O POETA NO CINEMA BRASILEIRO

Terra em transe

Por Guilherme Sarmiento

Houve uma época em que a poesia era maior do que o poeta. Ela era tão maior que seu criador desaparecia no ato de uma fala, de uma voz, sempre reencarnada, ao preço de apagar o nome dos que a proferiam seguidamente. A fluência e a musicalidade das estrofes passavam pelos rapsodos como a água levada por um riacho: elas chegavam até ele em função de um acidente, de um desvio, não raro, de um brusco declive que entornava parte da corrente em sua perplexidade e o fazia declamar como se não pudesse mais conter seu transbordamento. A isso chamavam – e chamamos – de inspiração. Roger Chartier, em seu ensaio Formas da oralidade e publicação impressa, comparou muito bem a “Ode”, o canto ritual declamado nos banquetes dos deuses, a “um arrebatamento” que se exauria no presente, um acontecimento fugidio pelas constantes reinvenções da oralidade e, por isso, um substrato muito rarefeito para o apoio de uma assinatura. Se hoje vemos o “vate”, o poeta, como alguém original, devemos isso ao romantismo. E, sem dúvida, quando observamos com atenção a maneira como o poeta vem sendo representado pelo cinema brasileiro, observando filmes marcantes de sua cinematografia, veremos que sua estampa deve mais aos casacos puídos de Baudelaire, recortados sob os linóleos de uma taberna imunda, do que à etérea, quase indivisível, figura de Hesíodo em meio à opressão do cosmos.

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão namoro estrelas;
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!

Ando roto, sem bolsos nem dinheiro,
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas;
E quem vive de amor não tem pobreza.

Não invejo ninguém, nem ouço a raiva
Nas cavernas do peito sufocante,
Quando à noite na treva em mim se entornam
Nos reflexos dos bailes fascinantes.

Álvares de Azevedo, expoente máximo do romantismo no Brasil, detém o poder de uma cartilha onde se funda um repertório posteriormente aproveitado por inúmeros cineasta brasileiros modernos e contemporâneos. Como não ver neste despojamento orgulhoso e independente, neste feliz passeio pela sarjeta, o modelo de uma postura de vida presente tanto na caracterização de Zizo, de A febre do rato, ou Torres, de Alma corsária? Castro Alves, personagem da cinebiografia de Sílvio Tendler, extraiu diretamente da fonte romântica aquilo que outros filmes reproduziram ao projetar no presente os conteúdos legitimadores do heroísmo do poeta, condutas capazes de satisfazer as expectativas do público com relação a seu estar no mundo: inconformismo. Dentro desta perspectiva de construção exemplar, paradigmática, fica difícil assumir as honrarias adquiridas com a escrita, ou mesmo a inércia prevista no ato, sendo pouco provável a representação de poetas cujas vidas transcorreram encerradas nos gabinetes, polindo seus versos simplesmente para fins estéticos, ou totalmente satisfeitos com seus Jabutis expostos em meio às poltronas e aos abajures da sala de jantar. Olavo Bilac teria poucas chances de protagonizar um longa brasileiro a não ser como um antipático e pomposo antagonista, martelando seus broches no brejo das letras, enquanto, antes da chegada das chuvas, o girino modernista tornava-se sapo, de um pulo, para desacatá-lo:

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
– “Meu pai foi à guerra!”
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: – “Meu cancioneiro
É bem martelado.

Com esses versos, Manuel Bandeira sela de forma definitiva a atitude irônica do poeta diante da tradição parnasiana e, certamente, esta impostura se somará ao legado romântico, bronzeando sua palidez tuberculosa nos piqueniques à beira mar e na saída dos blocos carnavalescos sem, contudo, tranquilizá-lo diante de uma missão literária e ideológica sobre humanas. Esse romantismo mitigado pela verve modernista parece ser a matriz de nosso desconsolo poético. Não é coincidência o fato de Joaquim Pedro de Andrade iniciar sua carreira de cineasta dirigindo um curta sobre, justamente, seu padrinho, O poeta do castelo – Manuel Bandeira – e, posteriormente, encerrá-la com a cinebiografia de Oswald de Andrade no irregular O homem do pau brasil. Acompanhamos com esses dois exemplos, cada um colocado em um extremo de sua trajetória artística, o percurso de uma identidade intelectual e afetiva crescentes com o modernismo, retirando a experiência romântica do seu isolamento monástico inicial para jogá-la no erotismo ostensivo e transgressor que, ainda assim, não esconde do público os motivos de uma filiação já bem sedimentada. A personalidade controversa de Oswald em O homem do pau brasil desdobra-se na interpretação de dois atores, Flávio Galvão e Ítala Nandi, espelhando uma personalidade duplicada, cindida por forças diametralmente opostas, uma encenação tipicamente romântica por recorrer de forma original ao tema do duplo, na verdade, um duplo carnavalizado, com objetivos menos sinistros se comparados aos clássicos da literatura fantástica como Dr. Jekill e Mr. Hyde, de Stevenson, ou as criaturas saídas dos contos de Hoffmann. Porém, isso não quer dizer que o recurso aqui tenha apagado certos conflitos de ordem ideológica referentes a estas escolhas estilísticas que, no fundo, servem para “alegorizar” a postura do intelectual diante dos desdobramentos da história.

