O QUE HÁ ENTRE SUPEROUTRO E EU ME LEMBRO

 

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Por Marcelo Matos

 

Este texto é a reescritura de um anterior intitulado Entre “Eu Me lembro” e “SuperOutro”: um ensaio sobre a imobilidade, que escrevi em 2008, no afã do 1° Concurso de Crítica Cinematográfica Walter da Silveira da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Mesmo tendo ganho o primeiro lugar, não fiquei satisfeito com o texto. Apenas um ano depois, numa conversa com o próprio Edgar Navarro, o meu incômodo virou consciência: a primeira crítica que escrevi tinha me soado arrogante e pedante. Escrevi sobre os filmes como se fosse algo exterior a mim. Mas como poderia fazê-lo se foram dois filmes que muito me marcaram? Foi então que vi o equívoco: a crítica deveria ter sido escrita em primeira pessoa. A única maneira de tratar Eu Me Lembro e SuperOutro em toda a sua potencialidade estava em deslocar o sentido da crítica para o sentido da clínica. Não mais a escrita que visa julgar os elementos fílmicos, e sim aquela que leva o escritor a descrever algo, até então desconhecido, graças ao contato com estes filmes.

Quando penso em Eu me lembro, é quase impossível deixar de me remeter a SuperOutro, não apenas por uma questão de nostalgia, mas – sobretudo – por uma questão epistemológica, já que existe uma reverberação de signos entre um e outro.

Ao assistir Eu me lembro, na sua esperada pré-estréia no Multiplex do Aeroclube em Salvador, vi desfilar na minha frente o memorial de um homem que decidiu se tornar cineasta. Na primeira parte, vi o mundo pelo olhar de Guiga, uma criança que vai descobrindo a vida, a sexualidade, a morte de Deus, as hipocrisias da família pequeno-burguesa… As sequências iam sendo costuradas por uma voz-off, que dava sentido às passagens de uma para outra. No meu entender, esta foi a parte mais singela e mais bem resolvida do filme. O olhar infantil me fez entrar em seu mundo e vislumbrar um Brasil preconceituoso, machista, racista e hipócrita. Durante esta parte do filme identifiquei-me facilmente com o personagem principal.

Na segunda parte, os graves problemas que o filme apresenta insistiam em me afastar da narrativa. O Guiga jovem pareceu-me ter perdido a força que o Guiga infante trazia. Se na primeira parte a voz-off me soava macia e conseguia se integrar ao filme pela ingenuidade infantil, na segunda parte me pareceu perder esta característica e, em muitas vezes, me irritava profundamente. O personagem principal deixou de me convencer, tinha a sensação de que o filme não ia conseguir me levar a seu fim, presenciava a arte e a maquiagem irem se desfazendo, ficando cada vez mais grotescas na medida em que o filme aproximava-se do final. Ahhh… aquele bigode torto do noivo na cena do casamento da irmã de Guiga soou como a mola do sofá que acabara de pular para fora. À medida que o filme passava, eu torcia para que não desmoronasse. E o filme ia, aos trancos e barrancos, numa vontade de ser bom cinema. E a cada cena, eu vibrava: o filme balançava, mas não caía. Talvez por conta da sinceridade das imagens saídas das entranhas da memória de Edgar, e assim, acabaram por atualizar o espírito de uma geração sessentista. Uma geração que eu tenho um profundo carinho e agradecimento.

Ao fim da fita, desce-me do olho uma lágrima provocada por uma adorável decepção. Hoje, tenho a impressão de que Eu me lembro me ensinou a ver a beleza da imperfeição.

No entanto, Eu me lembro é uma obra que se diferencia da média dos filmes brasileiros da época por sua construção dramática, já que o personagem não tem um ponto de vista definido sobre a sociedade brasileira. Em relação a este tema, Ismail Xavier, numa entrevista à Folha de São Paulo em 03/02/2007, dividiu os filmes realizados na retomada do cinema brasileiro em três blocos a partir dos seguintes tipos de personagens: o pobre pragmático que ascende na vida, o sujeito da classe média ressentida e o sertanejo-pop pernambucano contaminado de signos do moderno. Eu Me Lembro pareceu-me fugir desta classificação, mostrando-se como uma obra rara no cinema brasileiro, um filme de memórias, onde a motivação principal do personagem é narrar a si mesmo.

Sabemos das dificuldades de produção que o filme atravessou. São estas dificuldades que faz de Eu me lembro um quase-fracasso de uma terra, a Bahia, 18 anos paralisada sem único longa-metragem (falta quebrada por Três histórias da Bahia, em 2001).

Para nós, baianos, Eu me lembro é um filme de transição, é uma fita que abre uma gama de possibilidades e mostra a potência da Bahia para fazer cinema. Potência solapada e reprimida durante toda década de 1990 e que parece querer explodir em Eu me lembro. Talvez por isso o filme mais intenciona – ver a quantidade de movimentos com a grua – do que realiza. Espírito completamente diferente de SuperOutro, onde o cineasta consegue atualizar toda a sua potência.

