A ALEGRIA

O PODER ULTRAJOVEM

 

Por Guilherme Sarmiento

 

Em janeiro de 1958, o cronista Rubem Braga deixou o testemunho de uma visão apocalíptica cuja beleza só poderia ser experimentada integralmente por aqueles que se deslocaram entre o Leme e o Pontal, equilibrando-se nas encostas castigadas pelas ondas e maravilhados com a majestade de rochas cinzentas, lavadas pela chuva:

 

AI DE TI, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste, porém minha voz te abalará até as entranhas. (…)

E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num ferver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.

 

Talvez motivado por estas imagens, Chico Buarque tenha criado, décadas depois, sua canção Futuros amantes, na qual a voz carregada de premonições sombrias deixou-se dominar pelas promessas de amor, realizando, com isso, sua vocação de eternidade :

 

E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos

 

É a partir destas obras onde o horror do aniquilamento equaciona-se com o lirismo da crônica que o filme A alegria parece retirar sua atmosfera cálida e expectante. Estamos diante de autores que extraem matéria documental de um sentimento contextualizado, não necessariamente de um registro puro e simples do “real”. Legitimam, através da atenção às revoluções internas, um discurso quebradiço e urgente como um manifesto estudantil. Sem medo de que a imersão violenta no presente desvie a atenção dos mecanismos mágicos da fabula, Felipe Bragança e Marina Meliande talham novos sentidos de pertencimento a esta miragem tantas vezes reproduzida em cartões postais, sambas canções e reportagens matinais, que justificam a fama da Cidade Maravilhosa. Fugindo de categorizações fáceis, rebelam-se contra o repertório exaurido pelos cronistas cariocas – seja para o bem, seja para o mal –, revisando-o através de imagens que cintilam sua própria magia redentora.

Esta revisão faz parte de um trabalho conjunto, realizado por cineastas ao longo de uma década, desde Cidade de deus. Em A alegria, a violência de uma metrópole cindida já é tão incorporada à experiência que seus códigos podem se desfigurar até a abstração, até os limites do fantasioso, sem com isto se desconectar da sensação íntima, pulsante, de um trauma vivenciado diariamente. Da mesma forma, as visões do apocalipse, utilizadas há pouco somente em filmes espetaculares, aqui se imiscui ao olhar do cronista e salta como matéria cotidiana, realizando no presente o horror do último dos evangelhos. Aproveitando-se deste momento particular, onde as profecias impõem-se como acontecimentos e a realidade descontenta-se de seu registro cru, factual, para expressar os fantasmas de uma época, os autores do filme apresentam um Rio de Janeiro sombrio, misterioso e decadente, realçado pela eminência da catástrofe.

… Mas se o cotidiano carioca perdeu o calor de seus dias mais luminosos, deixando-se nublar por nuvens ou acuar por rajadas de metralhadoras, nem por isto escondeu seus pequenos milagres de olhos aprendizes. Eles acontecem com regularidade sob o mormaço e, dentro de A alegria, somente os jovens podem percebê-los em suas explosões diárias de prazer e contentamento. Indo na contramão de filmes que destacam a apatia e alienação do adolescente de classe média – penso nos últimos filmes de Gus Van Sant, por exemplo – Felipe Bragança e Marina Meliande exaltam esta fase da vida como a detentora da chave entre os dois mundos. Como seres em trânsito da criança para o adulto, conjugam dentro de si o desencanto de gerações e os rumores do porvir, a imaginação espontânea e os deveres com a permanência, os superpoderes e a força dos sentimentos. O remédio mais eficaz para o desespero do fim, portanto, está na alegria da juventude.

Isto não quer dizer que A alegria seja um filme saltitante. Nem que joga com a ironia ao comparar a emoção do título com a melancolia de vidas esvaziadas de sentido. Muito pelo contrário. Sua concepção retira o significado de felicidade de uma introspecção que almeja plenitude. Suas personagens guardam entre si a expectativa da compreensão, sussurrando palavras e criando longos silêncios de compartilhamento. Esta atmosfera de contentamento íntimo é realçada pela nona sinfonia de Beethoven, música tema do filme, que, por vezes, confunde-se com Jesus alegria dos homens, de J.S. Bach, por suas notas transparentes e evocativas. Mas o filme não perderia em nada sua atmosfera calidamente elegíaca se escolhesse como trilha sonora alguma bossa nova, uma bossa-nova lounge, daquelas ouvidas por adolescentes cercados de pufs e de almofadas coloridas numa boate de Zona Sul. Pois no calor das relações juvenis guardou-se o sol do Rio: o movimento musical que cantou a amizade, o amor e a felicidade em tom menor costura notas invisíveis, sustentando a locução de expressões amorosas, murmuradas na penumbra pelos jovens cariocas – os heróis desta fábula de fim (início) de século.

Ora renegando, ora se apropriando do ethos carioca de forma original, A alegria atrai por ser crônica e por ser encantamento. E quem sabe um dia, quando o Rio for uma cidade submersa e as latas dos filmes ficarem incrustadas de mariscos de cinemateca, os escafandristas enfim encontrem trechos desta película e entendam um pouco da Atlântida Tropical, destruída por uma civilização subterrânea, perdida durante séculos na memória dos sobreviventes. Ou que isto nunca chegue a acontecer, quem sabe, graças ao poder ultrajovem.

 

Um comentário sobre “A ALEGRIA

  1. Emerson Dias

    Como não li essa crítica antes?
    Bacana Guilherme, legal o link com Chico e o cotidiano Carioca

    Vejo Alegria como uma história universal, que dialoga diretamente com a temática da pós-modernidade e, de uma certa forma, com a cultura glam .

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