Por Guilherme Sarmiento
Dentro do conjunto de filmes que compõem o legado de Glauber Rocha, nenhum deles possui tanta força espectral quanto A cruz na praça. Mesmo sendo uma obra para sempre perdida da cinematografia brasileira, materializa sombras tão compactas e tão consistentes que por segundos ilude os mais distraídos, induzindo-os a afirmações confusas ou incorretas.
Se acessarmos, por exemplo, o site mantido pela instituição responsável por manter e divulgar o acervo glauberiano – Tempo Glauber –, veremos o curta-metragem incluído na filmografia do diretor baiano (http://www.tempoglauber.com.br/f_cruz.html), que é, inclusive, creditado como montador de uma película considerada por muitos inacabada. Esta informação contraditória fornecida justamente por um órgão zeloso da fortuna artística do autor torna-se ainda mais emblemática quando comparada com os depoimentos dos amigos ou pesquisadores que o contataram em vida. Segundo Joel Pizzini, o copião chegou a ser projetado algumas vezes em sessões íntimas, presenciadas por poucos.
Para alguns amigos de Glauber, muitos deles residentes até hoje na Bahia, o filme constitui-se em um enigma ao redor do qual as informações se desencontram, situação muito próxima da experiência de quem tenta se aproximar da origem de uma lenda. Oscar Santana, por exemplo, surpreeendeu-se ao saber que A cruz na praça nunca fora concluído. Apesar de confessar nunca tê-lo assistido, garantiu como certa a finalização da obra, cujos negativos, junto com O pátio, permaneceram estocados na Iglu Filmes até o início de 1960. Roque Araújo, parceiro de Glauber, considerado por muitos seu “fiel escudeiro”, quando questionado sobre o filme, confessou não estar presente em nenhuma das sessões do copião, embora indicasse o Tempo Glauber como seu paradeiro final.[1]
Na web, as informações não são mais esclarecedoras. Ruy Gardnier, importante crítico da revista Contracampo, coloca A cruz na praça junto a uma lista “de filmes perdidos ou prestes a sê-lo”, como Paz e amor, de José do Patrocínio Filho, Favela de meus amores, de Humberto Mauro, Moleque Tião, de José Carlos Burle (http://www.contracampo.com.br/34/filmesperdidos.htm), sendo que o curta, segundo fontes seguras, nunca foi efetivamente montado ou finalizado, ou seja, nunca chegou a se concluir para ser considerado como “perdido”.
Estes ruídos, a princípio nem tão comprometedores, vão ganhando estridência no espaço virtual até construírem fugas cada vez mais elaboradas, consequência das incertezas geradas pelo vácuo de uma obra inacabada ou desaparecida. Quando se procura na Wikipédia informações sobre Luís Carlos Maciel (http://pt.wikipedia.org/wiki/Luiz_Carlos_Maciel) ,um dos protagonistas de A Cruz na praça, seu nome aparece citado como diretor estreante do filme e, numa inversão no mínimo inquietante, Glauber Rocha, como ator. Outros sites apontam ainda Rogério Duarte, liderança tropicalista e importante ilustrador baiano, como co-diretor da película (http://www.atarde.com.br/cultura/noticia.jsf?id=965943 ), multiplicando as versões sobre um filme que nunca deveria, de fato, existir, quanto mais suscitar questões de autoria.
Para reconstruir a história de uma obra invisível, entretanto, há uma fonte aparentemente segura. Diante das inconstâncias da memória e dos desdobramentos infinitos do espaço virtual, a presença física de um livro traz uma reconfortante materialidade a quem lida com o impalpável. Em 1959, o jovem Glauber Rocha participou de uma antologia literária chamada Panorama do conto baiano, organizada por Vasconcelos Maia e Nelson Araújo, com a história chamada A retreta na praça. Trata-se de uma reconhecida fonte inspiradora do curta-metragem A cruz na praça, segunda experiência cinematográfica do contista, realizado no mesmo ano da publicação.
Glauber Rocha então se dividia entre o desejo de se tornar escritor e o de se tornar cineasta. Ainda testava as várias possibilidades de seus dons. Publicar A retreta na praça, portanto, consistia num fim em si mesmo, sendo leviana qualquer afirmação que considere o trabalho como pretexto para futuros experimentos cinematográficos. Prova maior deste desejo pode ser confirmada ao folhearmos o livro e observarmos os outros escritores presentes na compilação. Dentre os autores já consagrados, constam os nomes de Jorge Amado, Adonias Filho e Santos Moraes. Mas Panorama do conto baiano foi, sobretudo, um importante veículo para a divulgação de jovens escritores, muito deles hoje canonizados, como João Ubaldo Ribeiro, na época buscando o impulso para sua entrada definitiva no mundo das letras.
