COBERTURA-CACHOEIRA DOC

O homem comum

Por Rafael Beck Andrade

O ato de resistir

O Festival iniciou na noite de terça (02) em grande estilo com a apresentação do longa documentário de Eduardo Coutinho, Cabra Marcado para Morrer (1984). O filme relata a história de um homem que lutava por seus direitos e de todos com quem convivia e acabou sendo brutalmente assassinado. A origem do documentário é a tentativa de Coutinho em filmar uma ficção sobre a luta do líder camponês João Pedro Teixeira. Interrompido pela ditadura em 1964, Coutinho retornou 20 anos depois e fez o documentário lembrando das filmagens e realidades da época e contrapondo-as com a vida da esposa do camponês, Elizabeth Teixeira, que se tornou ativista pela causa.

O tempo foi cruel com essa mulher forte e esperançosa que vemos na tela: Elizabeth foi obrigada a deixar os filhos para trás e ser testemunha em dezenas de processos abertos pelas revoltas camponesas e pela realização do filme. Além dela, outras pessoas que participaram das filmagens também relatam suas lembranças e histórias. De forma intimista, Coutinho adentra a vida pessoal de cada um desses personagens – nos quais estão incluídos alguns dos 12 filhos de João e Elizabeth – e traz revelações inusitadas. O cineasta, porém, não esquece de denunciar a Ditadura trazendo para a tela declarações do governo que diziam que o filme estava sendo filmado com o objetivo de reunir revoltosos e estimular a desordem no país.

A sessão sobre a família Teixeira continuou no dia seguinte com a apresentação do filme A Família de Elizabeth Teixeira (2014). Trinta anos após a realização do primeiro filme, Elizabeth é uma idosa de 87 anos com alguns de seus filhos espalhados pelo Brasil e outros perdidos há muito tempo. Nesse longa, Coutinho opta por mostrar a vida dos filhos da matriarca: vai do sudeste ao nordeste revelando as diferentes vidas que a prole de um dos maiores líderes da reforma agrária levam. Assim, o diretor volta a revelar histórias cada vez mais intimistas e curiosas. Cada filho de Elizabeth lembra de alguma coisa muito diferente, cada um passou por experiências inusitadas devido à perseguição sofrida pela família. Para finalizar, Coutinho ainda conta com a surpresa de saber que uma das netas do casal se tornou professora de história e trabalha com a restauração e recuperação da memória das lutas de João Pedro e Elizabeth Teixeira.

O diretor faz uma ligação entre o passado (décadas de 1964 e 1984, quando tentou gravar a ficção e quando gravou o primeiro documentário, respectivamente) e os dias de hoje (2013). E nessa tentativa de comparar e denunciar, Coutinho exagera ao adentrar no mais profundo íntimo de seus personagens. Não que isso o torne apelativo, mas é exagerado. No final das contas, o que o cineasta faz é revelar o Brasil de forma nua e crua, sem pudor em mostrar os sofrimentos e as consequências advindas do período da ditadura. Por vezes, desrespeitando os limites do que pode ser público e do que, preferencialmente, deveria permanecer em âmbito privado. Para concluir essa denúncia com o filme apresentado no segundo dia do evento – que, na realidade, é um extra do DVD do filme de 1984 – o documentarista acaba trazendo toda a diversidade brasileira em uma obra que trata apenas do povo brasileiro.

Cabra marcado para morrer fez parte da Mostra Resistência apresentada pelo festival. No sábado (06), os curtas Manhã cinzenta e África 50 e o média Primeiro caso, segundo caso fecharam a mostra que tinha como objetivo trazer filmes que contém como temática a resistência frente a repressão. Cada um deles foi filmado em um local diferente do mundo, mas todos acabaram sendo perseguidos pelos governos vigentes e até proibidos, sendo vistos como filmes subversivos para suas épocas. O mesmo, como citado acima, ocorreu com Cabra marcado para morrer. Manhã cinzenta também tem como pano de fundo a ditadura no Brasil; África 50 mostra uma África na década de 1950 explorada pelo protecionismo francês; e Primeiro caso, segundo caso foi filmado durante o processo que culminou na queda da monarquia islâmica e na ascensão da república no Irã.

