Por Danillo Barata
Este artigo foi publicado no 20 Encontro Nacional da ANPAP
A ideia de território, espaços físicos culturalmente informados, está cada fez mais presente nas discussões da arte contemporânea. No momento que as tensões e fronteiras se esgarçam numa nova cartografia que possibilita diálogos e trocas contundentes no campo da arte e da tecnologia, outras paisagens se configuram numa tomada de consciência que reivindica novas subjetivações e mutações nos Estados e na cultura. Essa imbricação no campo da cultura permite apropriações, aproximações e distanciamentos num redesenhar das fronteiras geográficas que não mais problematizam ou engendram a noção de território strictu senso.
Há uma troca mais substantiva a partir de um pensamento colaborativo, que mesmo sofrendo tensões com a indústria, volta-se para uma das premissas do artista alemão Joseph Beuys [1921-1986], de uma arte mais próxima da sociedade, induzindo a uma arte “como qualquer tipo de ser ou de fazer, e toda tessitura social, incluindo a política”. O tripé visionado por Beuys que focava na política, ecologia e na arte, criava circuitos que contribuíam para uma ampliação da arte, reordenando a ideia de disciplina e quebrava a velha dicotomia da arte versus espaço público. Essa “escultura social” de algum modo reverbera nos circuitos tecnológicos de nossos dias.
Romper fronteiras de isolamento, acordar, interagir, criar circuitos compõe a temática central que une a curadoria da mostra temática do nordeste para o Festival ARTE.MOV[1]. A disposição dos vídeos e sua representatividade no âmbito do Nordeste brasileiro busca a partir de um corpo-imagem a legitimação para empreender a construção de um corpo resistente, que segundo Tom Zé estão postos nos ossos do ritmo do corpo:
“Os três principais alimentos do Nordeste são desidratados: farinha de mandioca, carne-seca e ritmo. Mas é o ritmo que nos mantém em pé, verticais que faz o papel dos ossos.” (ZE, 2003, p. 99)
Esse princípio da resistência busca a legitimação dessas experiências artísticas na contemporaneidade. Pensando as políticas do corpo-histórico, a sociedade estará refletindo aspectos profundos de sua constituição, ao mesmo tempo que propõe mecanismos mais intensos de interação entre a arte e a sociedade, a visceral relação da arte com os problemas sociais do seu contexto, criticando, assim, antigos paradigmas como o da autonomia da arte, da neutralidade ideológica das poéticas artísticas.
Para além do alegórico ou do meramente visual, os trabalhos têm um compromisso com o diálogo com o corpo, compreendido para além da sua geografia e complexidade, como uma comunidade de sentidos plurais e muitas vezes conflitantes. O desenvolvimento da performance e da videoarte, em constante diálogo de superação com o espaço, como fuga e reflexão sobre o caráter mercadológico da arte e de toda estrutura (Museu, galeria, Marchand), vai agregar-se aos muitos falares na contemporaneidade, onde o corpo é elemento fundamental, seja pela sua plasticidade ou até mesmo pelo inusitado de suas ações.
O corpo em diálogo com o espaço emerge em um período onde a inquietação de diversos artistas tomados pela ideia da chamada antiarte desperta novas maneiras de ressignificar a estética e a própria definição de arte. Fugindo do contexto mercadológico que transformou boa parte da produção artística em objetos de consumo dos especuladores, marchands e grandes empresários, a reação dos artistas nos anos 1960 e 1970 foi deixar de fazer objetos e fazer uma arte que teoricamente não poderia ser vendida, arte que fosse simplesmente um evento, deixando apenas um registro de um filme ou vídeo. Assim o corpo assume um lugar estratégico para ação artística. Um desejo de retornar ou tomar a cabo o famoso lema dadaísta, a fusão da arte-vida.
Contudo, outra estratégia de performance tinha por base a presença do artista em público na qualidade de interlocutor, como nas sessões anteriores de perguntas e respostas de Beuys. Alguns artistas forneciam instruções aos espectadores, propondo que eles próprios encenassem as performances. Acima de tudo o público era instado a perguntar onde se situavam, exatamente, as fronteiras da arte: onde, por exemplo, terminava a indagação científica ou filosófica e começava a arte, ou o que distinguia a linha sutil que separa a arte e vida. (GOLDBERG, 2006, p. 143)
Dessas investigações, três paradigmas estéticos foram instaurados: a arte como processo e não como resultado final; a participação direta do público na criação e construção da obra; e a incorporação da dimensão ambiental da obra de arte (CAGE,1985). O objeto artístico se transforma, não se resumindo apenas ao produto final e passando a ser compreendido como um todo – processo e procedimentos.