Panorama do conto baiano é um livro irregular, abarcando visões inconciliáveis de duas gerações de literatos. Lendo o conto de Glauber Rocha, fica a estranha sensação de deslocamento produzido por um texto rompendo convenções e apontando procedimentos somente aceitos com naturalidade muitos anos depois. Sem dúvida, A retreta na praça dialoga mais com autores brasileiros contemporâneos do que com os regionalistas imediatamente anteriores, como, por exemplo, Jorge Amado, um dos selecionados para a publicação. Glauber desconstrói as bases ficcionais daquilo que entendemos hoje por baianidade, escrevendo um conto intimista e dissonante, cuja trama mínima narra o encontro improvável entre um homem e uma mulher no centro de uma praça, ao som desafinado de uma banda cansada, composta por negros desvalidos.
A princípio, tal temática esquivava-se às intenções dos compiladores, que almejavam uma literatura expressiva de uma espiritualidade moldada pelo meio, capaz de ilustrar as figuras de uma cidade típica como Salvador. Diante da quebra destas expectativas, tiveram de reavaliar os critérios. Segundo Vasconcelos Maia e Nelson de Araújo:
“Há um cunho de individualismo acentuado nos contos reunidos neste Panorama, certa recusa a normas gerais. Na maioria dos casos, cada autor parece ter escolhido obstinadamente o seu próprio caminho, nada obstante terem-se, por mais de uma vez, posto em posição comum quando o pediram os interesses culturais”.[2]
No que dizia respeito ao conto de Glauber, estavam diante de uma obra de vanguarda. Se compararmos os padrões figurativos presentes em A retreta na praça com os de seu filme de estréia, O pátio, veremos a busca obsessiva do autor por uma forma geométrica que abarcasse toda a estrutura narrativa, sustentando os elementos de dramaturgia numa construção rígida e inescapável, tal qual o destino. No curta experimental, percebemos a elaboração de um design articulado conjuntamente entre mise en scène, montagem e cenografia, ambos construídos sobre a figura onipresente de um tabuleiro de xadrez. No conto, a edição do texto, junto com a repetição exaustiva de palavras e situações, remete à circularidade de uma praça. Desde seu início já temos indicada a onipresença deste motivo que permeará todo o texto:
“A praça desce no centro da cidade como circular jardim. O peso de sua idade desde época em que de aquém-mar homens barbados desembarcaram e fixaram uma cruz. De então a praça nasceu no centro humilde da vila que crescia e crescendo por vários séculos é hoje uma densa paisagem de ladeira com três centos de igrejas abrigando as dores que saem rezadas de homens curvados”.[3]
Mais adiante, Glauber torna suas intenções mais evidentes, ao introduzir a personagem David no meio da praça, enfeitiçando os leitores com uma ladainha repetitiva, endossada pela melodia cada vez mais exasperante da retreta:
“Então David se desprega violentamente da parede e vai abrindo caminho entre as estátuas afastando uma das outras pelos ombros, elas não protestam, avançando para o centro da praça e aí a retreta muito lenta narra soldados deslizando sobre mortos sobre mortos sobre mortos sobre mortos o regente, sua crença em sua música, executa a linda melodia ao sopro dos metais”.[4]
Podemos vislumbrar procedimento parecido quando lemos a crítica de Clarival do Prado Valadares, uma das testemunhas do copião de A cruz na praça, que deixou um pequeno relato sobre este misterioso filme no Jornal do Brasil de 22 de agosto de 1959:
“Assim como no primeiro (“ O Pátio”), este filme não tem história, ou melhor, não tem roteiro discursivo. Surpreende um problema humano, expressa-o em vocábulos fílmicos e plásticos, até transferi-los para uma inequívoca simbolização. Glauber tomou as cenas do Cruzeiro de São Francisco, dos ornatos barrocos da nave, da escadaria da Igreja do Paço, das grades, das ruas e, sobretudo da cruz. De uma cariátide obteve o símbolo do Bem, de outra o do Mal. Abel e Caim, porventura. De uma a outra a objetiva vai e volta, em velocidade crescente, como um pêndulo, que se transfere para a ocorrência humana. Esta se processa no movimento circular das duas figuras em torno do cruzeiro, exaustivamente, e por fim da própria câmara que, girando, faz a cruz flutuar e andar como um andor”.[5]
Glauber procurou no filme descrever a circularidade de uma praça, mantendo dentro da adaptação a proposta construtivista inicialmente presente no conto. Mas os elementos cenográficos e formais mantidos no curta foram totalmente modificados em sua intenção no momento em que ele, ao passar para a narrativa cinematográfica, modifica substancialmente as características dos protagonistas e revisa a ideia central, o tema, de A retreta na praça. No conto, temos duas personagens, um homem e uma mulher, que se encaram sem nunca travar qualquer contato, sendo o círculo utilizado como elemento expressivo de uma incomunicabilidade exaustiva. Já no filme, as personagens são masculinas. Ao travar uma relação homossexual, provocam uma tragédia enredada pelos costumes, um arco tendo como centro o símbolo do catolicismo: a cruz.