Marginais, transgressores, originais: estes são os adjetivos que ajudam a construir o perfil deste ser onde a vida e a arte se conjugam e o conflito se dá sempre de forma grandiosa, grandiloquente, pois o poeta no cinema brasileiro, mais do que qualquer outro personagem, adquiriu seu semblante taciturno ao concentrar em si tanto os dilemas envolvendo as implicações entre arte e indústria, importados dos países imperialistas, como os nascidos das contradições de uma cultura pós colonial e em constante embate com sua matriz européia. Esse aspecto dilacerante de seu caráter impede-o de experienciar o simples entusiasmo de se alçar acima da História e, conforme a necessidade do próprio ato que professa, ser atravessado por um raio cuja origem se perdeu para além do tempo. Necessariamente, o poeta jamais pode abdicar de sua atribuição primeira, ou seja, agir sobre o mundo e, de forma inequívoca, ser o porta-voz de um discurso esgarçado por uma expectativa irremediavelmente frustada. Talvez o exemplo mais bem acabado deste personagem esteja em Terra em transe, de Glauber Rocha. Paulo Martins, seu protagonista, declama monólogos shakespearianos sondando sua amargura justamente por servir ao populismo tecnocrata quando, como poeta, deveria cantar a liberdade. E em nome deste ideal que na contemporaneidade deixa de ser algo transcendente, ontológico, e passa a reivindicar seu estatuto de corpo, Zizo, de A febre do rato, acaba devorado pelo esgoto de Recife, nu, sacrificando sua vida num ato libertário, como um Cristo do mangue.

Este microcosmos onde se dá o choque de forças antagônicas monumentais, lugar ocupado pelo poeta, torna sua figura expressiva de contradições socio-econômicas mais amplas e, por isso, no rastro de sua agonia individual fica impresso o desconforto de toda uma geração. Algo em sua caracterização lembra o “herói mediano” que George Lukács – e a citação de Lukács aqui também não é uma mera formalidade – denominou ao identificar a composição actancial do romance histórico clássico. Esta personagem, geralmente um homem comum ao invés de uma figura expressiva hierarquicamente, cumpre o papel de uma célula, uma mônada, dentro da qual pulsam determinados conteúdos que impõem sua natureza bipolar, conduzindo-o em zigue-zague pelos espaços articulados com a manutenção da tradição e por aqueles onde se trama sua derrubada. Ao tempo que observa de perto a manipulação dos poderosos para manter o poder, sofrem diretamente os movimentos da insatisfação popular, costurando com suas andanças o mosaico de forças sociais que, segundo essa teoria literária, seriam a motriz da História e o modelo energético ideal para a elaboração de uma épica elaborada por esse percurso de natureza cronológica. Tais marcações firmam-se com maior nitidez quando colocadas sobre períodos de transição, e, geralmente, a voz de um vate soa muito mais altissonante desde este nicho predestinado aos mártires de seu tempo – aqui se deflagra o quanto podem (e devem) ser incompreendidos e sacrificados.

Os poetas no cinema brasileiro, portanto, sempre estão em “transe”, mas na sua acepção original latina, transire, ir através, cruzar, atravessar. Condenados a seguir o fluxo articulado pelo materialismo histórico, onde o atrito da burguesia com o proletariado produz a ignição da narrativa dialética, o literato conduz sonambulicamente pelas marginais os despojos da catástrofe sem, contudo, ter um plano preciso para reencaixar as peças e fazer a máquina voltar a se locomover. Mesmo personagens extemporâneos a esse dilema, como Gregório de Mattos, poeta baiano do século XVIII retratado pela cineasta Ana Carolina, comporta-se como um flaneur desviando-se tanto das ruínas do século XVII, sua cultura clerical, como dos projetos malacabados da revolução pombalina, algo muito próximo do movimento realizado por intelectuais no bojo das políticas desenvolvimentistas do século XX e XXI. Paulo Martins transita por um país cujas promessas de governo popular acabaram frustradas pela tecnocracia, assim como Torres e Zizo caminham mais a frente circunscritos pela sufocante cultura neoliberal pós queda do muro de Berlim. Talvez Zizo transcreva um percurso ainda mais estreito por se ver transfigurado por um acontecimento tão chocante e definitivo como a explosão das Torres Gêmeas, forçando-o a se embrutecer numa utopia do passado – aquela para a qual todas as vítimas do fim da história se dirigem quando são impedidas de sonhar –, estacionada entre as décadas de 1960 e 1970, década, segundo esta visão nostálgica, vivida e não perdida.