De Olney São Paulo, Manhã cinzenta teve seus negativos confiscados pela ditadura em 1969. O curta mistura realidade e ficção para mostrar os terrores feitos pelos políticos da época. Mas Olney não mostra apenas o terror, ovaciona aqueles que manifestaram. De forma simples, trata os manifestantes como verdadeiros heróis que, infelizmente, não terão a mesma vitória certa que acompanha os heróis das histórias em quadrinho, muito pelo contrário. E é para mostrar essa frustração que o diretor sufoca o espectador através de cenas pavorosas e por uma trilha sonora forte e expressiva. Em uma cena desesperadora, por exemplo, uma personagem corre de um lado a outro fugindo de vários soldados que apontam suas armas para ela, enquanto isso, um homem fica parado apenas esperando que seu destino seja selado pela munição que deixará aquelas armas e se impregnará em seu corpo.

Indivíduos curiosos, uma vida tranquila e muita cultura compõe as primeiras cenas de África 50, de René Vautier. O diretor, assim, apresenta a beleza do povo africano, foca em crianças que olham sua câmera com o desejo de conhecer o objeto, mostra a tradição e o modo de vida adotados por aquele povo e a forma carinhosa com a qual tratam uns aos outros. Depois, entretanto, Vautier deixa os sorrisos, as brincadeiras e as danças de lado e esbofeteia o público com cenas aterradoras da exploração europeia nas colônias da África Ocidental Francesa. O que antes era belo e harmônico passa a se tornar triste e tão sufocante quanto as cenas de Manhã cinzenta. As mulheres que antes arrumavam os cabelos estão mortas, as crianças que antes pulavam alegremente nas águas estão mortas, os homens que antes cuidavam dos animais que alimentariam suas famílias também estão mortos. E todas essas mortes são ocasionadas por um motivo incompreensível, mas simples: a sede de poder que envolve os franceses e o capitalismo, que, sem dúvida, é o maior aliado nessa busca incansável.

Imagine essa cena: um professor está de costas escrevendo no quadro, um garoto, no fundo da sala, bate um apagador na mesa. Sem conseguir identificar o aluno, o professor ordena que os jovens do fundo da sala saiam e voltem apenas em duas circunstâncias: ou quando contarem quem é o “culpado”, ou após passarem uma semana do lado de fora. Baseado nessa encenação, Primeiro caso, segundo caso questiona a solidariedade de grupo e o sistema vigente que faz de tudo para dissolver qualquer grupo que possua opiniões próprias. Para que as mais diversas pessoas possam dar suas opiniões – o que inclui, por exemplo, estudiosos e líderes religiosos e políticos -, o diretor apresenta as duas escolhas que podem ser feitas pelos alunos: na primeira, um aluno revela quem é o culpado e volta para dentro da sala de aula cabisbaixo e, aparentemente, envergonhado, no segundo momento, todos esperam a uma semana e voltam orgulhosos para a sala de aula. Qual seria a melhor opção? Ceder de imediato ao sistema, ou se mostrar resistente e acabar, uma hora ou outra, retornando ao regime? A Revolução Iraniana, por exemplo, trocou o sistema autoritário monárquico, por uma república comandada por líderes militares religiosos radicais. O que você iria preferir?

Como boa parte do planeta, o Brasil, a África e o Irã foram dominados por ideologias radicais que estabeleceram seus regimes de forma autoritária e violenta. A boa notícia é que o povo brasileiro se revoltou e pediu por um governo justo e realmente democrático para que a ditadura terminasse em 1985. Em 1958, a independência da Guiné fez com que os demais territórios africanos começassem a se erguer contra o sistema vigente, o que culminou na independência total até 1960. Há pouco tempo, a Primavera Árabe modificou as realidades sociopolíticas de todos os países da região, e com o Irã não foi diferente. Mais que denunciar os abusos políticos pelos quais o mundo passou, todos os filmes da Mostra Resistência lembram a importância de a população se erguer contra tais regimes. No ano passado, manifestações no Brasil pediram por melhores condições no país. Mais que exercer seu papel como cidadão, o povo deve clamar por igualdade, resistindo a parâmetros que fogem completamente aos direitos de liberdade de expressão, construindo uma identidade forte e exemplar, passando, assim, a existir de forma concreta.

A vida dos homens

No final da tarde durante a noite de sexta-feira (05) foram apresentados o curta La Llamada e os longas Aprender a ler para ensinar seus camaradas e A vizinhança do tigre. Diferentes são os lugares apresentados por esses três filmes muito singulares, diferentes são, também, as realidades dos personagens que surgem durante as histórias, porém, todos possuem uma coisa em comum: o homem. Nesse contexto, La llamada revela um pouco o dia-a-dia de um cubano revolucionário de 87 anos muito convicto de seus ideias e pouco aberto para o novo; Aprender a ler para ensinar meus camaradas acompanha a visita de dois africanos à Bahia; A vizinhança do tigre, por fim, traz as histórias de jovens garotos moradores da periferia de Contagem.

