APONTAMENTOS SOBRE O 17º FBCU

Por Guilherme Sarmiento

 Logo que pisei no aeroporto Antônio Carlos Jobim, meu celular tocou. Era Jocimar, da recepção do Festival Brasileiro de Cinema Universitário. Chegava ao Rio de Janeiro como Júri da Mostra Nacional de Curtas. A cada passo que dava em direção ao perímetro de ação do evento, ia sendo cercado por sua rede invisível construída durante dezessete edições, aproximava-me daqueles com os quais convivi e que hoje levam adiante o projeto iniciado há quase vinte anos atrás. Lembro-me até hoje do estrondo causado pela bateria da Viradouro nos interiores do Cinearte Uff – o 1 FBCU contou com a participação de uma Escola de Samba na abertura– , as mulatas e os passistas afrontando os cinéfilos com seus corpos vivos diante da tela vazia, originando de forma ruidosa e caótica um evento de consequências, até então, imprevisíveis. Eu pensava nisto enquanto entrava no silêncio refrigerado do radiotáxi e era conduzido em direção à Lapa, ao hotel Pouso Real, admirando intimamente o profissionalismo consequente da expansão daquele pequeno universo e de sua estabilização numa órbita fixa, o êxito e a consagração de uma ideia cujas origens traziam, pelo menos para mim, a reverberação distante de um Big Bang.

Logo que a van chegou para nos levar até o restaurante conheci os outros jurados da mostra nacional de curtas universitários (Esther Hambuguer, Juliano Gomes, Bárbara Duarte, Caio Neves, Fernanda Bigaton e Samuel Brasileiro). Aos poucos ia sendo acomodado na impressão de um mundo estável, com horários definidos, listas, catálogos e crachás, delicadamente envolvido pela aura de proteção dispensada a todos os juízes. Afinal, por mais que se tente ser justo, premiar uma obra deixa atrás de si pequenas cicatrizes e, não raro, atrai a maledicência dos injustiçados. Não seria de todo implausível se um estudante levantasse de sua cadeira e, no momento em que estivesse anunciando o vencedor do Prêmio Destaque em Construção Narrativa, enfiasse seus dois dedos em minhas narinas diante de uma plateia estupefata e, ao mesmo tempo, satisfeita com o clímax crescente de energia rebelde e universitária, agredindo-me por não endossar com algum troféu, medalha ou placa  a qualidade de sua obra. Mas, para minha sorte, nada disso aconteceu. Meu nariz saiu ileso e posso, agora, com tranquilidade, falar sobre o que vi durante minha passagem pela mais importante amostragem de filmes universitários do país.

Como era de se esperar, a grande maioria dos filmes refletiam as inquietações do universo juvenil, expondo com maior ou menor apuro técnico e narrativo as angústias de um corpo tornando-se estranho a si mesmo, metamorfoseando-se, em confronto com a superfície aterradora da realidade exterior. De forma um tanto insidiosa, a política, hoje, retem a corporalidade neste estranhamento estupefaciente diante do outro – sendo a sexualidade uma de suas trincheiras mais radicais. Esta abordagem envolve riscos e alguns curtas simplesmente encenaram o trânsito aleatório de personagens, ou mesmo sua inércia, como Expurgo, de Isadora Victoria e Vinicius Lopes (PUC RS), ou Coisas que explodem, de Victoria Visco (PUC RJ), sem conseguir avançar além de um drama difuso ou excessivamente errático, apesar dos enquadramentos bem feitos. Alguns filmes poderiam ter outra apreciação caso fossem mais bem finalizados, como o caso do interessante As heranças, de Giovani Barros (UFF), porém, dentre esta leva de filmes existenciais, o sensível Fora dágua, de Bárbara Bergamaschi (UFRJ), pelas imagens poéticas, encadeadas por uma noção menos rarefeita de dramaturgia, evidenciou tudo aquilo que seus colegas até então, e posteriormente, mostraram com menos recursos. Com isto, saiu como o Destaque de Expressão Poética do festival.

