UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE A COR
Por Emerson Dias
Diferente de muitas discussões e críticas sobre o filme Cidade Baixa, feitas tanto em páginas da internet como em festivais de cinema, esse artigo não se atém à análise do erotismo no cinema ou, tampouco, a refletir sobre a legitimidade moral das cenas de sexo. Nas linhas que seguem cabe apenas um estudo das cores e do seu significado, uma análise entre conteúdo e forma fílmica.
Segundo Kandinsky, “a cor é o toque, o olho, o martelo que faz vibrar a alma, o instrumento de mil cordas” [1]. Na pintura, foi largamente explorada com os modernistas. Van Gogh, com os seus girassóis carregados de sensações cromáticas, transformou flores em cargas solares. Com suas tonalidades intensas e pinceladas “selvagens”, Paul Gauguin reivindicou o Fauvismo. Até mesmo na música há estudos sobre a percepção das cores nas notas musicais[2]. No cinema, a cor já se tornou a marca registrada de alguns autores, como o cineasta Pedro Almodóvar. Nesse texto, iremos investigar como o diretor Sergio Machado “pinta com luz” o filme Cidade Baixa.
Se ajustarmos a nossa retina e prestarmos atenção para a composição plástica dos planos, perceberemos que, nitidamente, Sérgio Machado trabalha com quatro cores: vermelho, azul, branco e preto.
O vermelho e o azul já aparecem logo no primeiro plano do filme. Inicialmente, duas “Karinas” preenchem todo o quadro – ela como moldura e o seu reflexo no espelho ocupando o centro, no fundo azul. Segundos depois, Karina se afasta do espelho e descobrimos que está vestida com uma blusa vermelha. As cores reaparecem no segundo plano da cena, e nele descobrimos a dimensão do espaço do quarto. Na parede, o azul é abundante e seria quase total se não fossem os pôsteres. Karina usa uma saia azul e uma blusa vermelha. Carrega em suas costas uma mochila azul, enquanto arruma a sua sacola de viagem, que curiosamente tem as duas cores.
Antes da cena inicial do filme, no plano dos créditos de abertura, as cores já aparecem de maneira bem tímida. Nas letras do crédito, que surgem como tremular de um fogo, percebemos a presença delas discretamente. Dentre elas, o azul é a que aparece menos, mas, com um olhar atento, podemos notar um tom de azul escuro paralelo à cor preta.
Vermelho, azul, preto e branco são reincidentes em todo o filme e, além de compor plasticamente as imagens, estão presentes nos lugares mais curiosos de figurino e cenário. Na sequência da rinha de galos, as quatro cores estão presentes em quase todos os planos. A mochila que Naldinho usa para assaltar a farmácia é da cor vermelha e azul . O palco da boate em que as garotas de programa trabalham é azul e vermelho. O ringue, também . A preocupação com as cores foi tamanha que até mesmo o quadro das baianas de acarajé, pendurado no quarto em que Karina atende aos clientes, é composto pelas quatro cores.
Algumas perguntas ecoam ao fim dessas observações: Qual o motivo da escolha de tais cores? Elas regem um leitmotiv plástico ou simplesmente são cores que compõe uma boa harmonia dentro da obra?
As cores e o seu significado
Sobre o receptor da imagem, a cor exerce três ações: a de impressionar, a de expressar e a de construir. A cor é vista, impressiona a nossa retina, trabalha diretamente no campo óptico-sensível. É sentida, nos expressa emoções, provoca diretamente o nosso campo psíquico. E é construtiva, porque, tendo um significado próprio, carrega um símbolo e a capacidade de construir uma linguagem que comunique uma ideia, de acordo com o ponto de vista intelectual-simbólico ou cultural. Nessa investigação trabalharemos dentro do campo simbólico estrutural.
As cores produzem reações subjetivas e particulares em cada espectador, fazendo parte de uma realidade sensorial, atuando sobre as nossas emoções. Por isso, elas provocam sensações polarizadas, ora positivas, ora negativas – o que torna a investigação ainda mais instigante. A cor branca, que deriva da palavra germânica blank, que significa brilhante, está sempre associada à luz. Se para o Ocidente simboliza a vida e o bem, para o Oriente representa o nada, o fim e a morte. O preto, como o antagonista do branco, representa a ausência de luz, associado geralmente às trevas, à destruição e ao mal. Entretanto, o preto em determinadas circunstâncias é símbolo de sofisticação e elegância. O vermelho é a cor do amor, do erotismo, da atração e da sedução. O que dizer então dos lábios vermelhos? Brilham, aquecem, iluminam como o sol. Entretanto, não deixa de ser agressividade, violência, barbarismo e revolta. O que dizer da cor do sangue? O céu sem as nuvens brancas, o mar e suas águas tranquilas, simplesmente o azul. A cor do divino, do eterno, do infinito e do sonho, isso se notarmos que o que é azul parece estar longe: as montanhas longínquas, o céu, o ar e o horizonte.
