BOI ARUÁ

O ENCANTO POR PRIMEIRO

 

Boi-Arua

Por Ana Paula Nunes

“Você não pega esse boi, esse boi você não pega”. O verso repetido em Boi Aruá traduz a dificuldade de se enredar essa animação, em poucas palavras, na armadilha da racionalização. Trata-se de um filme cuidadosamente trabalhado para priorizar o sensorial (especialmente o visual), a beleza e a força da simplicidade do homem sertanejo.

No entanto, para se alcançar a simplicidade da cultura sertaneja é preciso saber ver as sutilezas das linguagens e expressões desse povo, o sertão é simples e é complexo. Chico Liberato, o diretor, conseguiu, juntamente com sua equipe, desvelar nas suas imagens e sons a tessitura dessas relações socioculturais, conquistando um prêmio da Unesco.

Além da importância por sua contribuição estética e cultural, o filme foi um marco no fragilizado mercado cinematográfico brasileiro (especialmente baiano) dos anos 80, por seu caráter de desbravamento de um terreno inóspito. Boi Aruá, que levou dois anos de produção, contando com 25 mil desenhos e cerca de 16 pessoas na equipe (todas sem experiência em animação), é o primeiro desenho animado nordestino e baiano de média e longa metragem. Exibido pela primeira vez em 1983, o filme ficou vinte anos longe do público, até que Liberato conseguisse montar a sua versão (diferente da primeira, lançada pela Embrafilme). Hoje, está à disposição em DVD, para seguir seu caminho de filme encantado, enfeitiçando todos e todas com as práticas culturais do sertão nordestino.

A história do boi encantado e mandingueiro que não se deixa apanhar é contada através de uma mescla de linguagens – literatura de cordel, arte visual, música -, em uma obra audiovisual que carrega em si conceitos tão caros à teoria cinematográfica, como obra híbrida, repleta de intertextualidade na sua construção. Mas certamente Liberato preferiria ter sua obra interpretada pelo prisma da tradição de expressão popular, que na sua concepção secular conjuga música, dança, poesia, artesanato como um único processo que articula mitos e ritos que organizam a vida cotidiana.

A narrativa também é fruto de uma rica mistura, inspirada no livro infantil “Boi Aruá”, de Luís Jardim, e na literatura de cordel, que já versou sobre “boi encantado”, “boi mandingueiro” e “cavalo misterioso”. O herói da história é Tibúrcio, fazendeiro severo e orgulhoso, que assume o aforismo “Eu por primeiro, os amigos por derradeiro” como seu lema, pregado na parede de sua casa. Como em qualquer narrativa de caráter mítico, o herói precisa passar por uma difícil jornada de transformação, no caso do arrogante Tibúrcio, por sete vezes este vê seu poderio desafiado por Boi Aruá. O boi, qualificado de “aruá” (do tupi “arruá”, que significa selvagem, bravio), é uma espécie de entidade, uma força misteriosa e fantástica que “chama” Tibúrcio à aventura. Ao longo da jornada, o velho embate homem versus natureza cede lugar à integração homem-natureza, e o aforismo se converte em “Os amigos por primeiro, eu por derradeiro”.

A transformação de Tibúrcio é subjetiva e assim é apresentada para o espectador, a obra explora ao máximo o potencial da animação para trabalhar com o imaginário, com a emoção, o sensível. O filme exibe uma explosão de cores sobre traços simples, característicos da xilogravura, combinados com grafismos, imagens simbólicas; rompe com a identificação utilitária das coisas remetendo ao surrealismo; trabalha com fragmentações sem volume que lembram o cubismo; uma verdadeira antropofagia pictórica, criando assim um estilo autônomo e singular à moda de Oswald de Andrade. O filme começa a apresentação dos personagens sobre uma forma de brasão, divide a tela em diferentes planos, direciona o olhar do espectador através das cores e sombras, produz montagem interna à própria imagem, brinca com os enquadramentos.

A construção do espaço é feita de forma antinaturalista, não busca a ilusão da tridimensionalidade através da perspectiva, tampouco se preocupa com a continuidade espacial, a construção homogênea do espaço diegético, ou com o som ambiente. Basta ver a representação da festa comemorativa do sumiço do boi, as cabeças soltas no espaço.