Interessante percebermos a paulatina saída de Glauber de uma proposta meramente estética, construtivista, presente tanto no curta O pátio quanto no conto A retreta na praça, e a consecução de um olhar mais humanista, atento para realidades sociais adversas. Segundo Fred Souza Castro, poeta amigo de Glauber na época, o homossexualismo na Bahia na década de 1950 era condenado com violência, sendo comum a criação de falanges que saíam à noite para espancar e até matar homossexuais nas ruas de Salvador. Um dos pontos de encontro e flertes do grupo ficava justamente nas imediações da Cruz do Cruzeiro de São Francisco. Sensibilizado por esta condição marginal, o diretor, de forma corajosa e pioneira, resolveu focalizar este universo, sem com isto abrir mão de sua vocação experimental.
A cruz na praça foi rodado no Terreiro de Jesus e na escadaria da Igreja do Paço, mesmo local de O pagador de promessas, de Anselmo Duarte. Mostrava as perambulações de dois rapazes, interpretados por Luiz Carlos Maciel e Anatólio Oliveira, até a realização de um ato controverso: uma das personagens agarra o membro do outro, desencadeando uma série de imagens reprimidas e culminando com uma cena de castração em torno da cruz.[6] Segundo Glauber:
“Em cruz na praça, Maciel é perseguido por Anatólio girando em torno do Cruzeiro de San Francisco enquanto dentro da igreja imagens de anjos, santos e monstros barrocos se precipitam até a abstração. Maciel se liberta de Anatólio nas escadarias da Igreja de Nosso Senhor, onde Anselmo filmou O pagador e subindo o Pelourinho com a mão nos culhões continua girando em torno da cruz”.[7]
Diante de temática tão explosiva, envolvendo imagens católicas em um tema até hoje tabu dentro da igreja, compreende-se melhor porque A cruz na praça nunca foi oficialmente exibido, ou mesmo concluído. Mas, segundo o próprio Glauber, esta decisão deveu-se menos à censura do que à percepção íntima de que o curta não mais condizia com seus anseios estéticos e ideológicos. Realmente, levando-se em conta todas estas imagens de segunda mão, a temática homossexual não contemplava suas inquietações mais abrangentes com relação às questões envolvendo a sociedade brasileira na época. Em Barravento e Deus e o diabo na terra do sol, seus filmes seguintes, o embate primordial se dará para além do indivíduo e as personagens se configurarão como representantes de uma totalidade, tornando-se emblemas de um sistema entravado pela religiosidade e pela ignorância.
Guilherme Sarmiento é cineasta, Doutor em Literatura Brasileira e professor de Dramaturgia do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB. Realizou, junto com outros quatro diretores, o primeiro longa-metragem universitário, Conceição ou Autor Bom é Autor Morto, e foi um dos coordenadores do primeiro Festival Brasileiro de Cinema Universitário, realizado na UFF.
NOTAS
[1]Foram entrevistados para esta seção Oscar Santana, Roque Araújo, José Umberto, Fred Souza Castro, Rex Schindler, Cícero Bathomarco, André Setaro e Roberto Duarte. Luís Carlos Maciel e o Tempo Glauber foram contatados, mas não responderam aos e-mails.
[2]MAIA, Vasconcelos & ARAÚJO Nelson de (orgs). Panorama do conto baiano. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1959, pp. 9-10.
[6]Esta polêmica cena foi lembrada por todos os amigos de Glauber Rocha quando inquiridos sobre Cruz na praça. Alguns apontaram o desconforto dos atores em realizá-la, pois o diretor também só revelara todo o seu conteúdo erótico e transgressor na hora das filmagens. O descontentamento com as interpretações teria sido um dos motivos para que o curta ficasse inacabado.