Poderíamos construir longos parágrafos citando os diferentes significados das cores em cada cultura ou até mesmo citar alguns dos pensamentos de teóricos que estudaram o fenômeno da cor, porém, pouco saberíamos sobre o real significado do vermelho, do azul, do preto e do branco na obra de Sérgio Machado. O problema aqui não é criar um catálogo de símbolos de cores, mas sim analisar como as cores relacionam-se dentro da estrutura fílmica. Para isso, analisaremos cenas do filme em que as cores estão mais presentes, estabelecendo uma relação entre a forma e o conteúdo.
A cor como signo psicológico.
Uma boa cena para começarmos a aprofundar a nossa investigação é a do momento em que Karina vai conhecer a nova casa de Naldinho. A cena é curta, mas bastante significativa quanto ao uso da cor.
Karina entra na casa e Naldinho lhe apresenta o quarto que ele alugou – até então nenhuma das cores estão presentes. Enquanto mostra as mobílias da casa, Naldinho fala – Aqui tudo Doismundo me emprestou. Depois eu pago a ele. A janela do quarto tem um tom de vermelho, assim como o sofá. Naldinho se senta na cama e fala – vem cá rei, não paga nada pra sentar não – Karina se senta e ele continua – Acho massa esse cama, brancona. Os dois se deitam e a imagem que temos é a que está abaixo: os dois de ponta cabeças sobre uma cama com leves tons de vermelho e azul.
A cama de fato não é tão “brancona” quanto Naldinho afirma. Parece que há um conflito entre a banda imagética e o que é dito enquanto diegése. Os dois personagens de cabeça para baixo talvez já sejam um motivo cinematográfico para indicar a falsa sensação de união e estabilidade do casal. Abre aqui então um precedente para indagarmos se as cores exercem uma função psicológica na narrativa. Talvez Naldinho acredite que o seu relacionamento esteja tranquilo e sereno, por isso vê a cor branca na cama, entretanto as imagens nos dizem outra coisa: a cama é vermelha e azul. Provavelmente essa contradição deve ter sido um motivo cinematográfico, afinal de contas não seria tão difícil encontrar um colchão realmente branco para compor o cenário.
Novamente outra pergunta: por que ele não enxerga as cores azul e vermelho? E por que, necessariamente, as cores azuis e vermelhas? Será que o uso de tais cores tem realmente um motivo psicológico dentro da narrativa?
A cor como signo cultural
Outra cena que talvez indique um motivo cinematográfico é a que Deco vai encontrar Doismundo. O local é a típica e popular feira de São Joaquim. A câmera segue o personagem na sua ida até Doismundo. Em montagem alternada, é mostrado o cotidiano das pessoas na feira.
No primeiro plano dessa sequência alternada são apresentados três homens negros, e um deles, em foco, com um cigarro na boca – em um tom de branco que chega a ser antinatural. Corta. A câmera enquadra um tabuleiro de dama com peças vermelhas e azuis. Movimento de câmera para cima e agora temos o enquadramento de um homem negro, vestido de branco e com um cigarro branco na boca . A câmera segue o Deco, e em uma alternada é enquadrado um homem negro com um colar intensamente branco .
Novamente as quatro cores reaparecem, agora num contexto que não parece se encaixar num viés psicológico, mas sim cultural. Os planos são quase que documentais: jogo de damas na feira, homem fumando cigarros, som de feirantes anunciando os seus produtos, e uma reincidente câmera na mão.
A questão aqui não é o caráter documental do filme, mas sim por que os enquadramentos estão focados diretamente nas cores. Investiguemos.
Vemos então as cores vermelho e azul em forma de peças do tabuleiro de dama. Como observou Eisenstein[3], a cor vermelha (cor favorita de Marx e Zola) é associada à revolução. Notou também que a cor azul está diretamente ligada à nobreza e à elite, daí a expressão sangue azul. O jogo de dama tem como verbosa captura do adversário, o combate, o duelo. Seria então as cores azul e vermelha motivos cinematográficos para a representação de conflitos de classe?
Quanto às cores preta e branca, vemo-las nitidamente representada por homens negros na feira utilizando elementos de figuração (cigarro, camisa e colar) da cor branca. Desde o inicio do filme percebemos ideias racistas dentro dos diálogos, como no final dessa cena, quando Doismundo fala para Deco: “Ó paí, urubuzinho tirando onda”. Voltando o filme um pouco para trás, na cena da briga de galos, o personagem que ganhou a aposta fala para Deco – Não gosto que preto me encare – e, logo depois, momentos antes da facada – Urubu filha da puta. Coincidência ou não, os galos são preto e branco. Seria então as cores preta e branca uma representação dos conflitos raciais?