A construção do tempo também não é clássica, a narrativa não segue a lógica linear da causa e efeito, ação e reação, mas sim a lógica de impressões temporais, um tempo que ora se estende, ora se comprime, com elipses, fusões e sobreposições que ligam o espectador ao estado de encantamento. Como a cena que Tibúrcio volta a se preparar para capturar o Boi Aruá, veste-se novamente com a indumentária de vaqueiro com a ajuda de sua esposa, e vemos seu reflexo no espelho, que não corresponde a sua imagem, diante da esposa e filho angustiados com a obsessão do fazendeiro.

Como todos os outros elementos fílmicos, a paisagem sonora não é realista, não possui o naturalismo dos ruídos ou som ambiente. O filme investiu nas vozes e linguajar dos sertanejos nos poucos diálogos, mas valorizou, principalmente, a força da presença musical, que é um personagem à parte.

O filme apresenta o cotidiano na caatinga, a vida em família, a religiosidade, a lida diária dos vaqueiros, a seca, mas supera a representação do estado ordinário das coisas e dos fatos, propõe um ponto de vista de uma criança ou de um poeta. O véu da noiva que vira a lua, o homem que é galo e é boi, o boi que é avestruz e bezerro, o sertão que é árido e encantado.

Chico Liberato – desenhista, pintor, escultor, cineasta e artista multimídia – articula com maestria rupturas e continuidades, tradição e inovação. Somando a experiência dos curtas metragens Ementário, Antistrof (1972); O que os olhos vêem (1973); Caipora (1974); Pedro Piera (1975); Eram-se opostos (1977) e Muçagambira (1982); o artista que oxigenou o cenário das artes plásticas na Bahia (também como diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia e como coordenador da área de Artes Visuais e Multimeios da Diretoria de Imagem e Som da Fundação Cultural do Estado da Bahia) está finalizando seu segundo longa-metragem de animação, Ritos de passagem. Aguardemos, portanto, mais uma aventura exploratória do sertão baiano.

Ana Paula Nunes é professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. Mestre em Comunicação, Imagem e Informação pela Universidade Federal Fluminense (2009). Atualmente coordena o Grupo de Estudos e Práticas em Cinema e Educação (GEPCE) e o projeto de extensão Quadro a Quadro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOI Aruá. Direção: Chico Liberato. Trilha sonora: Ernst Widmer. Roteiro: Alba Liberato. Canções: Elomar Figueira, Carlos Pitta e Robério Soares. Animadores: Chico Liberato, Antonio José Cassiano, Paulo Ricardo Xavier. Produção: Maria Augusta S. Paulo, Regina Machado, Assistente de Produção: João Liberato. Salvador: Chico Liberato. 1 DVD.

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo, Editora Cultrix/Pensamento, 1995.

GOMBRICH, E. J. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999. 688p.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica – cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986. 327p.

GUERREIO, Simone. Cantiga do Boi encantado e outras cenas operísticas, de Elomar Figueira Mello. Salvador, BA: Repertório – Teatro & Dança, Ano 11, Número 11, 2008, p. 35-41. Disponível em: http://www.repositorio.ufba.br/ri/bitstream/123456789/2014/1/3236.pdf

GUTEMBERG. Liberato, um apaixonado pelo cinema de animação. Blog do Gutemberg, publicado em 11/09/ 2008. Disponível em: http://blogdogutemberg.blogspot.com/2008/09/liberato-um-apaixonado-pelo-cinema-de_11.html

JARDIM, Luís. O Boi Aruá. 6 ed. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1979.

 

 

Um comentário sobre “BOI ARUÁ

  1. Marialva Monteiro

    Texto muito bem escrito e bem sedimentado e informativo.
    Conheço a autora e muito a admiro
    O filme merece ser divulgado, já que se tornou um marco no cinema de animação.
    Este ano o filme faz 30 anos e será homenageado na 12ª edição do Festival de Cinema de Lisboa – Monstra- de 7 a 17 de março