Talvez Bordwell tenha sido, no final do século passado, o teórico que mais defendeu o estilo frente à montagem e, sem dúvida, esta preferência respaldou com méritos indiscutíveis a maneira como os filmes contemporâneos se construíram daí por diante, tornando a narrativa cada vez mais esfiapada no intervalo de planos extensos, interessada, sobretudo, por uma performance fixa na atmosfera viciante de um enigma. Já se advertiu sobre a morte do romance, e até mesmo da canção, pelo desprezo artístico às narrações, hoje expandindo-se através da montagem veloz, tramas paralelas, próprias dos blockbusters, e se contraindo até as entranhas de um corpo doente em filmes considerados artísticos. Esta tendência pôde ser exemplificada pelos inúmeros curtas exibidos durante o festival, que, em sua maioria, não se pretendiam convencionalmente narrativos, ou, se o pretenderam, não conseguiram a economia necessária ao feito. Caso de A galinha que burlou o sistema, de Quico Meirelles (USP), cuja voz em off acrescentou muito pouco às imagens mostradas, ou 5 horas rumo ao norte, de Paula Sabbaga (FAAP), que acabou recaindo em certos clichês ao apostar num clímax um tanto artificial para o desfecho. Os curtas mais narrativos foram os mais atípicos para uma modalidade tão exigente: Meta, de Rafael Baliu (FAAP), na verdade, uma experiência metalinguística despretensiosa, e Você já cortou seu cabelo com Maquininha?, de Gabriel Buéssio (SENAC), uma incursão sangrenta no reino do horror. Ambos saíram premiados com o Destaque em Construção Narrativa.

Você já cortou seu cabelo com Maquininha?,
de Gabriel Buéssio e Marília Hanashiro (SENAC)

Se a excelência narrativa não se apresentou durante esta edição, o mesmo se pode dizer da experimentação com a linguagem, deixando as duas extremidades da cadeia fílmica sem representantes cabais de seu perfil comercial ou experimental. Talvez esta noção de “pesquisa de linguagem”seja algo ainda muito expressivo das inquietações de cineastas do século passado e, quando imaginamos algo neste sentido, remetemos a obras cujo andamento quebrado deve-se a um rigor formal extremo, muitas vezes verborrágico, apoiado numa montagem e mise-en-scène que deixam expostas as contradições próprias de um argumento qualquer – o filme como ensaio. Hoje este choque de imagens contraditórias, sua dialética musical e aparentemente desconexa, próprias, por exemplo, a um Godard ou a um Glauber Rocha, converge todo ele para a contenção de um corpo numa arquitetura opressiva de sons e imagens ao redor. Expressões bem claras desta abordagem podem ser encontradas nos filmes premiados Leron mede os espaços, de Daniel Ifanger (USP), Charizard, de Leonardo Mouramateus (UFC) e Um dois três, vulcão, de Miguel Ramos (USP), ganhadores dos prêmios Destaque em Contribuição Técnica, Destaque em Pesquisa de Linguagem e Destaque em Contribuição Artística, respectivamente.

Leron mede os espaços,
de Daniel Ifanger (USP)

Enfim, percebe-se com a passagem do tempo um descompasso lexical cada vez mais profundo entre os novos realizadores e as gerações anteriores, de modo que alguns temas caros ao passado tornam-se parte de expressões quase em desuso, pois sua vida útil depende de obras que reforcem continuamente seu significado. Por exemplo, o prêmio Realidade Nacional, um dos sete dados pelo FBCU, parece ter perdido o sentido no momento em que a “fome”, assim como a inflação, deixou de constar como um dos problemas estruturais do Brasil. Um Brasil sem fome é como se fosse um Brasil sem a sua “realidade nacional” consequente, e, talvez por isto, os filmes universitários, ou pelo menos os responsáveis por sua seleção, deixaram atrás de si um vazio reflexivo sobre o país que, no meu entender, preocupa por colaborar com a falsa retórica desenvolvimentista. Ainda assim, o filme Irmãs, do carioca radicado na Paraíba Gian Orsini (UFPB), saiu com o prêmio de quem melhor traduziu ou explicou as idiossincrasias nacionais. Por fim, Quando o céu desce ao chão, de Marcos Yoshi (USP), ao focar o cotidiano de uma atriz paulista, credenciou-se para o prêmio Destaque em Expressão Cultural.

