O SONHO INICIÁTICO DO REALIZADOR XAMÃ

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Por Dellani Lima

“As idéias são como peixes. Se quisermos capturar peixes pequenos, podemos ficar pelas águas pouco profundas. Mas, se quisermos capturar os peixes grandes, temos que ir mais fundo. Nas águas profundas, os peixes são mais poderosos e mais puros. São enormes e abstratos. E são muito bonitos.”

David Lynch

Para um xamã o sonho é uma viagem do nosso espírito além da matéria. Um instrumento de comunicação com as divindades. A alma atravessa o corpo para experienciar as infinitas possibilidades do cosmos e da imaginação. A capacidade de transmutação e a viagem onírica como ferramentas para conectar realidades ou dimensões. O sonho como meio de acessar à essência das coisas, simultaneamente em passados, presentes e futuros. A existência antes do nascimento e após a morte. Podem ser aprendizagens do passado, metáforas do presente ou imagens do futuro. Nesse estado de sonhador, onde o amor e a magia nos dominam, podemos observar acontecimentos, seres e lugares íntimos ou longínquos, afetuosos ou amedrontadores.

A palavra xamã é de origem tungue (da Sibéria) e significa literalmente “aquele que enxerga no escuro” e está relacionada a práticas especialmente dos povos das regiões asiáticas e árticas. O xamã é sacerdote, médico e artista ao mesmo tempo. Ele reflete toda cosmologia da sua tribo. É mestre em atravessar os mundos, voar sem limites. Nunca age em estado de lucidez plena e, sim, em êxtase. A sua iniciação costuma ser numa morte ritual, depois seu aprendizado é guiado por um xamã mais velho. Usa sua sabedoria para os processos de cura e de autoconhecimento. Compreende a energia em constante movimento de todos os elementos e seres. Mas a alma humana é o seu território.

Frequentemente xamãs relatam em suas viagens oníricas ou transes, que têm acesso ao mundo espiritual e por isso manipulam suas ações, essencialmente as malignas. Muitas vezes sonham com a morte, transcendem para o reino dos espíritos, conhecem as medicinas dos ancestrais e renascem para diagnosticar as doenças. Nos sonhos eles também se metamorfoseiam em animais para encontrar alguma resposta para suas questões. Até mesmo o êxito da caça é antecipado pelo xamã. Ele transcende seu corpo para caçar os espíritos dos animais ou para pedir permissão para o grande espírito das florestas. Gestos, danças, narrativas, poemas e imagens descrevem sua passagem pelo além. Assim os caçadores partem para a mata sem dúvidas do sucesso de sua empreitada.

No universo onírico, gestos perdidos e palavras esquecidas tornam-se cores, sons, pessoas, animais, criaturas, uma infinidade de lembranças, de cicatrizes, de fantasias, tudo dentro de nós mesmos. Sonhar é parte de nosso destino e suas imagens são fragmentos de nossa existência. Em muitas tribos pelo mundo o xamã escuta os sonhos de sua aldeia todos os dias. Principalmente nos sonhos clarividentes, as imagens oníricas são expostas e analisadas a partir do passado e dos sonhos de outros membros da tribo, nos quais relacionam seus sonhos com os do sonhador. Em seguida essas imagens são interpretadas a partir da condição social e emocional do sonhador. O xamã ouve os sonhos para interpretá-los como curas ou orientações espirituais para alguns indivíduos ou para todo grupo. A manipulação dos sonhos também restabelece a memória da comunidade. No tempo das origens, no tempo do sonho, onde residem os espíritos ancestrais, animais, plantas, seres e paisagens de outras dimensões.

São narradas experiências de pessoas comuns da aldeia que foram iniciadas por espíritos ancestrais em seus sonhos, principalmente na ausência de um xamã. Visões que resgataram cantos, rituais e conhecimentos dos antepassados e que possibilitaram caminhos para um futuro da tribo. Há experiências através de viagens oníricas que levam o navegante para outros mundos, nos quais ele agradece aos espíritos e seres as curas e os favores realizados por eles. Por outro lado, entidades espirituais roubam as almas através dos sonhos, quando querem se vingar da humanidade. A alma vaga sem rumo até que sejam feitas repetidas sessões de cura.

