A CRIAÇÃO EM ROTEIRO
Por Guilherme Sarmiento
Escrever roteiro é uma tarefa invisível. Ao contrário de uma obra a céu aberto, seus inúmeros tratamentos ficam encerrados e, muitas vezes, nunca encontram a luz do sol. Nem mesmo viram rascunho ou sequer são impressos, amassados e jogados no lixo. Com a facilidade da interface digital, suas etapas tornam-se dispensáveis pela prática de apagar e refazer o texto diretamente na tela do computador, sem que as consecutivas versões sejam materializadas. Muito do trabalho de concepção de uma história acaba perdido e só acessamos as ações, as personagens, os diálogos das narrativas caso consigam chegar de forma íntegra à boca de cena, após se depurarem lentamente sobre a página.
No Antes da tela deste número teremos o privilégio de perceber como as ideias nascem e se desenvolvem, pois acompanharemos, justamente, três tratamentos de Um sol alaranjado, premiado curta metragem brasileiro finalizado em 2001. O material foi gentilmente cedido à Cinecachoeira por seu diretor, Eduardo Valente, e hoje pode ser estudado por aqueles que se interessam mais profundamente pela natureza do processo criativo em roteirização. Podemos observar, através das versões disponibilizadas aqui, as elaborações sofridas pela trama no intuito de ressaltar o conflito do filme, tornando-o a cada nova escritura mais nítido e potente.
Entre a primeira e a última versão, três anos se passaram. Tempo suficiente para se encontrar a melhor maneira – e a mais econômica – de se contar a história de uma perda. Uma filha dedicada e amorosa perde, num dia como outro qualquer, a companhia do pai. Um sol alaranjado vive justamente do vazio deixado pela morte e toda a sua riqueza dramática subjaz no cerco a esta perplexidade dolorosa, trágica, que culminará na aceitação ou na loucura. A busca pela melhor forma de fazer o espectador compartilhar desta emoção contundente, sem resvalar no sentimentalismo, conduz todo o trabalho de concentração dramatúrgica sofrida pela ficção até a cópia final. Como tentaremos mostrar mais adiante, alguns elementos presentes no texto do curta sofreram alterações importantes na edição – ou na própria filmagem – além das evidenciadas nos tratamentos do roteiro.
Datado em 20 de agosto de 1997, o primeiro tratamento de Um sol alaranjado já chama a atenção pelo diferencial do título. Vemos, encimando o roteiro, a expressiva frase O homem que dorme e a referência ao conto O caminho de Sbruch, de Isaac Babel, como fonte de inspiração ao argumento de Rubio Campos e ao roteiro de Eduardo Valente. Esta referência não perdurará nas duas roteirizações seguintes. Será completamente esquecida. No entanto, a citação ao pequeno texto do escritor judeu nesta versão original reacende a lembrança de um estopim, de intensidade discreta, capaz de movimentar as engrenagens criativas até um ponto distante o suficiente para se efetivar uma ruptura. Quando a rubrica diz “inspirado muito livremente” já indica desde o início certa autonomia arquitetônica da adaptação que, mais tarde, será completamente assumida pelos autores, talvez acelerada pela consciência de possíveis complicações com relação à liberação de direitos autorais. Sem dúvida, este esquecimento – seja voluntário ou não – pouco refletiu nas delicadas trajetórias em torno da ideia, algo que uma investigação sobre a mudança do título pode elucidar com maior clareza.
Intitular é muito mais do que um exercício de natureza fonética ou publicitária. Consiste numa das etapas fundamentais da constituição do drama. É pelo nome que a forma toda se reduz, numa paulatina emergência de seus poderes figurativos e, por tudo isto, quando se denomina um filme, fecha-se os contornos de uma criatura só a partir de então reconhecível. Sinal mais evidente da busca incessante do roteirista de Um sol alaranjado por emblemas enriquecedores da poética fílmica evidencia-se no momento em que experimenta renomear o curta-metragem, entre o primeiro (1997) e o segundo tratamentos (1999). Neste ínterim ocorreu a mudança mais drástica do processo de roteirização: o amadurecimento do olhar sobre as personagens e um entendimento das potências liberadas por este ato de batismo, unificando pela pronúncia o caráter da obra.
