ENTREVISTA COM JOÃO MIGUEL – PARTE 1

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Em outubro propus para um grupo de alunos a realização de um seminário sobre o filme Estômago. Pedi que lessem o roteiro e depois o comparassem com o filme. A coleção Aplauso publicou o último tratamento do texto com anotações preciosas de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade, descrevendo o processo que levou o conto literário a se transformar num dos filmes mais marcantes dentro da cinematografia brasileira recente. Uma semana antes da apresentação do trabalho, Léo Costa veio até mim e me fez uma proposta inusitada: perguntou-me se não poderia trazer João Miguel para uma palestra, em apoio a apresentação de seu grupo. Léo é filho do ator e apresentador Jackson Costa, amigo pessoal de João Miguel, que naquele momento, coincidentemente, passava férias na Bahia. Rapidamente conseguimos articular a vinda de “Nonato” para Cachoeira e, no ambiente informal da sala de aula, em conjunto com o professor Roberto Duarte, Jackson Costa e os estudantes presentes, conhecemos um pouco da vida deste que é um dos maiores atores brasileiros de sua geração em um papo despretensioso, mas ainda assim revelador de sua potência criativa.

Nesta primeira parte da entrevista, João Miguel fala um pouco sobre suas origens como ator, explica sobre seu método de trabalho e revela, claro, como foi criar o personagem de Nonato em Estômago.

Entrevista transcrita por Roger Conrado

Roberto Duarte

Aqui na UFRB estamos construindo uma universidade no interior da Bahia, atentos a essas características regionais, e a gente nota que seu trabalho também se pauta pela construção de personagens fora do eixo, personagens que tem uma ligação grande com o nordeste…

João Miguel

Acho ótimo você falar isso porque quando o Leonardo (Costa) me convidou, estávamos no acarajé da Dinha, no Rio Vermelho. Disse que ia fazer um seminário sobre “Estomago” aqui na universidade e ai o Jackson (Costa) lançou a ideia que me trouxe aqui… Obvio que a gente pode falar do “Estômago” o quanto quiser, o quanto se interessarem, mas falar sobre esse aspecto da procura da personagem, desse lugar tão interessante do deslocamento do eixo me interessa muito. O cinema de alguma maneira representa o consciente e o inconsciente dessas classes todas que nos pertencem. Não só o país, mas o mundo como um todo é feito imagem, então, como que a gente se pluga com isso. Então, vir a Cachoeira no momento de minhas férias, também reavaliando um monte de coisas, é um modo diferente de trabalhar, pois o ócio, para o ator, é fundamental na criação e, também, para se re-conectar com a sua fonte criativa… Esse deslocamento é fundamental pro meu trabalho.

Roberto Duarte

Como foi sua formação?

João Miguel

Com nove anos de idade eu fiz uma participação numa peça chamada O cavalinho azul, no teatro Castro Alves. Minha mãe e meu pai me levaram até um moço chamado Alberto Navarro, que era um ator de teatro paulista. Eu já era muito expressivo, assim de brincar, de criar e inventar personagens. Também gostava de desenhar: eu desenhava muitos rostos e a partir desses rostos eu imaginava historias. Pegava as roupas de minha mãe, de meu pai, e inventava essas personagens. Morava no prédio de Nilda Spencer. Vinha de um geração muito influenciada pelo teatro baiano, pelo movimento artístico surgido nos anos 1960. Quando abri os olhos já estava na peça O cavalinho azul: entrava pela plateia, chegava no palco e interpretava um vendedor. Depois fui convidado pra fazer o Bombom Show, um programa de televisão infantil, lá em Itapuã, onde as crianças eram apresentadoras.

Jackson Costa

Foi ai que você entrevistou Glauber?

João Miguel

Glauber foi pra esse programa. Ele chegou e falou “vou lhe perguntar uma pergunta” e eu retruquei “vou lhe responder uma resposta”, coloquei a mão na cabeça e disse “Ih, rapaz, fiz alguma coisa errada” e Glauber respondeu “não, está tudo certo”. Entrevistei Irmã Dulce, Dada Maravilha… Com 14, 15 anos participei de um grupo chamado Tantas e Tamanhas, de uma turma mais do sertão da Bahia, numa peça chamada A viagem de um barquinho, onde um menino procurava o barquinho de papel após deixá-lo na correnteza do rio. Eu me lembro que uma vez eu vi o vídeo disso, eu pulava igual a um cabrito, uma imagem muito louca… Com 17, 18 eu decidi ir pro Rio de Janeiro. Fui estudar no CAL (Casa de Artes Laranjeiras). Fiz parte de uma turma muito legal, a maioria das pessoas seguiram carreira, que era uma coisa muito rara. No Rio me deparei com uma espécie de formação mais especifica, podendo já escolher alguns caminhos. Acho que ali tive encontros que foram fundamentais pra desenvolver um trabalho mais autoral de interpretação de personagem. Descobri o palhaço a partir de uma oficina dada por Luiz Carlos Vasconcelos, ligada a um teatro antropológico, muito atento às influências, digamos assim, das raízes culturais na formação de um ator. Abriu ali um leque de perguntas que eu acho que até hoje me acompanham: acho que eu sou uma pessoa muito “perguntadeira”, um ator muito perguntador

Roberto Duarte

Na preparação do ator tem uma parte do treinamento que é um treinamento corporal, colocar o corpo disponível pra figurar o outro: sua voz, sua postura, sua musculatura.Como você adquiriu isso?