La llamada, de Gustavo Vinagre, foi realizado em uma pequena vila em Cuba. Outrora, o local foi destinado a operários de uma fábrica que, hoje, está fechada. A fábrica deixou o local, os moradores continuam lá. Lázaro Escarze, um comerciante proprietário de uma pequena venda, foi o escolhido por Gustavo para representar esse povo. Segundo o próprio diretor, ele se propôs a filmar a primeira pessoa que encontrasse. Assim, Gustavo permaneceu 40 dias convivendo com o protagonista e, depois, em três dias, realizou o curta de 19 minutos em preto e branco. Lázaro passa o dia enclausurado pelas grades que protegem sua venda e, com a ajuda de um jovem, atende seus clientes por uma pequena abertura. Agora, Lázaro terá, pela primeira vez na vida, um telefone instalado em sua casa. Quais serão suas reações com essa nova tecnologia? Segundo Vinagre, Lázaro se destaca pela maneira natural com a qual toma suas decisões e pela capacidade de colocar uma ideologia acima de interesses pessoais, e as escolhas acerca do tal telefone não tomarão caminhos diferentes. A fotografia lembra que Lázaro é um homem das antigas. As grades remetem ao enclausuramento ao qual o próprio homem se propõe para poder viver em seu sistema muito próprio.

O título de Aprender a ler para ensinar meus camaradas, de João Guerra, é baseado em um “ditado” angolano que diz respeito às informações que um homem deveria coletar sobre o espaço a ser explorado para ensinar seus irmãos sobre aquilo. Guerra traz os dois músicos de Angola para que, juntos de dezenas de nomes de grande importância cultural para o Brasil, possam explorar e aprender um pouco sobre a cultura baiana, baseada na cultura africana. Guerra inicia o longa em Luanda, apresentando a vida pessoal dos artistas e conhecendo suas famílias, ouvindo histórias e aprendendo um pouco sobre a África. Depois, a dupla vem ao Brasil e confere tudo o que o povo afro-brasileiro pôde construir a partir de suas origens. De forma intimista, o diretor recolheu depoimentos de pessoas na África e no Brasil, grandes nomes para a vida dos músicos e grandes personalidades da cultura brasileira, e os misturou com canções muito específicas sobre o tema apresentado.

Depois de Luanda, João Guerra vem a Cachoeira e explora suas belezas naturais e arquitetônicas, exaltando a cultura e a importância do município, que já foi um dos mais importantes economicamente para o país e ainda é uma das maiores referências nacionais em âmbito cultural e religioso. Na cidade, um dos personagens relembra o fato de os africanos terem a necessidade, quando chegaram ao Brasil, de se agruparem para sobreviverem às mudanças encontradas depois de serem obrigados a deixar sua terra de origem. Com tal agrupamento, segundo o personagem, foi que as culturas começaram a se fundir e formar a tão vasta e bela cultura negra no país. Aqui, os músicos angolanos encontram outras pessoas que vivem e amam a música e que estão empenhadas em não deixar os costumes criados pelos antepassados morrer. E talvez seja essa união de amantes da música e de sua história que componha a maior beleza desse filme.

A vizinhança do tigre, de Affonso Uchoa, deixa de lado personagens mais velhos e que tenham uma carga história inimaginável, e dá espaço aos jovens da periferia: Juninho, Menor, Neguinho, Adilson e Eldo, que vivem entre a cruz e a espada ao serem obrigados a escolher caminhos muito distintos: o trabalho ou a diversão. A realidade de todos é muito simples e as famílias pouco ajudam na formação consciente desses jovens. Aos poucos conhecemos o cotidiano deles e concluímos que a máxima de suas vidas é estarem vivendo num sistema capitalista e individualista, onde nada importa que não seja o lucro. Para os jovens é ainda pior: o termômetro para saber o quanto se viveu, é o número de cicatrizes deixadas por tiros pelos quais se foi atingido.

Há uma grande possibilidade de se assistir a esse filme e recordar um pouco Cidade de Deus e Cidade dos Homens, ambos retratos de jovens que vivem em favelas do Rio de Janeiro. Aqui, entretanto, Uchoa torna tudo mais particular à medida que não se importa em mostrar muitas histórias ou outros personagens além dos citados anteriormente. A forma como o diretor conta essas histórias chega a parecer uma ficção muito bem inventada, mas os ângulos escolhidos por ele e a forma como mostra o espaço em que os jovens vivem nos lembra de que tudo aquilo é, infelizmente, muito real. Apesar de a montagem do filme ser um pouco lenta, fazendo-o se tornar cansativo em alguns momentos, a fotografia muito realista é um deleite para os olhos do espectador.