Para além da impressão imagética, a poética visual da curadoria busca dar voz ao cidadão-artista, que, utilizando-se do seu meio particular de expressão, suscita um diálogo com os outros falares em circulação. Certamente que ao fazermos opção por essa forma específica de recorte, estamos dialogando com preocupações mais amplas do mundo da arte nos nossos dias.
A compreensão do território talvez seja um dos grandes desafios de nosso tempo, segundo Milton Santos:
“É por tudo isso que, hoje, seja qual for a escala, o território constitui o melhor revelador de situações, não apenas conjunturais, mas estruturais e de crise, mostrando, como no caso brasileiro, melhor que outra instância social, a dinâmica e a profundidade da tempestade dentro da qual vivemos.” (Santos, 2002, p. 48)
Na tentativa de estabelecer uma conexão da arte contemporânea – que introduziu o enfrentamento do corpo e da câmera como um dos campos preferenciais de atuação, nosso recorte se irmana com os questionamentos postos pelas novas cartografias em todo o mundo. É característica comum a essas experiências romper a separação, normalmente estabelecida, entre o território das artes e a vida, propondo um evento que os associe indissoluvelmente.
Depositária de imagens díspares, campo de ressignificação dos signos nos seus múltiplos territórios de incongruências e paradoxos, a produção desse eixo precisa autorizar a fala política desses ritmos constituídos, em suas múltiplas expressões e na sua presentidade. Pensar as dinâmicas do agora porque os tecidos urbanos do real são voláteis, desautorizando, assim, a ideia do corpo como suporte, quer como utilização, quer como relação.
A questão da apresentação do corpo e sua relação com o efêmero desautoriza a ordem disciplinar no campo da cultura e os seus trânsitos de exclusão, não impondo roteiros estabelecidos, usos, nem modos de ser ou estar. Ao contrário, questiona as cartografias das formas tradicionais de organização/apropriação e suas semânticas de eternização na constituição de uma arte que foca no monumental, alegorias de valores e personagens cultuados.
Por outro lado, a curadoria tem como objetivo dar visibilidade às experiências artísticas compreendidas ideologicamente como “fora do eixo” realizadas por artistas que pensam a realidade no campo das artes visuais no Nordeste, cujas expressões mais significativas tiveram lugar no final dos anos 1980. No plano local, os espaços de formação profissional na área ou de divulgação e incentivo ao fazer artístico começam timidamente a conceber políticas de fomento e absorção dessas práticas. A conseqüência facilmente aferível dessa orientação pode ser constatada na distância estabelecida entre a produção dos artistas contemporâneos e as instituições fomentadoras das artes no Nordeste brasileiro.
Testar os limites do corpo, “desfetichizar”, descaracterizar os modelos vigentes que permearam e permeiam nossa cultura seja pela pintura, escultura, jogos olímpicos ou pelos cânones midiáticos, perpetuados no cinema e na TV. Foram esses os passos perseguidos pelos artistas em suas atuações durante as primeiras pesquisas com o corpo e que, de alguma maneira, poderemos ver nesta mostra.
Para abrir a mostra optamos pelo vídeo “Pombagira” (fig. 01) de Marcondes Dourado. O trabalho foi apresentado originalmente no XIV Salão de Arte do Museu de Arte Moderna da Bahia em 2007. Nas cerimônias afro-religiosas não se inicia nenhuma atividade sem primeiro tocar ou abrir os trabalhos para as entidades da “rua”. Nesse sentido, a abertura da mostra com este vídeo assume os valores postos pela cultura afro-brasileira. A Maria Padilha é um personagem da Umbanda e segundo Armindo Bião tem origens no século 14:
“María Díaz nasceu numa importante família de Castela, provavelmente na região de Palência. Por volta dos 20 anos, em maio de 1352, ficou conhecida como Doña María de Padilla, ao encontrar o jovem Rei Don Pedro (com 18 anos incompletos), de quem foi amante até a morte, por causas naturais, em julho de 1361.