Há séculos os monges tibetanos praticam “sonhos lúcidos”. Eles sugerem que o discípulo deite-se na “postura do leão” e depois imagine que em seu coração há um vaso de cristal onde se encontra uma flor de Lótus com cinco pétalas coloridas: amarelo, azul, branco, vermelho e verde. Como âncora da consciência, o psicofisiologista Steve LaBerge sugere visualizar uma flor de Lótus na garganta. Sobre “sonhos lúcidos”, LaBerge resume a “sonhar enquanto sabemos que estamos sonhando”, e de suas inquietações resultaram várias experiências e pesquisas sobre o assunto. Ele criou o termo Onironauta (do grego Oniro óneiros, Sonho + Nauta náutés, navegante/explorador), aquele que domina o sonho para conduzi-lo como desejar, aquele que explora as possibilidades dos sonhos, seus modos de revelação, de conhecimento e de cura. Através dessa “linguagem onírica” recebemos muitas informações, imagens subjetivas e mensagens importantes para nosso autoconhecimento. Sensações vividas, experiências do presente, ruídos corporais e vestígios da memória antepassada. O sonho é uma maneira de descobrir-se e de compreender o exterior pelo pensamento. Para muitos uma experiência espiritual que amplifica os elementos que compõem aquela realidade onírica. O amor que se manifesta e se oculta no fluxo descontínuo desse trajeto. Como na obra de Leonilson: Para o meu vizinho de sonhos.

O ritual de incubação dos sonhos é um dos mais antigos da humanidade. Onde visões, entidades e espíritos possibilitaram medicinas, sabedorias e mágicas. Talvez algumas pinturas paleolíticas de praticantes pré-históricos que se isolaram em grutas e cavernas escuras tivessem funções oniricríticas. Em certos rituais em busca do conhecimento espiritual, ritualistas escrevem perguntas no papel e as colocam sob seus travesseiros ou queimam suas preces escritas e adormecem na espera dos conhecimentos desejados. Alguns anjos e espíritos também podem ser invocados em sonhos iniciáticos ou reveladores.

A própria linguagem é um processo onírico. Os sonhos revelam nossos mais íntimos segredos. Uma parte oculta da nossa própria existência. O desejo do coração, escondido e profundo. Um reflexo do que realmente somos, no qual temos acesso ao inconsciente coletivo, onde os conflitos internos eclodem mesmo sem entendermos seus significados. Uma experiência emocional intensa. Para a psicanálise, os sonhos revelam desejos reprimidos, medos, culpas e frustrações. Como também outros sentidos, que apresentam questões da vida que não foram solucionadas. Sonhos que se repetem com frequência, principalmente pesadelos, seriam problemas em busca de respostas. Uma forma de expressão do inconsciente coletivo, um oceano de formas e símbolos.

As profundas transformações sócio-políticas e econômicas, os inúmeros estímulos e a velocidade das informações se tornaram também grandes obstáculos para se sonhar ou transformar os sonhos em alguma realidade atualmente. Mas o verdadeiro sonho transgride tudo que procura deter seu movimento. Sonhos subversivos, inconformistas e anticapitalistas. Pois viver bem é buscar uma maneira de compreender o conflito entre as pulsões de vida e de morte em nossa existência. O xamã é um sonhador também porque é um visionário, vê muito além da realidade exterior, confia nos seus sonhos e acredita que tudo pode mudar. Invoca a fantasia e a inventividade para rompermos o véu da ilusão, para entendermos melhor a complexidade da vida, para sonharmos mais. Um sonho pode atuar como uma música, uma poesia ou uma imagem, ou os mesmos poderão atuar como sonhos. A qualidade da interpretação e o poder de realização do sonho definem o mundo do sonhador e aos poucos rasgam suas máscaras e afugentam seus fantasmas. O desejo é de liberdade, de criação, de realização constante do sonho utópico. A realidade é a interior, o mundo dos sonhos, o acesso direto ao inconsciente coletivo. O universo brinca com seus signos. O sonho revela a essência a seus devotos e exorciza a superficialidade de seus inimigos. E sonhar é traçar seu próprio destino. Para voar numa jornada além dos limites do mundo e de si mesmo.

