por uma radiante Lea Garcia, e proceda ao casamento, celebrado numa praia, em torno de uma mesa farta e de velhos amigos. Ali, são celebradas as tradições, a capoeira, o candomblé, a amizade e o amor. Valores oferecidos, na própria diegese, como atrativos turísticos, que a trama vai incorporar.
Esta passagem pela Bahia reforça alguns dos traços positivos da cultura baiana, inscrita no imaginário cinematográfico: as tradições culturais afro-brasileiras, a convivência, a miscigenação.
Também de 1960 é o longa-metragem alemão Estrada do Amor [6], com o popular cantor e ator austríaco Freddy Quinn. Freddy mora em uma favela à beira-mar. É um boêmio que vive tocando seu violão e cantando no meio de pescadores e saveiros. O filme começa na praia e logo vamos para a cidade, num bonde misto, onde acontece um roubo. Na figuração, Antonio Pitanga ainda como Sampaio e, na diegese, um negro amigo, chamado Miro (Almiro Honorato), que vai participar com o herói de toda a aventura. Freddy encontra Janni (Nayantara), uma criança órfã por quem se afeiçoa e a quem terminará por adotar, em Brasília. No horizonte, a promessa de um casamento com a Dra. Anita. Brasília e a adoção são o caminho longo do título original. Mas a Bahia é o lugar onde brotam a solidariedade e o amor. A cidade é perscrutada de vários ângulos, a parte baixa, o Pelourinho, as habitações populares à beira do mar, as mansões da Cidade alta, igrejas, bares e boates, um cenário decadente de uma cidade marcada pelo tempo. Há sempre música, um clima de alegria e mesmo um ambiente de trabalho. O povo mestiço e negro aparece só como figuração, um protagonismo pertencente aos brancos que propõem e patrocinam a aventura, embalada pelo sempre presente violão do cantor. A Bahia é uma passagem em direção a Brasília, onde a história vai efetivamente se desenrolar. Embora edulcorada pela embalagem musical, a questão da exclusão social é uma inquestionável marca na temática do filme.
Em 1964, Robert Mazoyer, assistente de Camus em seus filmes brasileiros, realiza O Santo Módico, a história de Bento, um pescador que se transforma em santo milagreiro, vê seus dotes explorados pelo comércio, mas sofre de amores por Flora. Sem termos tido acesso à cópia, podemos registrar apenas o naipe de compositores da trilha sonora (Tom Jobim, Baden Powell, Vinícius de Moraes e Luiz Bonfá), e Leny Eversong, Lea Garcia, Breno Mello, Jurema Penna, Zezé Macedo, Lidio Silva e Oscar Santana liderando o elenco.
Em 1970, o italiano Giovanni Fago filma na Bahia O Cangaceiro, com temática associada ao gênero cinematográfico inventado no Brasil, o nordestern. Um camponês que vira beato e depois, já transformado em redentor, chefia um bando de cangaceiros. Vincenzo Helfen, um elegante holandês, se aproxima dele e usa sua influência para afastar os camponeses de suas terras, para agilizar a exploração das jazidas de petróleo da região, em nome dos poderosos locais. Um drama que é quase uma alegoria da modernização e do desenvolvimento industrial da Bahia, na pré-história do complexo petroquímico que vai se instalar na região.
Marcado pelas premissas do gênero, O Cangaceiro vai recorrer ao happy-end para selar a amizade entre os dois protagonistas, desbaratando os planos de dominação, repudiando a traição e apaziguando os conflitos sociais da região. Uma solução nada revolucionária, mas essencialmente dramática, pautada pela tentativa de aproximação mimética aos filmes que fizeram lá fora o vigor do cinema novo. A Bahia é seu território mítico, sua paisagem, sua substância imaginária.