Após sete dias de intensa imersão no universo dos filmes universitários, não há como deixar de louvar o festival pela organização e perceber, hoje, as escolas como um vigoroso polo de produção audiovisual que, a meu ver, só tende a crescer ainda mais nos próximos anos. Resta ao FBCU estar mais aberto a esta realidade florescente, tornando sua competição menos centrada na região Sudeste e mais reflexiva desta fase de expansão da prática audiovisual pelos interiores do Brasil. Acesa a luz da última sessão da Mostra Competitiva Nacional, estava quase terminado meu papel nesta décima sétima edição. Um tanto melancolicamente deixei meu corpo ser levado até o aeroporto, como se fosse um personagem opaco de um dos muitos filmes vistos por mim, enquanto o taxista contava um caso escabroso envolvendo a polícia carioca. Agora, no momento em que finalizo este texto, sinto a instabilidade do inverno baiano tocando minha pele, enquanto todos os festivais perfilam-se na minha memória tornando-se, em perspectiva, o mesmo. Se estive lá um dia, foi como se voltasse do primeiro: um professor que nunca deixará de ser aprendiz.

4 comentários sobre “APONTAMENTOS SOBRE O 17º FBCU

  1. Thiago Piccinini

    Olá,

    Primeiramente gostaria de parabenizá-lo pelo ótimo texto sobre o evento, mas, como editor de som e mixador do filme “As Heranças”, de Giovani Barros da UFF, me sinto na obrigação de esclarecer que a exibição do filme foi totalmente prejudicada por uma tentativa frustrada de projetar o filme em 5.1, uma vez que o preset estava completamente errado, além de ocorrerem vários drops durante a sessão que prejudicaram o sinc.

    Espero que você tenha a oportunidade de assistir ao filme em outra ocasião.

    Forte abraço,
    Thiago

    1. guilhermesarmiento Autor do post

      Oi, Thiago,
      obrigado pelos elogios ao texto.
      Infelizmente a projeção acabou prejudicando
      o filme. Mas, na minha opinião,existem certas opções
      de montagem que acabaram causando esta impressão
      de inacabamento, como, por exemplo,quando aparece a sombra
      do câmera na sequência final. Nada contra metalinguagem,
      mas aquilo soa estranho à proposta dramatúrgica levada até então.

      Abs
      Guilherme

  2. Miguel Ramos

    Ei Guilherme,

    Parabéns pelo texto, acho que é um bom panorama do festival.

    Queria conversar sobre dois pontos dele.
    Em primeiro sobre a ideia que você aponta de que não houve no festival muitos filmes que pesquisaram a linguagem. Eu diria que não houve filmes que fizeram o que tradicionalmente se chama de pesquisa de linguagem, como você mesmo escreve, “quando imaginamos algo neste sentido, remetemos a obras cujo andamento quebrado deve-se a um rigor formal extremo, muitas vezes verborrágico, apoiado numa montagem e mise-en-scène que deixam expostas as contradições próprias de um argumento qualquer – o filme como ensaio”.

