TRANSEUNTE

A GLORIOSA OPACIDADE DO ROSTO

Por Guilherme Sarmiento

Desde Rocha que voa, Eryk Rocha – assim como seus irmãos – deixou em suas obras a circunspecção de herdeiros mais preocupados em reverenciar a memória paterna do que afirmar as diferenças geracionais com relação ao Cinema Novo e sua liderança. Seu aparecimento no meio audiovisual brasileiro obedece a uma lógica muito semelhante àquela que elevou Maria Rita, filha de Elis Regina, ao estrelato da MPB – penso aqui, também, em Diogo Nogueira –, enfeitiçando a platéia com sua performance mediúnica, encarnando a presença fantasmal da mãe através de timbres, gestos e expressões. Não foi por um motivo qualquer que o cineasta só dirigiu documentários até aqui, gênero pouco explorado por Glauber Rocha, escapando de opções dramatúrgicas que evidenciariam as oposições entre ambos e, então, quebrado o encanto de uma ideal genealógico, o demônio da influência seria exorcizado. Em Transeunte, sua primeira ficção, ele não pôde escapar do confronto e, ainda que de forma amigável, foi obrigado a expor algumas destas divergências com a e(sté)tica glauberiana.

Talvez isto passe inicialmente despercebido pelo estilo evocativo de Transeunte. A fotografia em preto e branco, a filmagem em ambientes abertos e a câmera na mão denunciam a forte “pegada” cinemanovista na composição fílmica. Não há como fugir a comparações, especialmente se temos em mente filmes como Garrincha, alegria do povo e O poeta do castelo, ambos de Joaquim Pedro de Andrade, cujas imagens originais reverberam suavemente através da epiderme crepuscular deste filme em tom menor. Expedito Soares lembra Manuel Bandeira em sua solidão tocante, envolto em construções monstruosas, assim como o ambiente popular no qual passeia leva-o a nostalgia de documentários rueiros – a leveza dos equipamentos dando vida ao olhar andarilho. Mas as comparações acabam aí, neste tratamento estilístico que pouco esconde as divergências ideológicas entre duas gerações: a do pai e a do filho.

Dentre as diferenças, a mais gritante é que o Cinema Novo buscava em cada obra uma síntese que, por mais realista em sua abordagem, desdobrava-se em significações políticas ao se expressar, muitas vezes, como alegoria. Mesmos os filmes mais intimistas do movimento como, por exemplo, O padre e a moça, de Joaquim Pedro de Andrade, abriam-se às contradições, às oposições, presentes no espectro social brasileiro para, com isto, oferecer a imagem totalizante de um processo, em sua essência, revolucionário. Já em Transeunte, o autor descarta estas referências ao representar de forma isolada, por vezes codificada, o que se entende por “homem do povo”, retirando-o da hierarquia massacrante de uma cadeia produtiva, aqui, invisível e inexpressiva. Neste sentido, o filme de Eryk Rocha aproxima-se muito mais da visão essencialista de Walter Salles, que, com Central do Brasil, forjou uma nova ética de abordagem popular ao unir consciência político-social com afetividade, esvaziando, com isto, termos como “luta de classes”, “operariado” e “burguesia”. Dentro desta revisão ideológica, Expedito, transeunte da odisséia contemporânea, fez aquilo que se esperava dele: deixou o seu amor pela vida emergir do fundo de si para, enfim, por ele e para ele mesmo, ser salvo de sua alienação entorpecente.

Um dos índices mais recorrentes desta busca por um olhar afetuoso consiste na maneira como, sob a orientação do diretor, o aparato cinematográfico trata o rosto das personagens. Eryk Rocha realizou um filme fechado, focado nas rugosidades, evaginações e suores da pele, produzindo enquadramentos epidérmicos, porosos, a partir dos quais a materialidade explícita, quase obscena, da face humana agiganta-se pelos recursos óticos. Parece reivindicar para o close seu caráter antropomórfico: ao se individualizar o sujeito, arrancando-o do anonimato através da impressão de sua marca pessoal e intransferível, o recurso fotográfico estaria realizando o Homem como identidade. Algo assim foi experimentado antes por Karim Ainouz em Madame Satã, observando a mesma intencionalidade ética. Emmanuel Levinas, num conjunto de entrevistas dadas a Philippe Nemo publicadas com o título Ética e infinito, expressa muito bem este conceito ao dizer que:

“O acesso ao rosto é, num primeiro momento, ético. Quando se vê um nariz, os olhos, uma testa, um queixo e se podem descrever, é que nos voltamos para outrem como para um objeto”.