Alguns filósofos e teóricos já tentaram aproximar as experiências do sonho com o cinema, ou vice-versa, enquanto outros negaram qualquer analogia entre os dois. Não foi casualmente que o cinema e a psicanálise surgiram no mesmo período histórico, mesmo que Freud não gostasse realmente do cinematógrafo. Na sala de projeção o espectador por identificação ou por fruição, como nos sonhos, também rompe as amarras da realidade exterior e vive inúmeras experiências emocionais ou sensoriais através de imagens e sons produzidos para o entretenimento e também para o estranhamento, a reflexão ou o transe.

Benjamin esquadrinha a relação terapêutica e epistemológica entre o cinema e a percepção sensível do homem moderno. Sua teoria é fundamentada profundamente no mundo dos sonhos. O aumento da percepção, que revelará características da realidade até então desconhecidas, uma ampliação do conhecimento humano. Benjamin afirma que o cinegrafista penetra profundamente na realidade por descortinar sua intimidade. Arranca o objeto da sua casca e destrói sua aura. Assim a potencialidade de encaminhar o indivíduo ao mundo dos sonhos poderá externar elementos significativos da sociedade. E o cinema funcionará como exercício para se habituar e para compreender as transformações de seu meio social e do seu próprio cotidiano, também afetado pelos avanços tecnológicos. Mas num contexto de crítica ao capitalismo e aos seus valores tradicionais através da força criativa do subconsciente, a dimensão onírica e a livre associação de idéias como caminhos para a inventividade artística e para a atuação política. Capaz de empreender viagens aventurosas entre ruínas arremessadas à distância.

Mesmo que o cinema surja com sua tendência à indústria ou ao mercado de entretenimento, sempre existiu a resistência artística que produziu inúmeras obras que proporcionam grandes viagens interiores em busca do autoconhecimento e da cura de certas mazelas da alma, da vida. Desde o cinema de vanguarda até os percursos do experimental aos dias de hoje. Os “realizadores xamãs” e seus movimentos cinematográficos romperam com certas tradições artísticas e padrões socioculturais, para além dos modismos, longe dos padrões comerciais. Um cinema de autores, não conformista, sensorial, íntimo, filosófico, complexo, poético, espiritual, político, inesperado. Narrativo ou não narrativo, um cinema comprometido com a alma humana, com suas potências de criatividade e de renovação.

Na história do cinema podemos encontrar os nossos “realizadores xamãs”, como Abbas Kiarostami, Akira Kurosawa, Alejendro Jodorowsky, Andrea Tonacci, Andrei Tarkovsky, Artavazd Peleshian, Béla Tarr, Carlos Reichenbach, David Lynch, Dziga Vertov, Edgar Navarro, Georges Méliès, Glauber Rocha, Humberto Mauro, Joaquim Pedro de Andrade, Joris Ivens, José Mojica Marins, Júlio Bressane, Kenneth Anger, Luis Buñuel, Luiz Rosemberg Filho, Mário Peixoto, Maya Deren, Michelangelo Antonioni, Nelson Pereira dos Santos, Ozualdo Candeias, Rogério Sganzerla, Sergei Parajanov, Shuji Terayama, Stan Brakhage, Yasujiro Ozu, entre outros manipuladores de sonhos.