Voltaremos a essas questões posteriormente.
Eisenstein e Cidade Baixa
Para Eisenstein a montagem é o poder criativo do cinema, capaz de relacionar esses elementos neutros (escalas, distância focal, massa, profundidade de campo, cenário, iluminação…) em um conjunto cinemático vivo; a montagem é o organismo fundamental para a significação dos planos.
Em seu ensaio sobre a cor, Eisenstein observa que uma determinada cor não pode ter um significado próprio – como o amarelo não representa traição, ou vermelho, a revolução. O significado da cor, e também de outros elementos, para Eisenstein, surge de uma interrelação de elementos neutros, ou seja: a cor azul só adquire significado quando aparece num sistema de relações envolvendo outras cores ou outros códigos.
Fizemos até então estudos mais associados ao nível do plano e da estrutura narrativa. Faremos agora uma investigação da cor no nível da montagem, e para isso utilizaremos a cena da briga de galos.
A cena começa com um homem vestido de azul – que olha para a direita do quadro – gritando a sua aposta . No plano seguinte, outro apostador – dessa vez olhando para a esquerda do quadro – vestido de vermelho. Chegam ao local os três protagonistas , enquanto a aposta continua . Em uma arena vermelha, estão duelando um galo preto e um galo branco . No plano 15, estão no centro os amigos Deco e Naldinho. Deco fala – Esse galo branco é miserável. Pouco depois, Naldinho grita – Bora meu galo!
É utilizado aqui, claramente, o fenômeno que Eisenstein chamou de montagem de atrações. Quando os dois planos são justapostos – de forma que os tais elementos neutros se relacionem – cria-se a cognição de um terceiro significado. Isso acontece da justaposição do plano 14 com o 15, apropriando-se do elemento da cor. Os dois elementos centrais de ambos os planos têm a mesma cor, criando assim uma comparação. É o anúncio do futuro conflito entre os dois amigos. Para completar a analogia, o plano posterior é um plano detalhe da briga entre os dois galos, criando novamente o efeito teorizado por Eisenstein.
Conclusão?
Mas afinal qual o sentido das cores dentro do filme? Termino essa investigação com a pergunta sem uma resposta concreta. Não temos argumentos suficientes para sustentar que as cores azul e vermelha representam os conflitos sociais e que as cores preta e branca representem os conflitos raciais, até mesmo porque isso não é algo reincidente e, em vários momentos, vemos as cores associadas mais aos conflitos psicológicos que culturais. Outro tipo de análise que poderia ter sido feita – quem sabe por um profissional de estudos culturais – seria por um olhar da antiga Bahia. No filme, percebemos que o “vapor de cachoeira” ainda navega. Devemos lembrar que a cor da bandeira da Bahia é branca, azul e vermelha, quem sabe não se trata de uma homenagem?
Mas será mesmo que tais cores têm uma função simbólica? Elas poderiam ter sido escolhidas pela direção de arte por uma opção puramente expressiva, dialogando com o caráter harmônico das cores ao invés do simbólico.
Em meio a tantas interrogações, e a esse emaranhado de significados, chego ao fim desse artigo com uma frase que talvez conforte a frustrada investigação:
Se nos perguntarem: “Que significam as palavras vermelho, azul, preto, branco, podemos bem entendido, mostrar imediatamente coisas que têm essas cores. Mas a nossa capacidade de explicar o significado dessas palavras não vai além disso.
Ludwig Wittgenstein.
Emerson Dias é estudante do terceiro período do curso de cinema da UFRB.
NOTAS
¹FARINA, Modesto, PEREZ, Clotilde e BASTOS, Dorinho. Psicodinâmica das cores em comunicação. São Paulo: Editora Blücher. 2006
[2] Ver o capítulo A sincronização dos sentidos em O sentido do filme, de Sergei Eisenstein.
[3] Ver o capítulo. A cor e sua significação em O sentido do filme.
BIBLIOGRAFIA
ANDREW, J. Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
AUMONT, Jacques. MARIE, Michel. Dicionário Teórico de Cinema. Campinas, SP: Papirus Editora Papirus, 1994.
____________________________ A Estética do Filme. Campinas, SP: Papirus Editora Papirus, 1994.
EISENSTEIN, Sergei. O Sentido do Filme. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2002.
FARINA, Modesto, PEREZ, Clotilde e BASTOS, Dorinho. Psicodinâmica das cores em comunicação. São Paulo: Editora Blücher. 2006
MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo, Editora Cultrix. 6ª edição, 1992.
VANOYE, Francis e GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas, SP: Papirus Editora Papirus, 1994.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Anotações sobre as cores. Lisboa: Edições 70, 1980.