Portanto, mudar o título de O homem que dorme para Um sol alaranjado foi, antes de mais nada, entender melhor as imagens desencadeadas pelo nome e suas consequentes influências sobre a percepção de determinados aspectos da história. Na denominação original, o leitor era induzido erroneamente a projetar um filme a partir de um personagem masculino, quando, dentro da proposta esboçada desde a versão inicial, o conflito básico nasce justamente na dificuldade da filha em aceitar a morte do pai, ou seja, desvia-se o foco narrativo ao se intitular o curta com esta frase tão nítida, imediata, quanto incompleta. Ainda assim ela consegue atravessar de uma ponta a outra o sentido de construção dramática, adiantando, de forma negativa, as ações chaves do filme como um paradigma indesejado. Crueldade e ironia convergem ao se perpetuar a morte num sono eternamente presente, distanciando o roteiro do olhar humanista e do delicado arranjo de silêncios, ambas qualidades reconhecidas do filme realizado quatro anos depois.
Neste sentido, Um sol alaranjado, como nome, mesmo mantendo certa ironia distanciada, revela-se um achado por suas evocações poéticas e visuais. O estranhamento diante de um título matizado de laranja para denotar as texturas de um filme em preto e branco produz refinadas relações intertextuais, especialmente com a cinematografia japonesa – o país do sol nascente. Penso aqui no clássico filme de Yasugiro Ozu, Pai e filha, cujo tema muito se assemelha ao do curta brasileiro, porém numa perspectiva invertida: o sentimento de perda aqui é experimentado pelo pai, viúvo solitário, após sua primogênita sair de casa. Na imagem final e sintética do drama, o ancião descasca uma laranja, deixa as lágrimas e os soluços tomarem seu corpo, expressando a dor através de uma cena de concisão e simplicidade tocantes. Grande parte da eficiência dramática do curta de Eduardo Valente relaciona-se com estes valores de contenção próprios a cinematografia das pequenas grandezas, reforçando a eficácia associativa do título.
Também é interessante como o curta-metragem vai internalizando certas imagens simbólicas, tornando-as cada vez mais sutis em suas possibilidades evocativas conforme avançava-se na criação de novos tratamentos. Nas duas primeiras versões começava-se o filme com “um sol nascendo ao fundo de uma série da casas baixas”. No último, um lacônico “amanhece, e pessoas começam a sair de suas casas” substitui a indicação original. O sol aos poucos vai se pondo, escondendo-se nas entrelinhas para, enfim, ser apenas uma sugestão no momento em que o filme torna-se uma realidade física. Chegamos à luminosidade fixada na película sem nenhum vislumbre direto do astro, nem mesmo de sua cor esmaecida pelo amanhecer. Transformado numa figura de linguagem sonora e visual, cifrado pela elaboração de um título misterioso, o tempo torna-se, então, um fator preponderante para a fluência da narrativa.
Se prosseguirmos com a tarefa de entendermos as motivações presentes a cada nova revisão, estes cercos cada vez mais estreitos às potências narrativas torna-se um dos pilares da criação textual de Um sol alaranjado. O maior trabalho do roteirista, portanto, foi isolar cada vez mais estas mônadas dramáticas, visualizando um filme cuja economia deixasse aflorar, como o dito anteriormente, o vazio de uma perda. Esta busca de contenção aparentemente choca-se com o resultado apresentado após três anos de trabalho. Se pegarmos os três roteiros, veremos que o número de sequências não parou de crescer de um para outro: em 1997, temos vinte e três; em 1999, vinte e cinco e, no último tratamento, em 2000, vinte e seis. Mas esta contagem revela apenas a superfície de manipulações internas, que observaram atentamente o modo de compor as rubricas e, principalmente, vislumbraram os efeitos de uma conjugação mais afinada da cenografia com o cotidiano das personagens.
Analisando diretamente os roteiros fica mais fácil perceber estes cortes, muito claros ao se ler com atenção as rubricas do primeiro e do último tratamento, por exemplo:
“Num pequeno banheiro atulhado de coisas (serve como despensa), Verônica passa uma bucha nas costas de seu pai, que está sentado, com um olhar distante e plácido, dentro de uma banheira na qual ele mal cabe. A água corre pelas suas costas, enquanto Verônica usa de todo o carinho naquele ato de lavá-las”.
“Num pequeno banheiro, Verônica passa uma bucha nas costas de seu pai, que está sentado, com um olhar distante e plácido, dentro de uma banheira na qual ele mal cabe. A água corre pelas suas costas, enquanto Verônica passa a bucha com força”.
