PRIMEIRO LONGA UNIVERSITÁRIO BAIANO
Por Guilherme Sarmiento
Conheci Michal quando prestava concurso para Professor Adjunto da UFRB. Estava inquieto em cima dos lençóis finos e deslizantes do Cachoeira Apart Hotel. No outro dia, apresentaria meu memorial para a comissão julgadora e, depois, quem sabe, nunca mais voltaria àquela cidade encantadora, cujas encostas, logo após uma curva, abriram-se para que da janela do ônibus visse surgir pequenas igrejas, prédios coloniais, como se fosse uma brecha aberta no tempo e, de lá, vislumbrasse desde minha chegada a saudação de amigos tristes com minha volta prematura. Andei pelas ruas e entrei no primeiro bar aberto que encontrei. Ao fundo estava o polonês sanguíneo, um taberneiro que caberia muito bem em um conto de Andersen ou mesmo numa trilogia de Tolkien. Entre um gole e outro de cachaça, fui introduzido na cidade do candomblé pelos cuidados de um mago polonês. Com sua voz suave e grave, profetizou: “anjo – assim que ele chamava a todos, indistintamente – , essa vaga já é sua. Você vai lecionar aqui”.
Em seu longa-metragem de estreia, Violeta Martinez enfrentou, pelo menos, dois grandes desafios para documentar a vida do polonês radicado no Brasil Michal Bogdanowics. O primeiro deles era salvaguardar sua história de uma abordagem que servisse unicamente à memória de um grupo específico, o grupo do qual faço parte, que viu nascer a universidade e o seu entorno, este último tendo Michal como um dos seus mais inesquecíveis “personagens”. O segundo, certamente o mais difícil, era sondar os limites éticos de uma trabalho interrompido por uma tragédia. Pouco mais de dois anos após ver cumpridas as previsões proferidas no Café com arte, no momento em que eu testemunhava, como professor, a autora filmar as primeiras cenas com o protagonista de seu documentário, um acidente vascular cerebral entrou em cena e deixou por alguns meses o projeto suspenso por inquietantes e dolorosos questionamentos. Estes dois pontos – a tentativa de universalização de uma temática local, mais às mudanças de percursos forçadas pelo AVC – foram cruciais para definir as escolhas narrativas de Um filme para Michal.
Para tornar a história de Michal um modelo de identificação o mais abrangente possível, Violeta Martinez optou por destacar sua atuação como alpinista. Durante seus mais de vinte anos como membro do Clube Alpino Paulista, ele foi responsável por liderar expedições importantes, como a escalada ao pico de Malaku, no Himalaia, e, talvez seu maior feito, a chegada ao topo do Monte Roraima, uma ousadia até então inédida da qual constantemente se lembrava, atrás do balcão do Café, enquanto enchia nossos copos de cerveja. Aproveitando-se do rico acervo em super 8 registrando estas façanhas, bem como de entrevistas com os companheiros de escalada, a diretora vai estruturando tanto a principal linha narrativa da história como estabelecendo o repertório de imagens a partir do qual os dilemas do protagonista deverão ser interpretados. A montanha, suas quebradas e seus abismos, fornecem as metáforas ideiais para espelhar uma história cheia de altos e baixos, amargurada pela perda e, ao mesmo tempo, amante da vida e de seus excessos. Projetando-se desde estas regiões onde a natureza bruta confronta o homem a se superar constantemente, surge a figura gigante de Michal, acolhida num vale do Recôncavo após a morte do único filho, tentando, ao deixar uma carreira vitoriosa como empresário para trás, iniciar uma nova jornada interrompida, mais uma vez, pela doença.
Além da presença agregadora da montanha, vemos a narrativa fundamentada também pela voz reflexiva da própria autora, tratando cada cena como se fosse as páginas de um diário. Em seu curta anterior, Os Martinez, ela vinha experimentando o dispositivo que, com Um filme para Michal, avoluma-se como um indício de autoralidade: transfigurar a intimidade em questionamentos éticos sobre o que deve ou não ser mostrado passa a ser, com o longa, a consciência dolorosa de um amadurecimento. As duas obras delimitam esta questão abordando universos familiares excêntricos, deslocados, que, mesmo distanciados da convencionalidade, põem em jogo hierarquias capazes de inibir ou permitir as superexposições. Equilibrar-se sobre esta linha tênue parece ser o motor de uma busca por liberdade criativa, ou melhor, por uma afirmação criadora que esgarce os laços familiares para uma expressão própria, inteira e sem rédeas. No caso de Um filme para Michel, o formato permitiu à autora enfrentar com mais agudeza estes limites e, à força da tragédia, lidar com os poderes do acaso e redimensionar seu discurso diante de uma lacuna. Neste sentido, vemos desdobradas dentro do filme as metáforas que ela mesma fundamentou para seu “objeto”: restou também para a diretora uma escalada solitária e, depois de finalizada sua aventura, a exposição do resultado de uma viagem inventiva tanto de uma expressão artística própria como da mitologia de fundação de uma Universidade.
Lançado no último 20 de julho, no Centro de Artes Humanidades e Letras, na cidade de Cachoeira, com o auditório lotado, Um filme para Michal desde já se estabelece como um marco dentro da UFRB. Infelizmente não pude estar presente na sessão, mas, através de fotos disponibilizadas no Facebook, pude ver que Michal tem apresentado melhoras em seu quadro, fazendo-se presente durante a projeção junto a um de suas muitas “filhas”, Violeta Martinez. Que os dois consigam vencer os grandes desafios que a vida constantemente nos impõe, chegando ali, próximos às nuvens, exaustos e tranquilos, com os rostos banhados pela luz alpina. Evoé!
Parabens, Guilherme, por sua linda critica-quase-crônica. E à Violeta tb, pelo filme sensivel.
Muito bem escrito, despertou o interesse conhecer o longa…ótimo, curti!
Guilherme
Parabéns a todos!!!!
Abraço
JF