Marcel Camus volta a filmar na Bahia em 1975, agora amparado pelos Pastores da noite, convertidos em Otalia da Bahia, em simultaneidade com o olhar lançado à cultura baiana por outros dois cineastas brasileiros, através da obra de Jorge Amado: Nelson Pereira dos Santos, e sua Tenda dos Milagres, de 1975, e o fenômeno Dona Flor e seus dois maridos, feito em 1976 pelo jovem Bruno Barreto. Obras também contemporâneas do estrondoso sucesso popular da telenovela Gabriela, exibida pela Tv Globo, em 1975.
Otalia opera também com a miscigenação racial e o sincretismo religioso, formas de hibridismo associadas inevitavelmente à cultura baiana. Entretanto, o filme traz a particularidade de representar enfaticamente as franjas urbanas, de assentar sua principal trama paralela nos conflitos sociais advindos da política de remoção dos moradores dos morros e seus enfrentamentos com a polícia. Embora o cenário principal sejam as ruas antigas de Salvador, suas escadarias de igrejas, o porto, os terreiros de candomblé e as rodas de capoeira, elementos tradicionais da rica iconografia local. Para além dos conflitos sentimentais dos personagens de Martin/Otália, ou mesmo de Curió/Marialva, a história envolve Miguel Charuto e Jesuíno Galo Doido, o velho sábio e o chefe de polícia, numa perseguição que vai resultar na morte deste último e na consolidação da ocupação legal do morro do Mata Gato. Longe do romantismo de Orfeu, a tragédia que se instala no morro não é de natureza individual, mas coletiva e motivada socialmente. Tudo acontece no terreno da luta contra o poder, sem a intermediação de forças espirituais, que assim mesmo interferiram em vários outros conflitos. A batalha pela posse da terra se dá no campo das necessidades humanas, afastada qualquer intervenção do divino, suplantando os exotismos de praxe.
A apropriação desta história de Jorge Amado por Camus está perfeitamente sintonizada com as circunstâncias históricas da expansão horizontal de Salvador na década de 1970, causada pelo desenvolvimento urbano e pela reformulação promovida pela implantação dos pólos industriais de Aratu e Camaçari. “Uma terra cara para gente barata”[7]. O tipo de gente que faz o drama de Jorge Amado e que pelas mãos de Marcel Camus é levada às telas.
Dona Flor vai ser adaptada pelo cinema americano em 1982 e vai perder todo o sotaque local, transformada numa peça urbana sem colorido e sem sensualidade[8]. O capital cultural representado pelas marcas identitárias locais ou regionais, pensadas como recurso imaginário, como reserva disponível[9], postas numa negociação social a soldo do capitalismo globalizado acelerado, vai permitir os mais variados modelos de apropriação, sobre os quais não se chegou a estabelecer um princípio comum de direitos, por se encontrarem todos no campo intangível da imaginação. Onde a criação reivindica o poder da quebra indiscriminada de limites. É isto que leva, por exemplo, o diretor Zalman King a misturar imagens da Bahia e do Rio de Janeiro em seu porno-soft Orquídea selvagem (EUA, 1990), alegando a busca de uma totalidade expressiva de sensualidade e exotismo, encontrada na mistura de tradições indígenas e afro-brasileiras sob a imposição do cristianismo, presente no Brasil.[10] Uma imagem verificada na dispersão entre o Rio e a Bahia, o que lhe sugeriu a consolidação dos tópicos expressivos de interesse numa só localidade. Vendo o filme, e pautados por nossa experiência, percebemos o bizarro do resultado dessa mistura, pois não são coincidentes os elementos culturais das duas cidades – ao menos aqueles apresentados no decorrer da narrativa.
