BICICLETAS DE NHANDERÚ

Por Camila Mota

 

Um raio que cai pode significar muitas coisas.  Na Grécia antiga significava que Zeus, deus supremo, estava irritado com os mortais, e o mandava em direção à Terra com a intenção de puni-los.

Na sociedade atual, um raio significa uma descarga elétrica perigosa aos que estiverem presentes no local em que ela aconteça.

Na tribo dos Karaí (índios guaranis), que habitam um espaço de 230 hectares de terra nas proximidades do Rio Grande do Sul, um raio significa que Nhanderú, deus que tem como mensageiro Tupã, está enfurecido com o que os membros da tribo andam fazendo.

É exatamente assim que o documentário Bicicletas de Nhanderú começa: um raio cai em uma árvore e o índio mais velho da tribo acredita que isso seja um sinal enviado por Tupã para que eles revisem seus conceitos do que é certo ou errado.

Ariel Ortega, diretor e também membro de uma tribo indígena, filmou várias conversas com este senhor sem saber que possuía material para um documentário. Em coletiva realizada para o Cachoeira Doc, festival de documentários de Cachoeira, revelou que: “eram tempos de chuvas muito fortes, e ficamos presos na aldeia. Peguei duas câmeras e comecei a filmar as conversas que tinha com esse senhor, os meninos apareceram do nada, e resolvi investir neles como personagens”.

Os meninos citados eram dois indiozinhos que viviam na tribo dos Karaí.  Mesclavam a essência indígena com a influência do homem branco. Numa cena de Bicicleta de Nhanderú cantam e dançam uma música de Michael Jackson e, ao serem questionados pelo diretor sobre a quem imitavam, responderam “que pergunta!, Michael”, como se todos reconhecessem aquela música e coreografia.

Vai ficando evidente no decorrer da narrativa fílmica que o documentário não trata somente da cultura indígena, mas sim de questionar e reclamar determinados valores que estão se perdendo com a influência do “homem branco” na comunidade: as festas, as bebedeiras e jogatinas, são coisas proibidas e que os índios sabem que fazem mal ao seu espirito, porém vão se deixando levar pela influência a seu redor.

Em algumas partes do filme, o diretor expõe seu posicionamento em relação ao comportamento dos índios da tribo, colocando-se não só como autor, mas também como personagem, acima de tudo, personagem indígena, o que fortalece o discurso fílmico. Bicicletas de Nhanderú nos leva a um passeio pela tribo dos Karaí e também ao conhecimento a respeito dos seus costumes.

É ainda um filme que trata da questão religiosa indígena, já que todos os conflitos surgem a partir da queda do raio em uma árvore e de um sonho, tido pelo índio mais velho da tribo, no qual Nhanderú manda construir uma casa de reza. Essa casa de reza serviria para que os jovens não se envolvessem com os jogos e festas dos brancos. Um espaço para que pudessem meditar e purificar seus corpos, deixando-os livres de qualquer mal. Pois o mal estava invisível aos olhos humanos e só Nhanderú poderia protegê-los, só assim ficariam purificados o suficiente para pedalarem as bicicletas lado a lado com o próprio Deus.

Bicicletas de Nhanderú possui uma história que, em linhas gerais, poderíamos dizer, se resolve sozinha, sem muito intermédio do diretor. As imagens e, principalmente, as personagens dos dois indiozinhos dão vida ao filme, transformando-o em uma obra completa, que consegue manter e prender os espectadores na cultura que ali lhes está sendo apresentada.

 

 

Um comentário sobre “BICICLETAS DE NHANDERÚ

  1. Mighton Icó

    Olá!
    Juntamente aos curta Peixe Pequeno e Seca Verde assisti ao filme-documentário na mostra Cachoeira.doc no Amélio Amorim, em Feira de Santana.

    Interessante perceber como os “hábitos dos prazeres proibidos” se tornam degradantes no contexto indígena. Além disso, também mostrou uma certa densidade em como eles percebem “os brancos”. Depois de tanto transcorrido não deveria ser diferente mesmo, ainda mais agora cujos hábitos viciantes-viciosos dos brancos passam a infectar a mente dos índios, como as festinhas, jogos e bebidas. Logo, as consequências trouxeram a preocupação que se transformou em um insight mobilizado pelo raio e pela força do fator crença-misticismo-religião.
    Ficou ainda mais interessante quando vi as curiosidades de produção aqui na página.

    Gostei bastante dos dois curta também.
    Ótima iniciativa em prol da nossa diversidade e do nosso cinema. Parabéns!

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