João Miguel

Eu acredito muito nisso. Eu estava falando dessa primeira fase da formação mais profissional também porque foi ali que eu me dei conta do quão importante é a criação de vocabulário.

Roberto Duarte

Um repertorio de capacidade expressiva…

João Miguel

Um repertorio de perguntas e não de respostas. Antes de mais nada, descobrir que você é um veiculo, que o corpo do ator é um veiculo. A partir daí você vai criar personagens, criar um corpo, mas existe todo um trabalho de procura onde também tem que se construir esse terreno, tem de arar essa terra. Minha relação de criação dos personagens nasce do corpo, sem duvida. Isso vem da formação do teatro.

Guilherme Sarmiento

Mas quando você fala de um trabalho mais autoral, o que seria isso dentro da atuação?

João Miguel

Caminhos técnicos, físicos e psicológicos que envolvam a formação do homem, porque eu acho que antes de tudo o ator ou o artista é um ser humano, ele representa seu país, ele representa a terra. Quando eu falo de caminhos técnicos do corpo tem a ver com colocá-lo em zonas de desconforto, caminhos que levem a perguntas. Eu tenho facilidade de dançar com o quadril mais redondo, então eu vou procurar um quadril mais fechado. Isso é anterior a construção do personagem. No meu caso, o trabalho do palhaço foi fundamental, porque o palhaço me deu desde logo uma espécie de despojamento que você na vida civil não possui. Você cria máscaras: palhaço te dá uma possibilidade de se despojar através de uma máscara.

Roberto Duarte

Existem atores que se transfiguram e tem outros cujos personagens são muito parecidos com suas personalidades próprias. Você é um profissional que tem feito uma serie de personagens que tem muita semelhança entre eles, no entanto, a força do seu jogo dramático é muito grande. Qual é a parte que você traz de você que permanece sempre igual nos personagens e o que muda de um para outro?

João Miguel

Acho que cada aventura é um jogo diferente com os mesmos princípios. Eu acho que um deles é revelar algo através do personagem. Ele tem que te provocar. Surgir uma paixão que não pode ser imposta.

Roberto Duarte

Isso tem que acontecer desde a leitura do texto?

João Miguel

Eu acho que esse processo de alquimia, pode-se dizer assim, deve estar em todo o processo. Corre-se o risco, às vezes, de você trabalhar com diretores que acham que tem que transpor literalmente o personagem do texto. Tem um relato do Brook que é maravilhoso: ele conta sobre um diretor que ficou estudando Hamlet durante 6 anos. Ele sabia exatamente, depois de tanto tempo, como seria o Hamlet, porém, não se preparou para receber o ator que iria dar vida a personagem. A partir do momento que incluiu o intérprete, mudou tudo, ou seja, aquela concepção dele automaticamente se moldou, se transformou. Então, para mim, o processo também vai me abrindo caminhos – e é obvio que tem vários caminhos.

Guilherme Sarmiento

Você é um ator que transita tanto por uma construção mais autoral, como trabalhou na Rede Globo, realizando um trabalho até bem interessante na novela Cordel encantado. Gostaria que você comentasse como é experimentar estes dois lados da atuação.

João Miguel

Se você constrói um trabalho que de alguma maneira navega por um lugar mais autoral, você vai conseguir dialogar melhor com qualquer outro. Vai levar o que é autoral pra esse lugar, entendeu? Essa é a base, o alicerce, o chão pra você poder se arriscar também em outras praias e não ser, digamos assim, moldado. Eu acho que o perigo de qualquer coisa é a estagnação ou a estagnação pode ser perigosa em qualquer aspecto. Eu acredito no movimento vivo. Acho que a gente tem um parâmetro do que funciona ou não funciona, mas isso quem vai dizer é o espectador. Porque na verdade essa relação com o público se dá de uma maneira muito singela. Eu digo às vezes que meu apogeu como ator ninguém viu: foi quando eu interpretei o Bispo do Rosário. A cela do bispo está me dando chão, esta me alimentando, e eu levo isso pra vários outros lugares onde aparentemente aquilo não existe mais. Você carrega tudo o que você fez.