Os dois filmes (SuperOutro e Eu me lembro) foram realizados em momentos distintos do Cinema Baiano. Um, nos anos 1980, onde havia uma coletividade potente, e o outro no início do século XXI, onde estes laços de construção estavam completamente frágeis. Se um era a potência do cinema em ato, o outro seria a potência de um cinema ainda por vir. Valeria a pena pesquisar historicamente este hiato entre estes dois filmes de Edgar Navarro, para saber o que aconteceu e o que acontece com o nosso cinema.

Esta diferença de natureza entre as épocas, me parece, reverbera nos dois filmes de Navarro. Alguns signos parecem contrastar ponto a ponto. Se Eu me lembro é um filme essencialmente retrospectivo, com suas vinhetas e jingles de época, Superoutro é uma narrativa que se desenrola essencialmente no presente. O personagem é, acima de tudo, imanência: “acorda humanidade!”. Não é muito difícil ver neste média-metragem a vontade de potência do super-homem nietzschiano.

Vejo em SuperOutro um filme de aventura, uma espécie de Dom Quixote sem Sancho Pança, que veste a camisa do Esporte Clube Bahia e vaga pela cidade de Salvador. Ao mesmo tempo em que nos lembra o Cavaleiro da Triste Figura, de Cervantes, nos lembra também o Zaratustra de Nietzsche: aquele que desce dos montes, ou aquele que volta da loucura, a fim de mostrar outro modo de ser aos homens.

Se Eu me lembro me soa como um filme auto-reflexivo, pois é a maneira como alguém se tornou aquilo que é, SuperOutro me parece ser a exteriorização disto. Não há nada a ser avaliado por Superoutro, o personagem simplesmente age. Ele não tem a medida das consequências.

À imanência de SuperOutro, contraponho a transcendência de Eu me Lembro. Se no primeiro o personagem fala por si, no segundo o narrador só consegue dar sentido à narrativa através da voz-off. Ele não está mais dentro do personagem, como no filme anterior, e sim acima dele. A voz-off transcende da consciência do sujeito pensante (o cogito cartesiano), que sobrecodifica o passado, e também as imagens, durante toda a película. Isto acontece até nos momentos em que ela se cala e os personagens entram em cena, pois não esquecemos que ali é uma memória consciente, ou uma memória voluntária do narrador, como preferiria dizer Marcel Proust.

Um mesmo signo, por exemplo, o pulo do Elevador Lacerda, marca bem as duas margens onde se localizam os dois filmes. Em Eu me lembro, Guiga é humilhado pelo pai: “Por que você não se mata menino? Se joga do elevador Lacerda”, diz. Se aqui o pulo vem de uma causa externa, de uma potência de vontade de destruir o outro, em SuperOutro o mesmo signo aparece a partir de uma potência interna de um homem que tresvalorou todos os valores e “realmente” pulou do Elevador Lacerda para voar e se elevar sobre toda Salvador. Não há a queda em um abismo, e sim um vôo sobre a fissura do mundo como vontade de vida.

Eu me Lembro é um romance de formação, é um relato sobre si mesmo, é a maneira pela qual alguém se torna o que é. Se SuperOutro é o Assim falou Zaratustra, Eu me lembro é o Ecce homo de Edgar Navarro.

Este encontro entre os dois filmes me faz pensar em Eu me lembro como sendo um filme de paralisia. Paralisia da própria memória, que deve reter a ação do corpo para nos lançar no passado, mas também a paralisia da produção cinematográfica baiana durante 18 anos. Não é esta imobilidade que parece perdurar durante todo o filme?

As primeiras imagens P&B, retiradas de acervos pessoais de algumas famílias baianas tradicionais, são bem significativas. Uma em particular me chamou a atenção: uma negra põe uma maçã na cabeça, um rapaz branco com uma espingarda posiciona-se. Ela fica ali paralisada, imobilizada, esperando o branco que mira e, por fim, acerta a fruta. A negra se abaixa, pega a maçã do chão, sorrindo para a câmera, mostrando o furo da bala. Imagens de um cotidiano anódino, mas carregadas de sentido histórico e de sentido, também, para o próprio filme.

As últimas imagens me apontaram algo parecido. Depois de tomar um ácido lisérgico, Guiga fica imóvel, recostado numa árvore e vê desfilar na sua frente uma legião de memórias. Porém, no último plano do filme, ele vê o próprio Navarro desfazer a paralisia numa espécie de ritual: a equipe do filme gira de mãos dadas numa roda e a grua – instrumento de trabalho usado durante todo o filme – aparece. Plano curioso, pois, ao mesmo tempo em que é o presente do diretor, também o futuro do personagem. Mais ainda: é o futuro do cinema na Bahia. A partir de Eu me lembro, podemos dizer que, finalmente, saímos da imobilidade.

Que o cinema baiano seja baiano, que cinema baiano seja cinema.

Marcelo Matos é educador, pesquisador e cineasta. Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia, roteirizou o game Kirimurê e produziu o documentário Álbum de família. Atualmente trabalha no projeto Lanterninha, exibindo filmes nacionais e criando cineclubes nas escolas públicas.

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