Transportado para esta zona intermediária, o herói mediano não poderia encarar outro dilema a não ser o experimentado por aquele a quem volta o maior desprezo, representando, com suas andanças malequilibradas, os passos do homem de classe média, o burguês hediondo tantas vezes cuspido pelos estrepitosos versos de Maiakovski.

Come ananás, mastiga perdiz.
Teu dia está prestes, burguês.

Parece que o cineasta encontrou no poeta uma figura capaz de unir cristo e judas numa só representação, ou seja, um reflexo tanto de sua predisposição em trair o ideal para o qual foi talhado como em suportar nas costas as chibatadas, as torturas físicas e psicológicas, impingidas pelo sistema. Para Bernardet, a história do cinema brasileiro moderno desenvolveu-se como a emergência de uma consciência, na verdade, de uma autoconsciência de classe surgida como uma chaga no interior dos próprios cineastas, cuja impotência diante do regime totalitário forçou a exposição de uma crise intelectual profunda, reflexiva das ambiguidades decorrentes do entrelugar social de onde partiam suas sentenças cada vez mais desacreditadas. E, certamente, o poeta seria a personagem ideal para declamar, a partir desta geografia metamorfa, as dissonâncias de uma tragédia privada e, também, ser o alter ego para que a revolta juvenil contra o capitalismo encontrasse algum escape. Se há um princípio lógico que une todos os diretores em torno deste arquétipo é o princípio da identidade, a identidade autor/criatura e criatura/público, movimentando um circuito de empatias em torno da revolta sem revolução, do estopim surdo de um tiro sufocado, pois o poeta romântico-modernista, este, depende de sua individualidade perfeitamente admirável antes de ter o corpo esmagado debaixo de uma arquibancada, ter seu perfil estampado nas camisas dos rebeldes sem causa antes de se deixar consumir pela febre ou uma frase citada na boca de um âncora de jornal antes de se desintegrar como poeira de estrelas. Ou seja, o artista não quer abrir mão de seu lugar no imaginário pequeno burguês, e a promessa de fama póstuma funciona para ele como a última unção ao pé da cama.

Portanto, o grande paradoxo tanto para o cineasta como para seu alter ego sacrifical é que uma das marcas do nascimento do liberalismo no ocidente foi deixada pela bengala de um arrivista social, de um mercador de sonhos, capaz de, como um demiurgo, elaborar formas para o deleite de um público cada vez mais desejoso de novidades, ou seja, a revolta do poeta volta-se contra si ao perceber em sua agressividade ao sistema um ato suicida – destruí-lo seria impedir que seu nome se perpetue além do seu tempo. Existe a “imortalidade” doada pelo sistema, a imortalidade institucional ou midiática, sem a qual esse rapsodo já não pode mais viver. Se um dia o poeta abriu mão da divindade a quem dedicava seus versos, foi pela permanência de seu próprio nome sobre a terra, ainda que devastada.

Guilherme Sarmiento é Professor Adjunto de Dramaturgia e Narrativas Audiovisuais na UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Foi um dos coordenadores do 1 Festival Brasileiro de Cinema Universitário (FBCU) e co-dirigiu Conceição Ou Autor Bom é Autor Morto primeiro longa produzido pela UFF. Tem experiência como roteirista de longas e curtas-metragens cinematográficos, como Sudoeste; e a A infância da Mulher Barbada, ambos premiados em editais ou festivais de cinema. Na UFRB, edita a revista eletrônica Cinecachoeira e exerce a função de líder do Núcleo de Pesquisa em Dramaturgia.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

BERNARDET, Jean Claude. Brasil em tempo de cinema. São Paulo:Companhia das Letras, 2011.

CHARTIER, Roger. Do palco à Página – publicar teatro e ler romances na época moderna ( século XVII e XVIII). Rio de Janeiro:Casa da Palavra, 2002.

LUKÁCS, György. O romance histórico. Rio de Janeiro: Boitempo, 2011.

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