Operando no campo das transações imobiliárias internacionais, duas americanas chegam ao Rio e se entregam à voracidade do sexo, motivadas pela sensualidade reinante, sob a tutela de um rico sedutor. A força da paisagem, da música, da dança e dos costumes liberais é o elemento que as impele à descoberta de sua sexualidade. Entretanto, é um molho baiano que dá condimento à trama, representado pela incorporação de uma iconografia de candomblé, típica e estilizada, um pastiche de rituais afro-brasileiros, uma tropicalização dos trajes no uso abusivo de motivos baianos, um repertório musical de fatura baiana, que se misturam com os traços tradicionais associados à permissividade dos trópicos: voyeurismo, travestismo fetichista, sexo livre. O filme condensa uma imagem fantasiosa de Brasil pelo acúmulo de seus muitos estereótipos e clichês.
A venezuelana Fina Torres optou por outra composição quando realizou Sabor da paixão[11], uma comédia romântica internacional passada entre Salvador e a californiana São Francisco, narrando as agruras de Isabella e Toninho. Graças às artimanhas de Iemanjá, o casal se separa e se reúne em torno da culinária e da música baiana. Metaforizada desde o começo pelo samba-exaltação Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, e embalada nas canções que o rapaz compõe para a moça, a narrativa vai valorizar explicitamente a gastronomia local. Já ele, Murilo Benício, é o típico malandro (contando com amigos como os iniciantes Wagner Moura e Lázaro Ramos), no melhor espírito do Vadinho de Jorge Amado. Ela, uma Penélope Cruz bastante sedutora, parte para os EUA quando descobre que ele a trai. Lá, ela vai buscar emprego e criar um programa de sucesso na televisão… sobre culinária brasileira.
A Bahia é o pano de fundo da situação amorosa e seu contraplano é a dificuldade do mercado americano em absorver a mão-de-obra latina, suplantadas as desconfianças étnicas. Mas nem o sonho americano vai resistir à potência das forças espirituais: aqui a rainha do mar vai se vingar do rapaz fazendo desaparecerem os peixes de suas águas. Lá, o incrível aroma das comidas de Isabella vai afetar a quase todos. Há um quê de surreal, um toque de realismo fantástico que embala a história, num hibridismo que convoca traços culturais bastante acentuados na visibilidade do subcontinente.
A cidade de Salvador é vista em formatação publicitária, os rituais de candomblé são espetacularizados, as receitas apimentadas sugerem um prazer inusitado e a transgressão sexual está presente na figura de Mônica, um transexual que tem com a protagonista um passado na Bahia. Ao trinômio exotismo, sensualidade e boa música (Caymmi, Sylvio Caldas, Toquinho e Vinícius, Nelson Cavaquinho, dona Ivone Lara, etc.), acrescenta-se a questão das migrações e se incorpora o universo do trabalho. Atualizações necessárias para se sobrepor à projeção utópica formulada por um dos personagens no texto do próprio filme: O Brasil é mais que um país, é uma sensação, um estado de espírito indescritível, indefinível. Uma definição que não esconde a escamoteação que faz do real histórico que o sustenta.
O mexicano Carlos Bolado vai retomar o filão dos universos místicos e combinar as crenças em Só Deus sabe, de 2006. O jovem Damián vai conhecer a brasileira Dolores e se apaixonar por ela, num filme cuja trama os faz circular por três países (Estados Unidos, México e Brasil) e por várias cidades, entre elas San Diego, Tijuana, São Paulo e Salvador.
Damián tem uma devoção forte pela Anima sola[12]e Dolores sente uma enorme atração pelo candomblé, atração que aumenta na medida em que vai descobrindo o envolvimento da família com as religiões afro-brasileiras. Isto a leva a Salvador (apresentada em magníficas sequências aéreas) e de lá a um terreiro, onde cumpre as obrigações deixadas por sua avó, recentemente falecida. Ela vai se entregar intensamente aos rituais, que vão desfazer os caminhos de sua infertilidade. Grávida, ela descobre que tem câncer e abre mão de sua vida pela da filha. Nos planos finais do filme, Damián e sua filha fazem oferenda a Iemanjá na baía de Todos os Santos.
