Por Guilherme Sarmiento
Com Melancolia, Lars von Trier parece concluir sua pequena saga escatológica iniciada com Anticristo, que, na bíblia, segundo o apocalipse, é o anunciante do fim dos tempos. Difícil será recompor a série numa trilogia, pois, o que vem após o fim, senão a ressurreição da carne e a vinda regeneradora do messias? Imagens, a princípio, em desacordo com o materialismo extremo do cineasta dinamarquês, mais interessado, hoje, em filmar as aventuras sexuais de uma ninfomaníaca. O certo é que suas duas últimas obras mergulham o mundo contemporâneo em trevas, sufocando o restante das luzes pós-industriais numa atmosfera pagã mais próxima do que hoje se denomina Idade Média. Se em Anticristo vemos a psicanálise dobrar-se aos ritos de bruxaria, numa fábula onde a natureza anima-se pelas mãos onipresentes de satã, em Melancolia a humanidade se vê obrigada a encarar a dissolução de sua própria existência sem o refrigério divino. Ambos os temas parecem transcritos de um bestialógico do baixo medievo, já em trânsito para o Renascimento, dando substância ao estranhamento do homem diante do mal e da amplidão do universo.
Isto fica bastante claro no momento em que se buscam as origens da melancolia, uma das primeiras enfermidades da alma catalogadas pela medicina ocidental. Desde Hipócrates, na Grécia antiga, já se diagnosticavam os abatimentos causados pela regência de Saturno sobre os mais sensíveis, forçando o organismo a produzir o caldo sombrio que lhe encheria de angústias vãs. Na virada da Idade Média para a época moderna, o melancólico ganhou motivos renovados para produzir bile negra e tóxica, capaz de enfraquecer seus nervos, empalidecer sua pele e jogá-lo no desespero de um mundo em dissolução. Após Copérnico retirar a terra do centro do universo, redimensionando o vazio vertiginoso da palavra infinito, o europeu viu-se diante de um mundo cujas bases divinas, em sua serena graça vingativa, deu lugar à execução fria e calculada da ciência. Von Trier compõe imagens capazes de sugerir o quanto o tempo presente ressente-se ainda deste período enigmático, afirmando o pesadelo de uma idade das trevas revivida – o eterno retorno ao obscurantismo.
Um dos elementos mais evidentes desta construção reside nas opções cenográficas e estilísticas de Melancolia. Seu prólogo apresenta-se como uma alegoria fantástica, bizarra, dos momentos chaves do filme, introduzindo a narrativa através da elaboração cênica de quadros belos e inquietantes. Sua atmosfera lembra o terror diante da peste e do fim dos tempos realizados por pintores excêntricos como Pieter Bruegel, que relataram com sua arte a perplexidade do homem do século XVI diante dos cataclismos naturais. (Algo parecido foi notado por mim na elaboração visual de Thor, numa outra crítica realizada aqui). Aliás, livros com ilustrações do pintor renascentista são abertos durante o filme, evidenciando as intenções do diretor em atualizar este imaginário herético e tenebroso.
Relações mais óbvias podem ser encontradas no ambiente escolhido para a realização dos dois capítulos de Melancolia. Todo o filme se passa nos interiores e nos jardins de um castelo. Ali, forçados ao isolamento, as personagens espelham em sociedade os princípios de dissolução intuídos na observação das estrelas. Interessante como von Trier trabalha a relação micro e macrocosmos no filme, abrindo uma via entre as emoções femininas, suas mais íntimas angústias, e a trajetória dos astros no firmamento. Na obra do diretor dinamarquês, as mulheres, ao tempo que experimentam a graça da inocência cega, são as mais aptas a denominar o mal – como se a capacidade de engendrar a vida tornasse-as, igualmente, capazes de conter o embrião de sua própria ruína.
Pois é assim que se dá o movimento de emergência da melancolia: de dentro para fora, num primeiro momento, como fatores psicológicos extremos. Ela nasce como uma intuição que aos poucos corrompe o sentido de felicidade, tragando a vida da protagonista, Justine, interpretada por Kirsten Dunst, a partir de um pequeno nódulo que cresce até consumir tudo a sua volta. Depois, num movimento inverso, na segunda parte, o sentimento corporifica-se na imagem de um planeta homônimo. Vemos a dissolução ser uma consciência sugerida por forças externas, grandiosas, que se impõem inteiras ao pensamento de Claire, Charlotte Gainsbourg, irmã de Justine, cuja vida até então transcorria sem grandes sobressaltos. Nas duas partes prevalece uma rigorosa construção dramática, que expande as ações e o caráter das personagens até tocá-los nesta substância vazia, oca, além da qual nada existe.
Independentemente da forma com que a melancolia, no filme, se presentifica, o desespero e o conseqüente abatimento são os efeitos imediatos de sua ação sorrateira e avassaladora. Num mundo sem Deus, onde os homens se situam como seres solitários, apartados da natureza, resta apenas a serenidade de um fim inevitável. O silêncio dos créditos não apaga ainda o choque das partículas desprendidas pelo último impacto e se fica, estranhamente, com a impressão de um espetáculo religioso ao se sair da sala escura. De forma violenta, o diretor religa o homem com as esferas, devolvendo às trevas aquilo que lhe pertence de direito, realizando, por vias pessimistas, o ideal de toda transcendência.
Sarmiento, seu texto dá uma força poética ao filme muito incrível. Porém, acho o Von trier totalmente um farsante nessa sua última empreitada. Farsante, pois, o longa não passa de uma cópia barata e mal copiada do último filme de Andrei Tarkovsky ” O Sacrifício” (1986). No filme do Tarkovsky, você é capaz de sentir uma força poética incrível pela maneira da qual o diretor utilizou para proclamar o fim do mundo e o desespero que isso causa nas pessoas.
Se o fim em Von Trier leva os personagens ao vazio, em Tarkovsky leva a loucura e irracionalidade.
Assista ao filme Tarkovsky que você reverá seu conceito sobre melancolia.
Simplesmente, “O sacrifício”, de Tarkovsky, foi o filme que me fez pensar em fazer
cinema um dia. Mas acho difícil compará-lo com “Melancolia”. Talvez “Stalker” tenha mais a ver,
ou até mesmo “Solaris”, pois são filmes que lidam mais diretamente com a questão
do fim dos tempos. Mas este tema hoje é muito mais “realista”, muito mais emergencial, do na na época de
Tarkovsky.