De uma versão para outra um “pequeno banheiro atulhado de coisas” passa a ser simplesmente “um pequeno banheiro”, e o ato carinhoso de Verônica lavando as costas do pai transforma-se numa bucha “passada com força”. Esta mudança aparentemente simples ilustra nem tanto a percepção da secura da escrita para cinema, mas o processamento de abordagens mais fortificantes do drama. Tornando a varredura da escrita menos ampla e descritiva do ambiente, a imaginação fixou-se naquilo que realmente interessava: a opacidade de um ato cuidadoso, íntimo, de uma filha para com seu pai incapacitado física e mentalmente. A partir da estabilização deste núcleo, todos os espaços seriam concebidos em apoio a sua sustentação e, certamente, este critério tirou da cenografia sua função meramente decorativa ou explicativa presente nos primeiros momentos da criação.
Talvez por este motivo a falsa impressão de inchaço de sequências entre o primeiro e o último tratamento. Na verdade, o aumento de “cenas”, digamos assim, não implicou numa multiplicação dos espaços, pois veio de encontro a este sentido de economia exigido pelo drama. Para expressar um cuidado costumeiro, cotidiano, da filha para com o pai, houve a necessidade de se repetir a mesma ação de perspectivas e modos diferentes, tornando a cenografia mais fechada e, obviamente, sua redundância corroeu espacialidades que escapavam a esta intenção. Todas as cenas de exteriores tão presentes na versão original, incluindo aí a paradigmática cena do nascer do sol, então perderam seu significado. Em contraposição, o banheiro, a sala, a cozinha ganharam novos enquadramentos, reforçando-se com isto o fechamento do universo ficcional no núcleo familiar.
A prova mais evidente desta manipulação espacial com fins dramáticos decorre da constante perda de visibilidade da Vila, casas padronizadas de trabalhadores onde pai e filha viviam. Sua presença vai se tornando, como o sol do título, cada vez mais codificada dentro da diegese, deixando de ser um elemento de ordem mimética para transbordar, como um signo fantasmático, suas reverberações sonoras de espacialidades já inacessíveis ao olhar do espectador. Estas reduções são especialmente sensíveis ao se comparar as últimas sequências dos três tratamentos. Na versão de 1997, temos a seguinte descrição:
Verônica está sentada na janela, com uma cadeira vazia ao seu lado, olhando para a vila. D. Diolinda, uma vizinha, se aproxima:
– Tudo bem, menina?
Verônica faz que sim com a cabeça.
– Ué, cadê seu pai?
Por um momento Verônica parece confusa, olha para a cadeira, olha para dentro. Então ela se vira para D. Diolinda:
– Tá dormindo, D. Diolinda, tá dormindo…
Esta sequência foi perdendo a importância no roteiro, recuando para regiões menos influentes da narrativa, porém, manteve-se de certa forma intacta em todos os tratamentos. Algumas modificações nas rubricas dá a entender que D. Diolinda perde seu corpo para ser simplesmente uma voz em cena, porém sua ação efetiva-se: ela interage diretamente com Verônica, personagem da filha nas duas versões posteriores à original. Sua supressão da narrativa só será realizada na cópia final do filme, de modo que ficamos sem saber sobre em qual estágio da realização se deu esta mudança fundamental: se durante as filmagens ou a edição fílmica.
O que se pode dizer, observando as bases textuais do filme, é que este corte não foi casual. Ele se alinha, na verdade conclui, esta série de manipulações cujo fim era reduzir o drama a seus elementos básicos: torná-lo eficiente, econômico e, acima de tudo, isolar o conflito base do roteiro de elementos exógenos a sua real grandeza. Conforme se produzia um novo tratamento, chegava-se à consciência de que a narrativa, para gerar o efeito estético e emotivo almejado, deveria mostrar em riqueza de detalhes os laços de amor e carinho entre as personagens, num investimento diário de afeto, para que o vazio deixado pelo Ser tocasse as bordas do aniquilamento. Uma perda dilacerante só pode ser sentida após a criação de uma intimidade carnal. Foi exatamente isto que Um sol alaranjado incansavelmente procurou equacionar em todas as suas etapas de realização.
Diante deste projeto de longo prazo, cujo intervalo entre escritura e finalização levou por volta de quatro anos, observa-se o quanto se inspira e o quanto se transpira numa jornada cujo fim será a exibição dos filmes numa tela de cinema. As ideias custam. E vê-las tomando corpo neste percurso cheio de desditas redimensiona a forma em suas imperfeições esquecidas, ofertando aos estudiosos um rico material para se mapear suas espacialidades virtuais e caprichosamente instáveis. Para acessar os três tratamentos de Um sol alaranjado clique aqui e descubra isto por si mesmo.
BAIXE AQUI AS 3 VERSÕES DO ROTEIRO