Desde as origens, os teóricos do cinema – penso aqui, no mais óbvio, Béla Balazs – delegaram ao close esta magia transparente, por destacar a face humana como um objeto a ser contemplado e, a partir dos códigos dados pela expressão, interpretado em sua essência mais solidária. Certo idealismo fica evidente nestes aportes teóricos, ainda mais quando se leva o recurso às últimas consequências, como é o caso de Transeunte. Pois o rosto humano projeta para aquém de suas bordas a sombra de uma máscara, podendo, com sua materialidade de coisa, salvaguardar os pensamentos mais infames ou os mistérios mais insondáveis. Ele também se amesquinha e se oferece ao escarro de seus semelhantes: tal qual a lua, guarda seu lado escuro. Pode, ditado pela experiência, ser opaco e silenciosamente cruel.

Por outro lado, o close, um dos elementos fundadores da linguagem cinematográfica, por si mesmo não humaniza as personagens, nem as retira desta penumbra triste, mas reconfortante, chamada anonimato. Isto fica evidente a cada nova investida das lentes sobre a gloriosa face da ralé, dos freqüentadores de pensões baratas e biroscas noturnas, dos cantantes falidos da Praça Tiradentes filmados em Transeunte. Quando um olho toma toda a tela, esconde em sua grandiosidade de partícula aquele que o move; quando uma boca abre-se em canto, rasgando o écran de uma ponta a outra, torna o artista uma mancha indiscernível em volta da língua. Pois um Ser só se manifesta em comparação a outro Ser – sua grandeza só é interpretada em relação a. Por isto, Transeunte, ao asfixiar os elementos numa composição ótica extrema, tende ao abstracionismo: muitas vezes parece um ensaio fotográfico de grande beleza, desviando-se das implicações éticas presentes em sua elaboração de estilo.

Observando pelo viés de uma linhagem, Transeunte revela uma pequena ruptura, longe de ser trágica, no interior de uma tradicional família do audiovisual brasileiro. Mas, se considerarmos Glauber como o pai do cinema moderno, o responsável pela integração, nos procedimentos discursivos da sétima arte, entre ética, estética e política no Brasil, veremos, através de seu filho, os questionamentos de toda uma geração a procura de novos valores de sustentação para as obras contemporâneas. Se isto não foi bem equacionado ainda entre nós, é porque não amadurecemos para, livres da opressão do passado, profetizar as imagens do amanhã. E somente a força de um único rosto não será capaz de prosseguir com esta obra infinita e furiosa, que leva os corações e as mentes de quaisquer homens através de imagens além de imagens além.

2 comentários sobre “TRANSEUNTE

  1. Leon

    Interessante suas reflexões sobre o filme. Acho que o rosto de Expedito é muito mais do que um rosto, uma matéria a flanar. Porém, concordo que a obra se alinha a essa nova ética de abordagem popular, que busca a partir da afetividade construir um discurso sobre o país, como nos filmes de Salles. O Brasil vem mudando, não é mais o país órfão como dos tempos do Cinema Novo. Tampouco vivemos num contexto de luta social em massa. Isso é sentido. Talvez seja óbvio, mas é a razão imediata para tal abordagem, que tem implicações também da trajetória documental de Eryk, dos questionamentos acerca da visão totalizante, sociológica, de romper com o sujeito-classe.

    Gostei do filme, mexeu muito comigo. Me senti próximo daquele homem, peregrinando como ele, escutando, sentindo, experimentando o seu transe. Acho que precisamos de novas abordagens sim, mas este filme me arrebatou o peito de uma forma a crer furiosamente nesse novo cinema.

    um abraço,
    espero que escreva sobre A Alegria.

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