O poeta André Breton escreve que, sobretudo, ama a imaginação e que exalta a liberdade, sua única aspiração legítima. E que o surrealismo (movimento artístico que iniciou) introduz você à morte que é uma sociedade secreta. Viver e deixar de viver é que são soluções imaginárias. A existência está em outro lugar. Atravessa-se em sobressalto, o que os ocultistas chamam de paisagens perigosas. Charles Baudelaire nos relata sobre a figura do flâneur: o que observa e o que sonha o mundo em movimento, fugidio e infinito. Para esse observador apaixonado, a multidão é seu universo. O amador da vida faz do mundo a sua família. Sentir-se em casa onde quer que se encontre. Para Benjamin, o flâneur é um cronista da cidade, um ser irrequieto e agitado, que resiste e critica o capitalismo. O situacionista Guy Debord nos propõe a deriva: um método de reconhecimento psicogeográfico das cidades, que se opõe as formas tradicionais de passear e de viajar. Se perder pela cidade através do coração, como nos sonhos, quando o lugar cria seus próprios caminhos.

Para Abbas Kiarostami, a arte tem a ver com a inquietude, ter de sobreviver de qualquer maneira e reagir a um profundo sentimento de inadequação. O aperfeiçoamento na arte só pode surgir da inadequação. Como a linguagem onírica, a poesia nunca conta histórias. Oferece uma série de imagens. As representações da memória e o domínio de seus códigos é que podem elevá-la ao mistério. Se as imagens conferem ao outro o poder de interpretá-las, extraindo delas um sentido, um sentido que nem ele imaginava, melhor é não dizer nada e deixar o espectador livre para imaginar tudo.

Tarkovsky desejava realizar filmes que pudessem trazer uma experiência profundamente íntima. Para ele, o espectador só se relaciona com o filme se sua concepção for fiel à vida, mais afetivo que intelectual. Para atingir as pessoas a arte deve mergulhar profundamente em sua essência, tentar reconstruir a estrutura viva de suas conexões interiores. Sinceridade, honestidade e mãos limpas. Dizer às pessoas sobre nossa existência comum através da nossa própria experiência e compreensão. Tentar estabelecer os vínculos que ligam as pessoas além da carne, laços que nos conectam com a humanidade e com tudo que nos circunda. Em seu manifesto “Estética do Sonho”, Glauber afirmou que a existência não se sujeita a conceitos filosóficos e que a arte revolucionária deveria enfeitiçar o homem para que ele não suportasse mais viver na realidade absurda. A revolução é uma mágica porque é o imprevisto dentro da razão dominadora. Uma estética do eterno movimento humano em busca de sua integração cósmica.

O que nomeamos afetivamente de Cinema de Garagem ainda resiste dentro da genealogia experimental e poética dos nossos antepassados, das tradições xamânicas e subversivas dessas “estéticas do sonho”. Não apenas por seus aspectos econômicos, mas também por suas características estéticas, éticas e políticas. Um cinema de hibridismos, de dramaturgias mínimas, de caminhos intransponíveis, de resistência, de amores possíveis, de solidão, de desconstrução do cotidiano, de rompimento com muros e correntes, de conciliação com a morte e o cosmos, de sonhos lúcidos.

Texto livremente inspirado nas obras de Abbas Kiarostami, André Breton, Andrei Tarkovsky, Carl Jung, Eduardo Viveiros de Castro, Gilles Deleuze, Glauber Rocha, Mircea Eliade, Peter Lamborn Wilson, Sigmund Freud e Walter Benjamin.

Originalmente escrito para a Mostra Cinema de Garagem e reeditado para a Revista Cachoeira.

Belo Horizonte, Inverno de 2014

Dellani Lima atua em várias frentes do cinema e das artes visuais, e, junto com Marcelo Ikeda, foi o idealizador da Mostra Cinema de Garagem, responsável pela exibição e promoção de filmes experimentais brasileiros. 

Um comentário sobre “O SONHO INICIÁTICO DO REALIZADOR XAMÃ

  1. kesia

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