Guilherme Sarmiento

Considero o filme Estômago um trabalho importante na sua carreira. Aproveitando essa deixa, queria que você falasse um pouco dessa relação com o diretor… Como foi essa parceria?

João Miguel

Falando do Estomago, não foi uma relação fácil por exemplo, mas eu acho que diante do resultado isso não é o mais importante. Isso ficou muito claro pra mim quando acabou o filme. Eu falei: “olha, a gente pode não concordar com varias coisas, mas conseguimos construir uma obra”. A aventura da criação passa por ai também. No caso de Estomago existiu uma disponibilidade do ator, do ator para com aquele personagem, e disponibilidade do diretor para com aquele ator. Marcos queria muito que eu fizesse o filme. Eu disse que acreditava muito que a personagem poderia chegar em algum lugar, mas ainda não estava claro pra mim este percurso. Eu li o roteiro, alguma coisa no texto me jogava uma pista para ir atrás da personagem. Já conhecia aquele cara, parecia com um antigo empregado de minha casa, Santinho, comecei a ver de uma maneira muito particular, por dentro, o Nonato. Foi a partir daí que me inspirei pra falar sobre esta relação patrão e empregado, que no Brasil é muito complexa e profunda. Quis que o empregado não fosse apenas um nordestino, porque essa relação se dá em qualquer lugar do mundo, qualquer cu do mundo, mesmo dentro de uma capital. Insisti muito com o Marcos nesse aspecto: não queria cair nessa cilada da caricatura. A insistência dele em querer um nordestino como protagonista, por um lado, foi muito positivo pro filme, porque criou uma espécie de dialética em minha interpretação, me levou muito pro palhaço, por exemplo. O Nonato não deixa de ser um palhaço criando esse contraponto. Ele conversa com a caricatura, sem deixar de mostrar esse movimento dialético com o poder.

Roberto Duarte

Seu processo de criação, sua vontade, nasceria do roteiro?

João Miguel

Acho que nasce do roteiro de mil maneiras. Às vezes você também tem interesse de trabalhar com o diretor, mesmo que aquele roteiro não te instigue tanto… Eu acredito num cinema brasileiro que se descubra durante a própria cena. Que a gente estude bastante, ensaie bastante. Um exemplo desse processo foi no filme Ex-isto, do Cao Guimaraes, baseado no Catatau, de Paulo Leminski, que é um livro infilmável. Ele parte da situação hipotética da vinda de Descartes ao Brasil, junto com Maurício de Nassau. O que aconteceria com o pensamento cartesiano nos trópicos? Cao, por exemplo, não tinha roteiro e eu considero um dos filmes mais importantes que eu fiz a nível de linguagem ou de pontuação de linguagem, um filme 100% autoral. Nesse caso, tinha de haver uma afinação muito forte de identidade artística com o diretor. Geralmente eu escrevo muito quando eu estou compondo um personagem, tenho cadernos e mais cadernos de anotações. Às vezes eu escrevo, tento escrever como se fosse o personagem, descobrir com que lógica tem essa escrita, particularmente, pra mim. Isso me ajuda muito, porque o que é subjetivo vira palavra. Muitas coisas que eu escrevo ali pensando vira texto. No caso do Estomago, foi fundamental pra eu inventar esse Nonato, construir o psicológico desse homem doce mais que trazia essa faca rasgando o peito.

Jackson Costa

Você cozinha bem hoje depois do Nonato?

João Miguel

Eu como muito bem. Eu adoro comer (Risos)

Guilherme Sarmiento

Não era você que fazia os pratos? Eu achava que era você…

João Miguel

Eu fiz todos os pratos! A farofa de dendê, os beirutes… Não tenho esse costume, mas se eu praticasse mais talvez eu fosse um bom cozinheiro. Eu tenho uma relação muito forte com comida, pois minha descendência é italiana. Me lembro quando era muito pequeno, meu pai, na época da ditadura, do nada chegou assim e falou pra mim “meu filho, se um dia você estiver passando por uma dificuldade de dinheiro e de repente você ganhar uma grana, não se acanhe: vá no melhor restaurante, peça a melhor comida que você puder e, depois, vai se sentir o homem mais rico do mundo”.

CONTINUA…

4 comentários sobre “ENTREVISTA COM JOÃO MIGUEL – PARTE 1

  1. Ila

    Não sei nem o que dizer, mas mesmo assim vou me arriscar! É incrível encontrar pessoas que conseguem nos emocionar e claro, não poderia deixar de falar desse cara extraordinário João Miguel. Me emociono em ver suas obras e todas as vezes que tenho oportunidade o admiro ainda mais pelo seu talento,vc consegue ter a humildade de fazer o que ama. Posso imaginar que não é nada fácil para um ator realizar sonhos e que são eles que nos fazem ser capazes de ir muito além. Parabéns! Historias incríveis ser humano maravilhoso.

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