D. María foi, segundo todos os que se dedicaram à matéria, a favorita do rei, que teve várias mulheres e cinco filhos reconhecidos (nenhum dos quais com a única incontestavelmente tida em vida como Rainha de Castela, Branca de Bourbon). De fato, D. Pedro só fez de D. María Rainha de Castela em abril de 1362 (nove meses após sua morte).” (BIÃO, 2009, p. 37).
Pombagira
A imagem da Maria Padilha foi apropriada nos cultos de Umbanda e sua imagem é recorrente nas feiras populares da Bahia e do Rio de Janeiro. Na sinopse do vídeo Marcondes descreve: “Pombagira é relacionada à imagem de uma diaba, abusada, cigana, mulher de sete homens, arriba-saia, chamada de Maria Padilha, tem a mão na cintura, numa atitude de desafio, e está associada aos travestis, às prostitutas, à transgressão”. O processo de elaboração da imagem partiu de uma série de fotos realizadas pelo autor na Feira de São Joaquim. Após uma catalogação sistemática de diversas imagens na feira optou por empreender uma fusão com linhas que se fundem com a imagem. Tal processo cria uma comunidade de sentidos plurais à obra, pois faz referencia à desintegração, ressignificação e potencialidades desse corpo-imagem.
As entidades da “rua”: Exus e Pombagiras são os elementos de comunicação do mundo dos Homens com o mundo dos deuses. Na mostra assume o papel de abertura dos trabalhos.
Sensações contrárias
No vídeo-dança Sensações Contrárias (fig. 02), criado e dirigido por Amadeu Alban, Jorge Alencar e Matheus Rocha, no Recôncavo Baiano, região que congregou umas das economias mais importantes do período colonial, é a locação de um passado escravagista. O vídeo desenvolve “a noção de borrão, em que os eventos coreográficos e imagéticos se dão por aparentes acidentes, falhas e descontinuidades, num limite entre realismo cotidiano e surrealismo”. Um processo de desconstrução do movimento evidenciado num rigoroso desordenamento dos espaços, dos gestos e da cultura. O Hino do Senhor do Bonfim no final do vídeo denota o desalinho entre as noções de passado e presente na Bahia.
Flash Happy Society
Em Flash Happy Society (Fig. 03), um dos vídeos mais intrigantes do ano de 2010, o artista Guto Parente desenvolve uma abordagem curiosa num show de Roberto Carlos. Não se trata da performance do músico nem mesmo de sua sonoridade, mas sim do frenesi no uso do flash pelo público presente no evento. O método operacional consiste em sincronizar um slow motion com o acionamento do flash. Dessa maneira, o vídeo constitui uma nova partitura da sonoridade, criando dessa maneira uma série de fantasmagorias de “presenças/ausências”. No vídeo fica evidente que a nossa sociedade precisa reinventar o real. Não por acaso o autor define na sinopse que o vídeo é “Ficção científica baseada em fatos reais”.
Plus Ultra
A celebração do corpo está presente na arte atual, seja na recepção das obras, de forma táctil, interativa e participativa. O corpo contemporâneo é um lugar de inscrição, mutante e de passagem. As intervenções se voltaram para o interior e exterior do corpo, em Plus Ultra de Oriana Duarte (FIG. 04), em que a artista realiza “experiências corpóreas em performances artístico-esportiva”.
A vida como fenômeno estético é o conceito desse vídeo. O trabalho aponta para questões acerca do corpo. A relação do corpo e da paisagem é apropriada pela artista num poço que potencializa o discurso do corpo, os seus gestos e reflete uma tensão em um território em contexto improvável. Em Vertigem de Milena Travassos (Fig. 05) a relação da artista e a do seu corpo tencionam a noção de lugar e de território.
CUCETA – A Cultura Queer de Solange Tô Aberta
Documentário focado nos bastidores do show, nas ideias e na filosofia queer do duo Solange tô Aberta, as questões do corpo e da sexualidade são abordadas de forma irreverente. “Seriedade, sarcasmo, ironia, anarquia e cultura gay” são a tônica do webdoc CUCETA de Cláudio Manoel (fig. 06). O vídeo defende o corpo livre, sem formato social.