    Mas veja, você está descrevendo um tipo de pesquisa de linguagem possível, que de fato ficou consolidada nas figuras do glauber e do godard, e que de fato eu concordo que hoje poucos filmes se propõe a enveredar por aí – os motivos e significados disso são uma conversa à parte, por sinal bastante interessante. Aliás, acho interessante a ideia de um descompasso lexical entre gerações.
    Mas isso não quer dizer que, em outros caminhos, não haja pesquisa de linguagem. No festival, para além do “Charizard”, que muito merecidamente ganhou esse prêmio, eu diria que no filme do Daniel, “Leron mede os espaços”, no do Marcos, “quando o céu desce ao chão”, e no meu “um, dois, três, vulcão” há uma tentativa de pesquisa de linguagem. Os filmes podem alcançar resultados melhores ou piores, mas eu diria que todos estão buscado formas muito particulares e rigorosas para seus assuntos e objetos, e que em todos eles há uma busca visível, mesmo que com resultados por vezes não tão bem sucedidos. Me parece ocioso afirmar não haver pesquisa de linguagem onde em verdade não há um tipo determinado de linguagem. As duas coisas não podem ser a mesma coisa.

    O segundo ponto é sobre o prêmio da Realidade Nacional, quando você afirma que “o prêmio Realidade Nacional, um dos sete dados pelo FBCU, parece ter perdido o sentido no momento em que a “fome”, assim como a inflação, deixou de constar como um dos problemas estruturais do Brasil. Um Brasil sem fome é como se fosse um Brasil sem a sua “realidade nacional” consequente, e, talvez por isto, os filmes universitários, ou pelo menos os responsáveis por sua seleção, deixaram atrás de si um vazio reflexivo sobre o país que, no meu entender, preocupa por colaborar com a falsa retórica desenvolvimentista”.

    Acho que nesse seu argumento, você está pressupondo que a fome, seus sentidos e imagens, é necessariamente a realidade nacional em si mesma, e isso me parece problemático. Falando do meu filme, retratar a realidade nacional foi um dos meus maiores objetivos. Mas não escrevo isso para falar dele, ele pode ter sido bem ou mal-sucedido, isso é o de menos. O importante é que me parece que hoje o retrato da realidade nacional talvez precise passar longe das imagens da fome, talvez mais perto justamente de prédios novos, dos novos ricos, da classe AA. Um Brasil sem fome, como pelo visto caminhamos para ser, não é um país sem a sua realidade nacional consequente, mas sim um país sem a realidade nacional que em geral estamos acostumados a ver. Por isso mesmo urge criar outras. E me parece que alguns filmes do festival tentaram apontar para isso, o meu, e, em outra medida, e muito sutilmente, na descrição firme de uma classe social em um espaço estranho a ela mesma, o “Charizard”.

    Abs,
    Miguel

    1. guilhermesarmiento Autor do post

      Oi Miguel,

      Considero que meu papel seja mais provocar do que, propriamente,
      representar fielmente uma realidade qualquer. Antes de mais nada,
      escrevo a partir de um determinado ponto de vista.

      Mas me incomoda um pouco o fato das questões políticas serem encerradas
      dentro de um corpo isolado e incomunicável. Com isto perde-se de vista questões mais gerais e abrangentes.
      Sinto falta de filmes que buscam distorcer a linguagem, que procuram estender seus limites,
      e não simplesmente o corpo dos seus atores ou de suas personagens.

      No geral, os filmes se apresentaram muito lineares,
      apesar de instigantes como performance.

      Outra coisa diz respeito a realidade nacional. De certa forma, fui injusto com
      seu filme, que possui este viés político, sim, mas, ao mesmo tempo, enquadra-se
      dentro desta perspectiva performática que eu citei acima.

      Plantaram esta ideia errada e publicitária de que a fome no Brasil, assim como a inflação,
      acabou. Mas ela existe ainda! Não somente no Brasil. Parece que nós
      ficamos cegos para esta realidade, pois a publicidade diz o tempo
      todo o contrário até acreditarmos piamente nas estatísticas!

      Eu não vou cair nessa!

      A partir do que foi mostrado no FBCU, não vi estas questões surgirem com toda a firmeza
      que merecem. Mas isto não quer dizer que os filmes sejam ruins.
      É só uma observação.

      Abs
      Guilherme

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