Inseridos numa trama melodramática levada com alguma leveza, os clichês relacionados à Bahia determinam um modelo de percepção que considera de modo superficial a existência de uma realidade multifacetada e dinâmica, atendo-se a formas consagradas de leitura do mundo. Por outro lado, e como prova também da potência ativa das representações, o filme desconstrói o registro lingüístico habitual das obras que lidam com alteridades, admitindo a fala em sua dupla nacionalidade. Diferentemente do cinema hegemônico, Só Deus sabe executa um projeto original de manutenção das línguas originais de seus personagens, em relação dramática e com uso expressivo.
A Bahia no cinema de modelo industrial, pelos exemplos verificados, obedece às simplificações que visam tornar a informação de base horizontalmente reconhecida, com uma expressão universalmente aceitável. O que dá a dimensão da falta de originalidade e de profundidade nesses mergulhos em sociedades distintas e em culturas marcadas por traços singulares.
A Bahia, repositório de uma memória particular da vida brasileira, definida por condicionantes históricos e sociais precisos e de grande envergadura antropológica e cultural, ainda não pode ver projetada nas telas estrangeiras uma imagem à altura do seu fulgor.
Antonio Carlos (Tunico) Amancio (Bom Jardim, 1951) é professor da Universidade Federal Fluminense. Formado em cinema também pela UFF em 1974, mestre pela USP em 1990 com uma dissertação sobre a política de produção da EMBRAFILME nos anos 77/81 e doutor também pela USP em 1998 com uma tese sobre a representação do Brasil no cinema estrangeiro de ficção. Publicou os livros O Brasil dos gringos: imagens no cinema e Artes e manhas da EMBRAFILME: cinema estatal brasileiro em sua época de ouro
NOTAS
[1] CARELLI, Mário, THÉRY, Hervé, ZANTMAN, Alain. France-Brésil : bilan pour une relance. Paris : Editions Entente, 1987, p. 160-161.
[2] TACCA, Fernando Cury de. Imagens do Sagrado: Entre Paris Match e O Cruzeiro. Campinas, SP, Editora da Unicamp, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009, p. 87/90.
[3] Um projeto radical como o que vai ser realizado no Rio, anos depois, por Vinícius de Moraes e filmado por Marcel Camus.
[4] CARVALHO, Maria do Socorro Silva. Imagens de um tempo em movimento: cinema e cultura na Bahia nos anos JK (1956-1961). Salvador, EDUFBA, 1999, p.205
[5] Jornal do Brasil, sábado, 24 de outubro de 1959.
[6] Weit ist der weg (Longo é o caminho, 1960), de Wolfgang Schleif,
[7] http://www.inquice.ufba.br/02cristiane.html, consultado em 11/06/2011.
[8] Kiss Me Goodbye (Meu Adorável Fantasma, EUA, dir: Robert Mulligan), com roteiro baseado no livro de Jorge Amado, com ajuda de Bruno Barreto.
[9] Usando de modo meramente operacional e indicativo os complexos conceitos discutidos por George Yúdice em A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG, 2004.
[10] Conforme depoimento a Lucia Murat no seu filme Olhar estrangeiro, Taiga Filmes, 2006.
[11] Woman on top, EUA, 2000.
[12] Anima sola é a imagem de alguém em sofrimento no Purgatório à espera do Juízo final. Geralmente representa uma mulher e faz parte da tradição católica, espírita e também da santería e do vodú.
BIBLIOGRAFIA
CARELLI, Mário, THÉRY, Hervé, ZANTMAN, Alain. France-Brésil : bilan pour une relance. Paris : Editions Entente, 1987.
CARVALHO, Maria do Socorro Silva. Imagens de um tempo em movimento: cinema e cultura na Bahia nos anos JK (1956-1961). Salvador, EDUFBA, 1999.
TACCA, Fernando Cury de. Imagens do Sagrado: Entre Paris Match e O Cruzeiro. Campinas, SP, Editora da Unicamp, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.
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