Lázaro, de La llamada, é o retrato de um povo que já sofreu muito e aprendeu com toda sua história, mas que tem certa resistência em abandonar o passado. Aprender a ler é uma troca mútua: Guerra apresenta a cultura africana no início do filme e, depois, é apresentada aos angolanos a cultura brasileira. O tigre do título de A vizinhança do tigre é, claramente, uma referência a tudo o que os jovens tem em seu interior, a vizinhança, portanto, é tudo o que está em volta deles. E se Gustavo Vinagre é capaz de fazer o público compreender que Lázaro é esse retrato do homem idoso convicto em tudo o que fez e faz, se Guerra é capaz de fazer com que o espectador, assim como seus personagens, aprendam um pouco sobre as culturas tão significativas vistas em seu filme, e se Uchoa é capaz de convencer o público de que o sistema ao qual os garotos estão inseridos é errado e ultrapassado, então esses filmes valeram a pena.

Baladas de Homens Comuns

Em 1995, o diretor Carlos Nader iniciou um documentário despretensioso onde ele mesmo perambulava pelas vidas de caminhoneiros aleatórios. Nader conversava sobre o cotidiano com os homens e, sem mais nem menos, fazia perguntas profundas sobre a existência humana. Entretanto, o cineasta se deparou com uma ótima surpresa chamada Nilson. Um caminhoneiro como outro qualquer, o gaúcho chamou a atenção de Carlos, que desistiu da ideia de abordar vários caminhoneiros e passou a seguir a vida de Nilson, seu homem comum.

Durante os anos de 1995, 1996 e 1999, Carlos Nader acompanhou o novo amigo em toda sua rotina. Para começar seu documentário, conheceu a esposa e a filha de Nilson, adentrando na vida íntima daquela família e se tornando, por vezes, parte dela. Nader também acompanhou os serviços de Nilson como caminhoneiro, sempre registrando as ideias, preocupações e até mesmo desabafos de seu protagonista. Após muitos acontecimentos – o que incluiu perdas importantes, o crescimento da filha que já se tornou mãe e o conhecimento de novas pessoas – Carlos, entre os anos de 2010 e 2012, voltou a se tornar parte daquele clã formado, agora, por Nilson, a esposa, a filha e a neta.

Para apresentar a história de Nilson ao espectador, Carlos Nader se vale de um artifício que pode parecer um pouco estranho para algumas pessoas, mas que funciona de forma perfeita nesse longa. Alterna cenas de seu registro sobre o caminhoneiro com cenas de dois filmes: o longa dinamarquês da década de 50, Ordet, de Carl Breyer, e um filme realizado pelo próprio diretor para estar no documentário, Life, the dream. As histórias são as mesmas: uma família com uma mulher grávida e um homem louco que alerta a todos a possibilidade de a morte estar próxima. A diferença é que o dinamarquês explora uma família mais simples chefiada por um patriarca, o filme de Nader retrata uma família quase aristocrática inglesa chefiada por uma mulher. As loucuras, os problemas e os enredos são muito semelhantes. Formas diferentes de contar a mesma história.

E talvez essa conclusão sobre serem a mesma história seja o que mais aproxima os filmes de Homem Comum: os homens são sempre os mesmos, o que os difere são as formas que eles mesmos contam suas histórias de vida. Ao longo do documentário, Nader compara as vidas dos personagens das três histórias de forma muito sutil e intimista. Sem respeitar qualquer linearidade, as histórias, ou estórias, se cruzam em algum momento, seja pela tensão ou pelo cotidiano vivido pelos personagens. Um ponto interessante a ser comentado quando falamos sobre a relação entre Life, the dream e Homem comum é a forma como Nader se utiliza de animais para reforçar a banalidade da vida humana. Na ficção, um personagem com distúrbios mentais, preocupa-se com as formigas que, sem olhar para cima, realizam sua dança frenética para conseguir alimento. No documentário, os porcos que Nilson leva em seu caminhão são o alvo para mostrar um pouco de realidade triste e forte, sem julgar a imagem do protagonista.

Enquanto o filme rodava na telona, não pude deixar de olhar algumas vezes para trás e conferir a reação da plateia frente ao longa. Em momentos específicos, Nader fazia suas perguntas sobre a vida e, sem saber muito por onde ir, os personagens reagiam com surpresa e davam as respostas mais inusitadas possíveis, arrancando gargalhadas do público. O mesmo acontecia quando cenas naturais da família eram reveladas. Mas quando contava-se alguma história triste, ou quando alguma revelação inesperada era feita, o silêncio na sala era aterrador, a tensão inevitável e as expressões de espanto, pena ou medo eram certas. Tudo isso por que Nilson e sua família são pessoas como quaisquer outras, são homens e mulheres comuns que vivem todos os problemas e todas as felicidades que qualquer um de nós pode vivenciar. E, mesmo que com uma dose de humor, revelar a vida nua e crua, como ela realmente é, sempre causará espanto e balançará o mais profundo eu de cada ser humano.