O Mundo de Janiele
Como uma caixa de música, o vídeo apresenta a menina Janiele que gira de forma constante o seu bambolê. Na medida em que o plano se abre podemos notar o entorno de um bairro popular da cidade de Salvador. O vídeo serve de metáfora para abordar a falta de perspectiva na vida de muitos jovens que ficam circunscritos aos seus bairros, sem sociabilidade e sem trocas mais substantivas com a cidade. Esse loop traçado pela protagonista orienta, de certo modo, o “fio da vida que Janiele tenta manter em órbita”. O vídeo do artista Caetano Dias, O mundo de Janiele (fig. 07), é focado na alteridade de uma garota e seu território.
Acredite nas suas Ações
Registro de quatro ações realizadas pelo GIA (Grupo de Interferência Ambiental) nas ruas de Salvador, o vídeo (Fig. 08) remonta aos princípios do registro da performance. O grupo é formado por jovens artistas que se apropriam do espaço público como suporte para interferências no cotidiano urbano.
A primeira ação consiste na montagem de uma cama em espaço público e o registro durante um determinado tempo. A segunda é a criação de um “Caramujo”, espaço para aglutinar um determinado público e promover a troca de experiências. A terceira, o “Baba da ladeira”, é uma ação bem-humorada que promove o contato dos artistas com um grupo de jovens da cidade. A quarta ação consiste em uma intervenção na avenida Paulista na cidade de São Paulo, utilizando uma série de balões vermelhos e a frase “siga sem pensar”, que abre um campo lúdico de diálogo dos transeuntes com a cidade.
Ao iniciar esta pesquisa, nos deparamos com a dificuldade de representar uma região brasileira que conta com nove estados federados e com isso reproduzir os velhos modelos excludentes de seleção. Contudo, no decorrer do processo de constituição da pesquisa, os encaminhamentos de algumas questões foram definidores. Ao realizar o mapeamento da produção a partir de 2006 o recorte do corpo aparecia de forma mais orgânica e contundente. As práticas performativas estão na gênese desse povo que traz consigo o substrato de miscigenação, do alegórico e, sobretudo, de um corpo histórico.
O tratamento do corpo na arte eletrônica e na performance subsidiaram este recorte, através das análises realizadas, proporcionando um olhar crítico em relação aos procedimentos de artistas e grupos artísticos. O corpo é uma fonte inquietante e transversal de comunicação, sendo palco de apresentações e de celebrações na cultura ocidental, ampliando o sentido do fazer artístico e trabalhando as potencialidades dos novos meios.
A abrangência da mostra não se finda nem se totaliza nesta seleção. Proporciona, dentro de uma visão contemporânea, uma reflexão do público frente às obras, no momento em que este se vê inscrito com os seus acontecimentos.
Danillo Barata é Videoartista, Mestre em Artes Visuais pelo PPGAV – Escola de Belas Artes, UFBA. Doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do Colegiado em “Cinema & Audiovisual” da UFRB. Em suas pesquisas artísticas desenvolve poéticas utilizando linguagens em vídeo, arte eletrônica, fotografia e audiovisual.
Referências Bibliográficas
BELLOUR, Raymond. Entre imagens: foto, cinema, vídeo. Campinas: Papirus, 1997.
BIÃO, Armindo Jorge de Carvalho. Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos. Salvador: P&A Gráfica e Editora, 2009.
CAGE, John. De Segunda a Humano: novas conferências e escritos. São Paulo: Hucitec, 1985.
DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard. São Paulo: Cosac e Naify, 2004
GOLDBERG, Roselee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Marins Fontes, 2006.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 1987.
MACHADO, Arlindo. O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo: Paulus, 2007.
_____________. Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2003.
RISÉRIO, Antônio. Uma História da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2004
SCHECHNER, Richard. Performance Studies. New York: Routledge, 2002.
SANTOS, Milton. O país distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania. São Paulo: Publifolha, 2002.
ZE, Tom. Tropicalista lenta luta. São Paulo: Publifolha, 2003.
Notas
[1] Festival realizado em 05 cidades brasileiras, a saber: Belém, Salvador, Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo. O festival “ARTE.MOV 2010: Arte em Mídias Móveis focou nas novas cartografias urbanas: Arte e Tecnologia Desenhando uma Nova Paisagem”. O evento é um programa cultural da empresa de telefonia móvel VIVO.
Muito interessante. Parabéns