Diferentes realidades do país

A tarde de quinta-feira (04) terminou com filmes que expõe histórias de diferente cidades do nordeste brasileiro. Enquanto Caixa d’água: qui-lombo é esse? ressalta o passado do negro e revela a beleza da negritude de hoje, Luíses – Solrealismo Maranhense retrata a situação complicada vivida pelos moradores da capital, São Luis.

Caixa d’água: qui-lombo é esse?, de Everlene Moraes, sintetiza, em 15 minutos, a história do negro no Brasil e as dificuldades pelas quais os mesmos passaram durante o tempo em que foram escravos e pelas quais passam até hoje. A diretora acerta em optar por apresentar imagens na tela enquanto ouvem-se vozes em off de negros que revelam suas histórias. Algumas imagens, muito minimalistas, mostram os detalhes dos corpos e da pele dos negros, outras focam apenas nos rostos, nas expressões que velam mais que palavras. Outro acerto de Everlene, dessa vez muito curioso, foi optar por apresentar, também, negros com imagens projetadas em seus corpos, como fotografias e outras exclusividades que revelam a cultura negra. Ainda sobre essa cultura apresentada no filme, é importante ressaltar a citação do candomblé, do samba de roda e outras movimentações culturais. Filmado em um bairro de Aracajú, estado do Sergipe, conhecido como Morro dos Quilombos, Caixa d’água é um filme intimista, emocionante e muito inteligente que, acima de tudo, reverencia a cultura negra de forma pra lá de respeitosa.

Luíses – Solrealismo Maranhense, de Lucian Rosa, também reverencia a cultura e o povo de sua cidade, mas pretende mais que isso: denuncia as mazelas da capital utilizando metáforas inesperadas. De início, o longa surpreende ao apresentar um ex-ator que enlouqueceu frente à cidade de São Luis – o que nos é revelado por uma voz em off – e passou a entoar palavras nas praças da cidade. Mais personagens fictícios, que representarão os Luíses do título, ou seja, o povo maranhense, surgirão. Logo começamos a perceber as denúncias ao sistema público de saúde que não cumpre com seus deveres em atender a população, depois virão críticas ao transporte público, à educação, às condições de moradia (incluindo saneamento básico) e, por fim, as críticas políticas à família Sarney, culpada, segundo o filme, por todos esses problemas. Revelam-se, também, algumas manifestações muito particulares e agradáveis para que tais problemas sejam sanados, entretanto, isso não é suficiente para dar coesão ao longa. Separadas, as cenas funcionam muito bem. Cada discurso sobre as mazelas da sociedade e as denúncias feitas aos Sarney e aos governos aliados são muito realistas. Todavia, a apelação e a não resolução do que, segundo o filme, acontece em São Luis, não conectam as partes para formar um filme único.

Caixa d’água e Luíses são filmes nordestinos que revelam realidades sobre diferentes locais dessa região tão vasta e diversificada do Brasil. Enquanto um aposta em planos minimalistas e em histórias vivenciadas por negros do mundo todo, o outro prefere se ater aos problemas locais. Ambos os filmes são felizes em suas intenções primárias: um homenageia um povo que muito sofreu (e ainda sofre), o outro denuncia mazelas locais e clama por mudanças. O primeiro emociona e conquista o espectador aos poucos, levando-o, voluntariamente, ao belo mundo da negritude e o convence de toda essa beleza. O segundo simplesmente joga os problemas na cara do espectador, procura culpados e termina sem coesão. Ambos são filmes com pretensões louváveis, porém, com diferentes resultados.

Rafael Beck Andrade é aluno do primeiro período do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB, e mantém o Blog Projeto 399 filmes http://projeto399filmes.blogspot.com.br/2014/09/as-vidas-dos-homens.html

Um comentário sobre “COBERTURA-CACHOEIRA DOC

  1. Everlane Moraes

    Olá Rafael Beck Andrade! Obrigado pelos comentários a respeitos dos filmes exibidos no CacahoeiraDoc, edição 2014.
    Sou Everlane Moraes, direto do doc Caixa D’água: Qui-lombo é esse? e achei o seu comentário muito bonito! Que bom que gostou do filme que dirigi e bem… é isso!

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